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Mensagens

A mostrar mensagens de fevereiro, 2021

Passou-se uma coisa muito curiosa que aproveito para contar aqui

Quando o [José] Craveirinha foi julgado em tribunal militar, tribunal de excepção, acusado de antiportuguesismo — porque ele era suspeito de querer a independência [de Moçambique] —, eu fui lá como testemunha abonatória. Era amigo do Craveirinha há muitos anos e, perante o juiz militar, que era um indivíduo convicta e seriamente aderente do Estado Novo (não era um oportunista, acreditava mesmo naquilo), eu disse esta coisa muito simples: “Oiça, não convém confundir o desejo de uma alteração político-administrativa num território com antiportuguesismo, porque, se vocês repararem, há pouca gente que goste tanto da língua portuguesa quase sensualmente como o Craveirinha. Um indivíduo destes não pode ser antiportuguês. Pode ser contra o regime que nos governa, mas isso não tem nada que ver com Portugal.” O juiz militar ouviu com muita atenção o que eu lhe disse — antes de dar a sentença, uma pessoa minha amiga viu-o na igreja com ar de grande angústia — e depois foi um dos que votou pela a

Este mundo

Devia haver um livro de Edward T. Hall sobre insultos e imprecações, do género dos que ele dedicou ao tempo e ao espaço. Na falta de fontes eruditas, restam as palavras vulgares (que até assentam melhor aos textos de Cioran, não me posso esquecer disso nunca).  “ Ce monde qui ne vaut pas un crachat ” traduz-se quase automaticamente por “este mundo que não vale um peido”. (Pensei na rã, claro, mas eliminei-a logo — não me permito golpes desses.) Acho que Cioran era capaz de gostar desta troca escatológica; peido é mais angelical que escarro .

Decifrar

Atribuir a cada edifício da cidade uma letra do alfabeto: «a» para casas térreas; «b» para casas térreas com logradouro; «c» para casas térreas com telhado de uma água; «d» para casas térreas com telhado de duas águas; «e» para prédios de dois andares; e assim sucessivamente. Decifrar os textos secretos do grande arquitecto.

Fotografia

Saio de manhã cedo para um curto passeio antes do trabalho. Percorro a Rua de António Cândido, em direcção a Faria Guimarães. Mais ou menos a meio, ergue-se a maior magnólia do bairro. Faz parte de um jardim privado, mas a árvore já saltou o muro e parece querer lançar-se pela rua a qualquer momento. Tiro uma fotografia antes que escape.

Paisagens despojadas da Escócia

Armand Robin, este estranho tradutor que conhecia toda a poesia, um dia em que lhe falei de Chuang-Tzu, disse-me que o punha acima de todos os poetas e de todos os pensadores, e que só o podia comparar com algumas paisagens despojadas da Escócia. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Ah, o Japão!

Este japonês que diz que é preciso compreender o « ah !» das coisas. Cocktail em casa de uma jovem japonesa. Temos de aprender o sorriso nipónico . O resto é acessório.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Fizera versos

Quando amanuense, fizera versos; nomeado oficial, perdeu o costume, mas um dos efeitos da paixão foi restituir-lho. Consigo, em casa da mãe, gastava papel e tinta a metrificar as esperanças. Os versos escorriam da pena, a rima com eles, e as estrofes vinham seguindo direitas e alinhadas, como companhias de batalhão; o título seria o coronel, a epígrafe a música, uma vez que regulava a marcha dos pensamentos. Bastaria essa força à conquista? Gouveia imprimiu alguns em jornais, com esta dedicatória: A alguém. Nem assim a praça se rendia. Machado de Assis, Esaú e Jacó.

Teoria Geral das Lágrimas

Em termos de definição, basta o verbete do dicionário: gotas líquidas que saem dos olhos, por efeito físico ou por causa moral .  Mas como conceito, as lágrimas de Cioran são a coisa humana mais parecida com a música. Só percebi isso agora. Ele queria escrever uma peça musical — uma fuga , talvez.

Contra

Em 1965, Cioran escreve nos seus Cadernos : “Ai terminé un article contre le christianisme. Comme toujours je finis par épouser la cause que j’ai violemment attaquée, et je passe dans le camp adverse”. (Terminei um artigo contra o cristianismo. Como sempre, acabo por aderir à causa que violentamente ataquei e passo para o campo adversário.) A falta do pronome pessoal pode ser distracção ou gralha, mas não acredito nisso. Para além do cristianismo, Cioran também está contra o francês:  Em luta com a língua francesa: uma agonia no verdadeiro sentido da palavra, uma luta onde fico sempre por baixo.  Contra a gramática: Um profeta fulminado pela gramática.  E, acima de tudo, contra o “eu”: O eu é uma ferida aberta.

Não vale a pena dizer o nome

Mandou fazer um armário envidraçado, onde meteu as relíquias da vida, retratos velhos, mimos de governos e de particulares, um leque, uma luva, uma fita e outras memórias femininas, medalhas e medalhões, camafeus, pedaços de ruínas gregas e romanas, uma infinidade de coisas que não nomeio, para não encher papel. As cartas não estavam lá, viviam dentro de uma mala, catalogadas por letras, por cidades, por línguas, por sexos. Quinze ou vinte davam para outros tantos capítulos e seriam lidas com interesse e curiosidade. Um bilhete, por exemplo, um bilhete encardido e sem data, moço como os bilhetes velhos, assinado por iniciais, um M e um P, que ele traduzia com saudades. Não vale a pena dizer o nome. Machado de Assis, Esaú e Jacó.

Le mauvais démiurge — variações

(…) Decidi começar pelo início, que é um princípio tão bom como outro qualquer, e elegi como vítima da primeira tradução da minha vida Précis de décomposition , o livro com que Cioran iniciou a sua carreira de escritor em França. Os títulos de Cioran sempre me deram dores de cabeça e nesse caso resolvi traduzi-lo como Breviario de podredumbre  (Breviário de Podridão): assim evitava o som excessivamente intestinal de descomposición  em castelhano e, em troca, aproveitava a blasfémia insolentemente eclesiástica de breviario ...  Depois, encorajado pelo surpreendente eco público dessa primeira tradução (que culminou quando um empregado do bar da faculdade de filosofia me perguntou se pensava traduzir outro livro de Cioran, anedota que encantou o autor), dediquei-me ao que tinha sido o meu primeiro contacto com a sua obra: Le mauvais demiurgue . Mauvais ? Após dar muitas voltas, optei por convertê-lo em aciago  (aziago). Cioran, que lê e compreende muito bem espanhol, não ficou lá muit

Observações avulsas sobre o bonfim #22

No patamar do quinto andar, junto às portas, sobre os capachos: um par de sapatilhas do lado direito (minhas), um par de sapatilhas do lado esquerdo (do Puria). Às vezes as afinidades culturais têm quilómetros entre si. Foi o cinema (e não a literatura, é curioso) que me ensinou isso.

Cinzas

Troco ideias com um velho amigo sobre as razões que explicam a ascensão da extrema-direita. Ainda que partilhemos a mesma área ideológica, temos opiniões diferentes. Opiniões sólidas, achamos nós, sustentadas em muitos anos de leituras, conversas de café e viagens nos transportes públicos. Elevamos a voz, quase nos zangamos. Desligo o telefone. Fumo um cigarro. As minhas certezas misturam-se com a água da chuva, no cinzeiro da varanda.

Fábrica de santos

Os santos criaram um espaço social particular, uma «junção» entre o mundo terreno e o divino. Em larga medida, este espaço social nasceu dos desejos e esforços dos seus devotos, embora mais tarde a Igreja tenha estabelecido um eficaz processo de produção de celebridade, ao qual George Minois designou como «fábrica de santos». Mosteiros, ordens religiosas, aldeias e cidades, todos competiram na criação dos «seus próprios», e as autoridades eclesiásticas tiveram de impor entraves ao processo de canonização para controlar a «inflação de santidade», gerando assim tensão entre os santos populares e os oficiais. Os últimos eram preferidos pelas autoridades eclesiásticas como modelos de virtude e submissão, exemplos de uma vida cristã imaculada. Contudo, o povo preferia personagens excêntricas e profundamente individualistas, com poderes espectaculares e miraculosos, ou figuras consideradas bons membros da comunidade e capazes de curar. Revolucionários e figuras como Robin dos Bosques - messi

Fruta da época

Estamos em Fevereiro e nas frutarias ainda há dióspiros. Frescos, doces, suculentos. Acabados de colher. Parece que os calendários continuam em vigor, mas por simples hábito. Nos velhos diospireiros, obedientes ao tempo ancestral da natureza, alguém enxertou o tempo acelerado dos negócios. A «fruta da época» foi substituída pela «época sem fim da fruta». Volto, uma vez mais, ao pesadelo do velho Isak Borg: relógios sem ponteiros.

Sono un attore

Quando diz à psicanalista que é actor, Michel Piccoli volta a ser Gilbert Valence e depois, dentro do autocarro, na verdade está dentro de um filme de Robert Bresson (ele sabe qual). Se juntar o nome relutante, a gaivota repetitiva, a partida de voleibol e outras coisas que me escaparam — mais do que um filme, Habemus Papam é um repertório. Gosto tanto do Michel Piccoli.

Esta casinha

Na Travessa de S. Brás, nas traseiras do cemitério da Lapa, há uma casa com um painel de azulejos à entrada, com a seguinte inscrição: Esta casinha que é nossa foi feita p’ra nós os dois. Amigos!... Também é vossa. Descansai; segui depois. Ninguém vive ali há anos. A casa está soterrada em musgo, ervas daninhas e humidade, quase em ruínas.
O homem que veio tapar o vulcão . Era assim que que se referiam a Orlando Ribeiro em Cabo Verde , em 1951, quando o vulcão do Fogo entrou em erupção. É uma expressão gentil de dois sentidos, diz-nos coisas sobre o geógrafo, mas também sobre a população das ilhas vulcânicas.

Um modesto

Noutro dia no autocarro encontrei um jovem escritor de vanguarda (!), que me critica por não ser revolucionário, por não querer inventar nada, em suma, por não trazer nada de novo. — "Mas eu não quero mudar nada de nada", disse-lhe. Não entendeu nada das minhas palavras. Tomou-me por um modesto. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.  Nota: Em 63 palavras, Cioran utiliza cinco vezes "rien" o que dá uma taxa de quase 9% (confirma-se: nada modesto nas orações negativas). Reduzi o texto em português para 51 palavras, mantive cinco vezes "nada" e aproximei-me dos 10%. Não sei em que teoria da tradução isto se pode enquadrar, mas gosto de ajudar Cioran a provar o seu ponto. 

Sublinhados meus

Os angustiados, os asfixiados, os exaustos, os abatidos, os sobrecarregados, os saturados, os queimados, os esgotados, os electrocutados. São eles e elas quem podem (podemos) perturbar a posição dominante do desejo hoje: o sempre-mais. Mas interromper o quê? Como esquivar-se ao imperativo do rendimento? Como escapar à figura do “maximizador”. É preciso um novo ataque à “economia libidinal” do neoliberalismo, à sua organização do desejo: um certo apagão das nossas energias desejantes. Esta “luta” não é necessariamente épica, heróica e colectiva. Não é necessário desvalorizar a deserção progressiva e os apagões pessoais. David Le Breton investigou, por exemplo, modos subtis de desacato ao imperativo do “seja você mesmo”, de estar permanentemente conectado e disponível, de estar sempre à altura. Fala do “silêncio” e do “caminhar”. Ele propõe que estes possam ser tomados como formas políticas de resistência. Como fugas activas do ruído da conexão permanente, como modos de voltar a tomar co

Corcundas

Leio numa revista que o famoso editor da Adelphi , Bobi Bazlen, tinha ganho uma corcunda, em resultado das longas horas passadas a ler com a cabeça apoiada numa pilha de almofadas. Esse defeito físico adquirido com a leitura «fazia com que a sua cabeça estivesse sempre ligeiramente avançada em relação ao corpo». Pergunto-me que espécie de corcundas ganharão os leitores dos nossos dias, esses leitores que passam mais de metade da vida a ler publicações nas redes sociais.

They banned the films

In the end, I always managed to do everything I wanted in the Soviet Union, even if my films were banned (...). By the same token, if you were banned, you were someone who was respected. (...) During that time, 120 filmmakers worked for the regime, as cinema was an instrument of propaganda. Nevertheless, one cannot say that the censors were too severe. They banned the films, but they respected the filmmakers. It gave them headaches... They allowed us to finish the film, before banning it. Otar Iosseliani.

Espíritos de segunda ordem

Arrastar-se lentamente como um caracol e deixar o seu rasto, com modéstia, aplicação e, no fundo, indiferença..., na volúpia tranquila e no anonimato.  O que me faltou foi vontade de fazer uma obra . Esta insuficiência é própria dos espíritos de segunda ordem. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.