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Aprender a conviver com os ratos

Uma das coisas que invejo a Cioran são os passeios nocturnos com Beckett pelas ruas de Paris. Gosto de imaginar as conversas sobre palavras que não existem, as interjeições de Cioran e os silêncios de Beckett. As ruas ainda sem turistas, vazias. Também consigo ver o lixo e os ratos. Ah, os ratos.

Bicharada

25 de dezembro de 1959  Recebo um postal de natal de um poeta espanhol, com a reprodução de um rato.  Símbolo, diz ele, de tudo o que podemos «esperar» do ano de 1960. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Rentrée

Recordo que naqueles anos não muito distantes de 70 houve uma greve de lixeiros em Paris e a cidade estava coberta de lixo. As ratazanas roçavam as pernas dos transeuntes e um fumo excrementício emanava das montanhas de matéria decomposta. Todos os dias, enquanto durou a greve, Beckett telefonava a Cioran para irem dar um passeio juntos. “Paris nunca foi tão bela”, comentava Beckett com exaltação juvenil. 

Um refugiado em casa

Nada do que li de Cioran me esclareceu tanto sobre a complexa e delicada trama do seu espírito como aquela visita, há mais de 20 anos, na companhia de Fernando Savater. Fomos vê-lo às suas águas-furtadas no Bairro Latino — uma chambre de bonne de um ascetismo semelhante ao de Dreyer, pintada de branco até ao chão e com uma salamandra de ferro no meio, certa tarde de fevereiro ou março, já não me lembro, com um frio de rachar. A salamandra, que parecia uma divindade primitiva e malévola naquele refúgio evidentemente santo, estava apagada. Nessa altura, Savater andava a traduzir Cioran para aquela editora Taurus dirigida por alguém que ainda não tinha conseguido enobrecer o sangue, e ninguém conhecia o romeno. Recordo que naqueles anos não muito distantes de 70 houve uma greve de lixeiros em Paris e a cidade estava coberta de lixo. As ratazanas roçavam as pernas dos transeuntes e um fumo excrementício emanava das montanhas de matéria decomposta. Todos os dias, enquanto durou a greve, Be...

Ou amendoins

Cioran rende muito, para além das traduções ainda dá para notas de tradução: Ao traduzir os textos de Cioran sinto-me como quando era miúda e calçava os sapatos prateados da minha mãe. Agora os sapatos servem-me, mas continuam a não ser meus. Não basta a actividade intelectual — para entender melhor as palavras de Cioran é preciso ter um historial clínico dinâmico. As traduções de Cioran beneficiam: de uma falta de trabalho crónica, da luz que entra pelas janelas, do efeito do café forte, do som arrastado dos barcos no rio e, acima de tudo, da presença de uma ratazana gorda no jardim. Sempre que Cioran escreve sobre Deus e o princípio do mundo, é como se estivesse a falar de um caso policial. Para me livrar do tédio, entretenho-me a traduzir silogismos ao acaso. Nesta frase, Cioran apenas aprovaria “ao acaso”. — O tédio, quando surge, deve ser aproveitado devagar, até ao fim, para além do fim.