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O mar, o mar

Voltei a sonhar com o mar: estávamos a mudar o sistema operativo do mar numa cabine lá no alto, uma espécie de farol horizontal sobre as dunas. Não sabíamos como é que aquilo ia correr, nunca tinha sido feito. Havia água a toda a volta mas era o mar à frente que metia medo pois as correntes eram muito fortes e deixavam sulcos profundos. O mar parecia um desenho feito de cabelos azuis e castanhos e estavam todos enredados e sombrios. De manhã, no metro, tentei guardar as imagens na memória e, talvez porque se sentou ao meu lado um rapaz a ler uma bíblia com capa castanha, logo a seguir ocorreu-me que deus também podia ser um sistema operativo —  mas isso não é um cliché?   Foi aí que percebi: ei, lá estou eu a escrever canções para a Laurie Anderson .

Deus está em casa e pode ouvir

Uma mulher e um miúdo pequeno estão sentados nas escadas da Igreja da Lapa, à espera do autocarro. O miúdo brinca com uma máscara cirúrgica. Nisto, um golpe de vento arranca-lhe a máscara da mão e atira-a para longe. O miúdo grita «ai, caralho, a minha máscara» e corre atrás dela. A mãe repreende-o num cerrado sotaque tripeiro: «Não digas asneiras à frente da igreja, grande morcão!»

Unicórnios

Um dos candidatos à Câmara de Lisboa promete transformar a cidade numa «verdadeira fábrica de unicórnios» . O unicórnio, sabemo-lo pelas Escrituras, foi das poucas criaturas que não entrou na Arca de Noé, não alcançou o Monte Ararat e não escapou ao dilúvio. Deus deve estar furioso.

Maman

Confundir Deus com uma aranha ou vice-versa — acho que já consigo fazer uma lista de personagens que passaram por isso. Mas não sei como classificar o fenómeno: êxtase religioso ou sintoma psicanalítico? Ou um e outro são a mesma coisa? 
O vinho fez mais para aproximar os homens de Deus que a teologia. Há muito tempo que os bêbados tristes — mas haverá outros? — superaram os eremitas. Lágrimas e Santos, Emil Cioran (tradução a partir da versão francesa).

Uma geração de frangos sem asas

As cartas mais divertidas são as que Flannery O’Connor escreveu à desconhecida “A”.* Logo na primeira carta (20 de julho de 1955), terceiro parágrafo: Para além de idiota, a crítica do New Yorker não estava assinada. É um daqueles casos em que é fácil ver que o sentido moral foi eliminado de certas faixas da população, do mesmo modo que eliminaram as asas de alguns frangos para produzir mais carne branca. É uma geração de frangos sem asas — era a isto, suponho, que Nietzsche se referia quando afirmou que Deus estava morto. ———————- * Não assim tão desconhecida. Chama-se Hazel Elizabeth "Betty" Hester . Felizmente ainda ninguém fez um filme sobre a sua vida.

Ou amendoins

Cioran rende muito, para além das traduções ainda dá para notas de tradução: Ao traduzir os textos de Cioran sinto-me como quando era miúda e calçava os sapatos prateados da minha mãe. Agora os sapatos servem-me, mas continuam a não ser meus. Não basta a actividade intelectual — para entender melhor as palavras de Cioran é preciso ter um historial clínico dinâmico. As traduções de Cioran beneficiam: de uma falta de trabalho crónica, da luz que entra pelas janelas, do efeito do café forte, do som arrastado dos barcos no rio e, acima de tudo, da presença de uma ratazana gorda no jardim. Sempre que Cioran escreve sobre Deus e o princípio do mundo, é como se estivesse a falar de um caso policial. Para me livrar do tédio, entretenho-me a traduzir silogismos ao acaso. Nesta frase, Cioran apenas aprovaria “ao acaso”. — O tédio, quando surge, deve ser aproveitado devagar, até ao fim, para além do fim.

Tétris

Tento imaginar deus a jogar um videojogo, repetida e obsessivamente. Uma espécie de tétris com figurinhas brancas em perpétuo movimento. A imagem que me ocorre é a de Dance , de Lucinda Childs.