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Avançar para um maior grau de insegurança

Não me cabe a mim, querido amigo, emitir um juízo sobre um livro do qual sou objecto. Saiba, porém, que a sua tentativa de captar desde o interior a minha maneira de ver as coisas iluminou-me sobre numerosos detalhes, sobre numerosas ilusões surgidas do arrebatamento ou da negação e, deste modo, tornou-me um pouco mais exterior, um pouco mais estranho a mim mesmo, o que devia ser a ambição de quem se compromete nesta aventura de espectador que é o conhecimento de si mesmo. Tem razão ao deixar de lado as «influências». Sofri muitas porque, não tendo praticado nenhum ofício, pude, ao longo dos anos, ler um número considerável de autores. Quais citar? Todos aqueles — e são uma legião — que, de Theognis a Beckett, formularam as suas reservas à legitimidade da existência.  Não foram, no entanto, as leituras que me formaram, mas os acidentes e os encontros. Tudo o que descrevi é fruto de circunstâncias, de acasos, de conversas, de ruminações nocturnas, de crises de desânimo mais ou menos...

Filosofia para os trabalhadores

Até acho fixe pagar a tal graduação , mas duvido do resto.  A cena da caixa é tão batida que já nem merece comentários.  «Ver coisas que outros ainda não viram» — ora bem, se conseguirem mesmo ver coisas inauditas, de certeza que isso não vai ser bom nem para a competitividade nem para os negócios. E a filosofia a servir de analgésico é uma ideia muito preguiçosa e estúpida.  O que espero (no fundo do fundo sou muito optimista) é que, concluída a pós-graduação, os trabalhadores se despeçam do grupo Dst com uma boa argumentação (a filosofia ensina a pensar e argumentar, não é?) — pelo menos assim não se perdia tudo.

Um momento de expectativa

Segundo os meus parâmetros , os cartazes da exposição de Rui Chafes em Serralves convertem o escultor em filósofo — filósofo da matéria, digamos assim.

Dois lados do muro

Leio o texto do Cioran, traduzido pela Cristina , sobre as pessoas que «sentem que estão de passagem», que têm «a sensação de ter entrado na vida como uma ventania», e lembro-me de uma notícia que li há uns dias. Um norte-coreano que tinha conseguido fugir para a Coreia do Sul, voltou para o norte. Ou melhor, fugiu para a Coreia do Norte, escalando uma barreira de cerca de três metros com arame farpado e arriscando assim a vida pela segunda vez, na fronteira mais vigiada do mundo. Na mesma notícia pode ler-se que este caso está longe de ser isolado: pelo menos outros trinta «desertores» norte-coreanos fugiram da Coreia do Sul para o norte nos últimos anos. Talvez esteja a confundir alhos com bugalhos. A misturar filosofia de sábios com tragédia de espoliados. Demasiado romantismo da minha parte. Demasiada ficção e pão na mesa. Sim, é o mais provável.

Arranhar a ferida

Fernando Savater:  Qual foi a sua formação filosófica, quais são os filósofos que mais o interessaram? Emil Cioran:  Bem, na minha juventude li muito Lev Chestov, que era então muito conhecido na Roménia. Mas quem me interessou mais, quem mais amei — é essa a palavra —, foi Georg Simmel. Sei que Simmel é bastante conhecido em Espanha, graças ao interesse que Ortega lhe dedicou, enquanto é completamente ignorado em França. Simmel era um escritor maravilhoso, um filósofo ensaísta magnífico. Era amigo íntimo de Lukács e Bloch, que influenciou e que mais tarde o renegaram, o que acho absolutamente desonesto. Hoje, Simmel foi completamente esquecido na Alemanha e até silenciado mas, no seu tempo, era admirado por figuras como Thomas Mann e Rilke. Simmel também era um pensador fragmentário. O melhor do seu trabalho são os fragmentos. Também fui muito influenciado por pensadores alemães daquilo que se chama a "filosofia da vida" como Dilthey etc. Claro, também li muito Kie...

Oh, estou tão contente com as botas.

Julian e Bradley já começaram a falar de Hamlet, mas não tenho coragem de interromper a leitura d’ O Príncipe Negro e passar a Shakespeare para um exercício diletante de montagem paralela; é difícil resistir à escrita sedutora de Iris Murdoch (e à tradução exemplar de José Miguel Silva). Para mais, acabei de chegar à cena das botas roxas. Se fosse eu a decidir, era as botas que punha na capa — segundo o meu critério sofisticado , só faltava isto para considerar Murdoch uma verdadeira filósofa.

Census

A certa altura, o inquérito do Census pede uma resposta para a seguinte questão: «Usando a língua em que habitualmente se expressa, tem dificuldade em comunicar com os outros, por exemplo compreendê-los ou fazer-se entender por eles?» As opções são quatro: a) Não, nenhuma. b) Sim, alguma dificuldade. c) Sim, muita dificuldade. d) Não consigo compreender os outros ou fazer-me entender. Hesito. Não sei o que responder. Os técnicos do Instituto Nacional de Estatística conseguiram resumir a história da humanidade e um dos mistérios da existência numa pergunta do Census. Sinto-me como um daqueles bichos que roem o próprio rabo para escapar duma armadilha. Avanço para a próxima questão sem responder.

Os sapatos de Pascal

Já não sei como é que começou esta mania de associar a filosofia a sapatos e botas, mas a verdade é que volta e meia lá avanço mais uma casa neste jogo particular. Desta vez, descobri isto no livro “A caballo entre milenios” , de Fernando Savater: El encanto de Cioran reside en que expresa los vapores del spleen romántico con una prosa disciplinada en el potro de tortura de los moralistas clássicos: como apuntaba con agudeza Adam Gopnik en un artículo aparecido hace pocos días en el New Yorker, “efectúa los paseos de Baudelaire con los sapatos de Pascal”. — É uma descrição formidável.

Especial vitalidade

(...) A filosofia, língua morta. “A língua dos poetas é sempre uma língua morta... um dito curioso: uma língua morta que se usa para dar uma vida maior ao pensamento”. Talvez não uma língua morta, mas um dialecto. Que a filosofia e a poesia falem numa língua que é menos do que língua é o que lhes dá a medida do seu alcance, da sua especial vitalidade. Pesar, julgar o mundo medindo-o através de um dialecto, de uma língua morta e, no entanto, fértil, onde não há a mudar uma virgula sequer. Continua a falar este dialecto, agora que a casa arde. (...) A poesia e a palavra são a única coisa que nos resta de quando não sabíamos ainda falar, um canto obscuro dentro da língua, um dialecto ou um idioma que não percebemos completamente, mas que não podemos deixar de ouvir – mesmo que a casa arda, mesmo que na sua língua que arde a humanidade continue a falar em vão.  Existirá uma língua da filosofia, como existe uma língua da poesia? Como a poesia, a filosofia habita integralmente na linguag...

Ponto, linha. Nada.

Natasha sai para comprar pão e deixa o pai e Jeanne a preparar o jantar — é uma estratégia de aproximação. Eles quase não se conhecem, sentam-se à mesa, um ao lado do outro, de frente para a câmara: Jeanne corta salame, Igor corta tomates. Nem prestei atenção ao que dizem, todo o interese vai para os movimentos dos corpos. É um dos clímaxes do filme (directo para a lista de cenas com pessoas a descascar e cortar coisas de comer). Mas o melhor do filme não é um ponto, é uma linha — algo que se desenrola do princípio até ao fim: não se passa nada (lista de filmes onde não se passa nada). Como diz Rohmer, quando parece que vai acontecer alguma coisa, não acontece. Tirando o desaparecimento e descoberta do colar (Hitchcock e Poe em versão primaveril), nada mais. Isso — chamemos-lhe buraco, ausência, vazio ou nada —, muito mais do que as conversas temáticas, é que faz de Conto da Primavera um filme extremamente filosófico (lista negra).

Composto para o refrigério dos espíritos

Cioran é um tipo esquisito — nisto todos concordam. Está na filosofia como se estivesse sentado na esplanada do café, ensimesmado, sempre a ruminar nos mesmos assuntos, cabelo no ar, leituras e releituras a mais, praticando um francês de meteco, sem pensamentos excepcionais mas, acima de tudo, sem método nem maneiras (aliás, acho que é por isso que a academia e a crítica encartada o rejeitam ou, pelo menos, torcem o nariz aos seus aforismos aflitos). A objecção mais comum é que ele repisa o que já foi dito e pensado e é muito teatral (ahah! o espírito balcânico). Um chato ou um charlatão da disciplina que não chega aos calcanhares de não sei quem. Os ataques atingem o alvo, é verdade, mas apenas porque a noção de filosofia usada é bastante burocrática. Precisamos de um conceito mais dinâmico — os êmbolos do pensamento ao ritmo dos pedais . Se Cioran não diz (quase) nada de novo, di-lo, ainda assim, de uma forma incomum e torrencial. Privilegia a linguagem vulgar, as palavras banais da ...

Casava com ele

Deitei mão à versão digital dos Cadernos escritos por Emil Cioran entre 1957 e 1972. As entradas têm uma vitalidade desconcertante. *** Tenho tudo de um epiléptico, menos a epilepsia. Borges escreveu um poema sobre o tango. Como o compreendo. Tenho vontade de exclamar: «Dêem-me um tango por dia!» Trago em mim uma Argentina secreta.    Mais próximo da tragédia grega do que da Bíblia. Sempre compreendi e senti melhor o Destino que Deus. Nada do que é russo me é estranho. “Sou estrangeiro na terra e no céu.” (Lermontov) Sou filho do tédio russo. Como duvidar das minhas origens eslavas? Sou um Mongol devastado pela melancolia. O próprio Deus não saberia pôr fim às minhas contradições. É estranho que ninguém se tenha apercebido das minhas afinidades com Swift, nem mesmo a influência que ele teve sobre mim. Introduzi o suspiro na economia do intelecto. Um tratado de medicina da época de Hipócrates intitulado: “Sobre as Carnes”. Eis um livro segundo o meu cor...

O destino marca a hora

Passo ao lado de tudo que é importante. Devia ter sido convidada para participar no Festival Eurovisão da Canção Filosófica . Um trio bastante morto: eu, o Cioran e o Tony de Matos. O único consolo é que a tradução de Lágrimas e Santos (vai a um terço, creio) está a correr bem e não tarda nada cresce-me uma auréola céptica nos pés.

Filosofia e vacas

Como seria de esperar — bom, como eu esperava —, logo na página 115 surge uma definição de filósofo. Dostoiévski entrega a tarefa a uma personagem um bocado avariada da cabeça ou, pelo menos, destravada. No seu primeiro encontro com Nastássia Filíppovna, Ardalion Aleksándrovitch diz: (...) Em todos os outros sentidos, vivo como um filósofo, ando, passeio, jogo damas no meu café, como um burguês que se afastou dos negócios, e leio o Indépendance . É uma imagem suave (quase roça o tema das camisas brancas), fácil de pôr em prática. Continuo a preferir a cena das vacas escrita pela Lydia Davis — mais contemporânea e exigente?

Uma coisa que acabara com os Gregos e os Romanos

A rapariga doutorara-se em Filosofia, e isso deixara Mrs. Hopewell completamente desorientada. Pode dizer-se “A minha filha é enfermeira”, ou “A minha filha é professora”, ou até “A minha filha é engenheira química”. Mas não se pode dizer “A minha filha é filósofa”. Isso era uma coisa que acabara com os Gregos e os Romanos. A gente sã do campo, de Flannery O’Connor.  Tradução de Clara Pinto Correia, edição Cavalo de Ferro.
Cuidado. Piso escorregadio . Podia ser o título de um manual de filosofia. Se os filósofos frequentassem superfícies comerciais .

Humano, demasiado humano.

Cioran já andava pelos setenta anos quando se apaixonou por uma jovem professora de filosofia. Friedgard Thoma escreveu-lhe uma carta elogiosa comparando-o a Büchner e Walser. Depois enviou-lhe uma fotografia. Começaram a trocar correspondência. Encontrei  aqui  parte da história e este excerto:  “Consigo gostaria de falar sobre Lenz na cama. Lástima que não viva sozinha e aqui perto. A alegria de a ter conhecido é uma prova e também um golpe. Gostaria de terminar com um aforismo irónico, mas não posso." Não me interessa saber mais sobre o devaneio amoroso. Cioran entrou na filosofia pelo curral. Um afilhado de Dionísio que praticou a sátira e a ironia como poucos. Usou-as para defesa e ataque; em relação às coisas grandes, às coisas pequenas e a si mesmo. Custa-me vê-lo velho, incapaz de escrever um aforismo irónico quando mais precisava. Demasiado preso a si, sem qualquer ponto de fuga, sem riso, sem alívio. Como todos nós. Como Minetti com os atilhos das ceroula...