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Cheias de graça

Nos seus filmes, Ford não nos fala do oeste real, faz um comentário em segundo grau do mito popular do oeste. Os seus filmes são um mito ao quadrado. Não se trata de converter em mito o Oeste real, mas, partindo de um mito popular, conferir-lhe dignidade estética, por assim dizer; refiná-lo, poli-lo, elevá-lo ao mais alto grau, destilá-lo, o que se quiser; pôr esse mito de andar por casa num pedestal, conseguir  disfrutar dele ao máximo. Talvez a sua atitude não seja muito diferente da dos grandes compositores quando fazem obras a partir do folklore. Ainda para mais tendo em conta que, para Ford, o principal é a música. Para ele, um mito é sobretudo musicalidade. E também arte plástica e poesia, como já assinalamos em relação à «trilogia». Claro que Ford não é um homem da cultura, como esses grandes compositores, mas o que acontece é que quando querem fazer alta cultura com Buffalo Bill, sai um filme de Altman.  Ford é um apaixonado da cultura popular, como têm de ser todos os...

A complicated dialectic

Our first glimpse of Wayne is so sensational and unusual — the camera’s quick track forward as Wayne twirls his rifle — that we may experience today as Ford’s prophetic introduction of The Great Western Star. But there was no reason to suspect in 1939 that Wayne would become a god. Ford is introducing The Ringo Kid , who is already a god, with Monument Valley behind him evoking eternal truth. With many other moviemakers — Howard Hawks, for example — landscapes are bare, transcendentals are missing, along with families, social classes, races, anything that defines people. In contrast, with Ford there is always a complicated dialectic — a drama, conflict, tension — between an individual and the culture, mores, values, traditions, religion, race, sex, class and profession which a person lives in like a fish in water. John Ford — the man and his films, de Tag Gallagher

Not simply a valley, not simply a coach.

Monument Valley, on the Navajo lands in northern Arizona, made a sort of movie debut in Stagecoach and, always photographed with opulence, became a defining element in Ford’s harsh, stony West through six subsequent appearances. But even this first time, the valley is not simply a valley, but a valley melodramatized; and the coach is not simply a coach, but the historic mythos of «the West», like Greek temples.     John Ford — the man and his films, de Tag Gallagher

De mãos na cinta e cachimbo na boca

 

Maldição dos mortos

O Andy Rector contou-me que numa das sessões da Cinemateca, Tag Gallagher perguntou ao público se sabiam porque é tão tremendamente triste e trágico o último plano de O homem que matou Liberty Valance . Ele próprio ainda não conseguiu encontrar uma resposta clara. Acrescentou que era como se estivéssemos no comboio da civilização, mas não era bem isso que queríamos . É fácil argumentar que todo o filme tem essa amargura porque nos mostra que a democracia americana é construída sobre actos não muito dignos. No entanto, acordei de noite e isto veio-me de novo à cabeça e tomou conta da insónia. A minha resposta incorria num erro básico de perspectiva: uma vez que tinha abordado o filme de um ponto de vista político, não via o resto. Mas o comentário de Tag conseguiu desinquietar-me e obrigou-me a repensar. Não se trata apenas daquele plano, creio, é todo um bloco que começa quando Stoddard fecha a porta do barraco transformado em câmara ardente e vê a flor de cacto sobre o caixão...
(...) De manhã, no início do 4º acto, Michaleen Oge Flynn interpreta mal a cama partida: « Impetuous! Homeric! ». Já que falámos de mitos, julgo que este comentário, que o cocheiro há-de repetir, é outro sinal de Ford para nos indicar por onde andam os seus interesses. Sean seria então um Ulisses que regressa à sua Ítaca de Innisfree onde encontra uma Penélope respondona e tem de lutar com um cunhado selvagem. Simetrias — os 5 actos nos filmes de John Ford, de Paulino Viota (página 106).

La mirada de John Wayne

Em «Simetrias — os 5 actos nos filmes de John Ford», Paulino Viota elogia os textos de Javier Marías sobre o realizador americano. Como estou sempre na disposição de me desviar do caminho traçado, fui procurá-los. O que Marías escreveu sobre o olhar de John Wayne depois de beijar Maureen O’Hara no cemitério é formidável ( El reino de la posibilidad , El País Semanal, 16 de março de 2014) . Eles estão encharcados pela chuva e colados um ao outro e apaixonados, sim. Mas há uma certa gravidade nos olhos de Wayne — como se tivesse encontrado e perdido não se sabe o quê nesse preciso instante —, qualquer coisa que é quase uma tristeza ( uma tristeza doce , diria Walser). Através desse olhar, percebemos como são complicadas as relações entre homens e mulheres. Como nos filmes Passion , de Godard. Ou em Onde Jaz o teu Sorriso? , quando Danièle (que é uma verdadeira mulher de Ford, como todas queremos ser) diz: Sicilia! ... se nos apaixonámos e nos apeteceu fazer o filme foi po...

Coisas visíveis

Fort Apache é um filme magnífico que permite imensas leituras (políticas, musicais, éticas, cinematográficas,…) não só do que é visível, mas também das elipses fundamentais (como lhe chama João Bénard da Costa, com imensa pontaria) que ficam para sempre dentro da nossa cabeça a desinquietar (por exemplo, a enigmática relação entre Thursday e Collington). Das coisas visíveis, destaco uma frase e uma sequência. Referindo-se ao marido que vai nessa manobra funesta planeada pelo tenente-coronel Owen Thursday, Emily Collington diz: Não o vejo. Tudo o que vejo são as bandeiras . Depois do massacre, há um confronto entre o pelotão de John Wayne e os apaches. Wayne aceita a derrota, atira ao chão o coldre com as armas (num plano em que percebemos a admiração de Huillet e Straub) e avança até Cochise. No plano seguinte os índios desaparecem no pó.

Três mulheres

Para o matadouro

1. O encontro de Thursday com Cochise em Fort Apache é brutal — não só pelo massacre consequente, mas principalmente pelas ressonâncias políticas que ainda hoje provoca. Tudo o que o chefe apache reclama ao tenente-coronel é justo e devido. Em oposição, o comportamento dos americanos é infame: Thursday não respeita o acordado, menospreza os conselhos de York e as reivindicações de Cochise e ataca (aliás, já tinha decidido isso na véspera). Como é fácil de prever, a desproporção dos americanos e a colocação táctica dos índios transforma o confronto numa carnificina. 2. O capitão Kirby York foi sempre contra esta estratégia ambiciosa e cega, mas no fim, perante os jornalistas, (depois de um brevíssimo estremecimento?) mente e glorifica o impiedoso tenente-coronel. Straub pergunta: Como pode a história oficial ser o tapete sob o qual escondemos as falhas de uma nação; e a democracia, o tecido com que os bárbaros se vestem de respeitabilidade? Essa última cena é terrivelmente amar...

Desfile de modelos militares (in paise of Aura Lea)

O que mais me agrada no livro de Paulino Viota sobre John Ford é a forma como ele concilia uma análise estrutural quase científica (método, hipóteses, verificações, etc.) com belíssimas intuições: sim, «podemos ver The Long Gray Line como um desfile de modelos militares ou como um desses livros ilustrados sobre a evolução dos uniformes». John Ford havia de gostar desta descrição simultaneamente directa e esquiva. P.S. O casaco de Marty ainda tem a etiqueta da loja.

«Vamos arrancar-vos o coração»

Sempre que volto a ver um filme de John Ford, fico presa. Já conheço as personagens, os actores, as paisagens — é tudo familiar e essa proximidade leva-me a perceber melhor as razões (ou contradições?) de cada um e a  profundidade de campo da história . No caso d’ O homem que matou Liberty Valance (1962) , há um traço que divide os territórios de Tom Doniphon e de Ransom Stoddard. Ambos desejam mais ou menos o mesmo, mas um acredita que a justiça é uma coisa pessoal que passa pela defesa armada rápida (ou ataque, se for caso disso) e o outro acredita na protecção da lei (e dos livros) para todos. Um representa o passado; e o outro, o futuro de uma república democrática fundada sobre uma Constituição cujo preâmbulo abre com as palavras «nós, o povo». Ora nem mais, o povo. O filme começa com Doniphon dentro de um caixão simples e barato, sem pistolas nem botas, um tipo que não tem onde cair morto está para ali à espera de voltar à terra a que sempre pertenceu. Stoddard, pelo contrári...

Um pouco

O amor de Ethan e Martha é dos mais velados da história do cinema. Não sabemos o que aconteceu entre eles. Há alguns indícios: gestos, olhares, silêncios — mas não passam de subentendidos. Apenas podemos tentar adivinhar. A pista mais evidente é também a mais difícil de reconhecer porque não incide sobre nenhum dos dois; trata-se da recriação do que se passou há muitos anos, só que agora as coisas entre Martin Pawley e Laurie Jorgensen são ligeiramente diferentes. Ford mudou um pouco a expressão , como se faz na música.
(Talvez o laço mais forte entre os filmes de Pedro Costa e John Ford seja uma tremenda habilidade dos actores para falarem com os mortos.)

Think back, Pilgrim!

Vou finalmente acabar de o texto sobre O Homem que Matou Liberty Valance . Já tinha definido a linha condutora, mas estava parado há quase um ano. Sabia que era um texto composto por apenas três segmentos — mas não sabia bem porquê. Ou como? Só hoje de manhã, ao sair do metro e caminhar à chuva e molhar-me toda é que compreendi a minha ideia. É sombria.

A Barcelona

Retrospectiva i cartablanca a Paulino Viota:   Las ferias,  José Luis,   Tiempo de busca, Fin de un invierno,  Duración, Contactos,  Con uñas y dientes,  Cuerpo a cuerpo,  (P. Viota) Der Bräutigam, die Komödiantin und der Zuhälter  (Danièlle Huillet i Jean-Marie Straub) Staroie i novoe (S. Eisenstein) Hatari! (Howard Hawks) The Sun Shines Bright (John Ford) Roma (F. Fellini) Bande à part (Jean-Luc Godard)

Com os olhos bem fechados

Também vejo cenas de cinema sem ser em filmes.  A história Jemmy (mais imitação do que tradução) que faz parte d’ As Filhas do Fogo (um trabalho de montagem para provar aos outros que não estava maluco) é um western de John Ford (ao nível de Seven Women ou The Quiet Man ).