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Um turista mexeu

Notícia no jornal: «O relógio da Torre dos Clérigos, no Porto, está atrasado 40 minutos desde segunda-feira, após um turista ter mexido num dos seus veios mecânicos.»  De repente, um turista trapalhão lança toda a cidade num salto mirabolante pelo abismo do tempo. Um pequeno gesto involuntário e o Porto passa a ser o único lugar do mundo que avança segundo uma escala temporal diferente. 40 minutos, 40 horas, quem sabe 40 anos fora do tempo. Ou simplesmente — outra hipótese — o turista não resistiu ao apelo erótico do veio mecânico do relógio dos Clérigos e tocou-lhe. Com a ponta dos dedos, com a mão toda, talvez.

Postal

Quando saí da biblioteca, sentei-me a apanhar sol e a ler as contracapas. A avenida das tílias parecia um corredor de um aeroporto: franceses, italianos, chineses, alemães, muitos espanhóis. Eu própria desempenhava um papel turístico:  mulher local a ler ao sol .

Pessoas desconhecidas em álbuns de família

Manhã de sábado, esplanada da Leitaria. Um guia turístico, vindo dos Leões, aproxima-se, erguendo no ar um guarda-chuva fechado, como um pára-raios a apontar para o céu. Atrás dele, uma palmípede fila de 15 ou 20 turistas. O guia pára junto à esplanada, espera pacientemente que os turistas formem à sua frente um semicírculo perfeito e começa a apresentar a Leitaria: «Fundada em 1920», «há várias gerações que os portuenses amam e frequentam a Leitaria», «a especialidade são os éclairs», «todos os dias produzem mais de 35.000 bolos», «o sucesso levou a casa a expandir-se para outros locais, incluindo o Corte Inglês, em Gaia»… Os turistas tiram fotos à fachada de plástico, às mesas compradas no IKEA, ao preçário com imagens dos bolos, às pessoas que estão sentadas na esplanada. Olho à minha volta. Devo ser o único portuense naquelas fotografias.

Pesadelo perfumado

Diz-se que viajamos para ver o mundo. Que mundo vêem os turistas que viajam até ao Porto? Que pesadelo perfumado filmaria Kidlat Tahimik na nossa cidade?

Il fiore del partigiano

Todos os dias, ao fim da tarde, aparecem dois músicos de esplanada. Um toca banjo e o outro clarinete. O segundo também canta. O repertório é quase sempre o mesmo e termina com Bella Ciao : «Una mattina mi son svegliato/ E ho trovato l'invasor.» Espalhados pelas mesas, entre cocktails sofisticados, tábuas de queijos e tostas de abacate, os turistas acompanham a plenos pulmões: «E se io muoio da partigiano/ O bella, ciao, bella, ciao, bella, ciao, ciao, ciao!»

Chamada

No Largo de Mompilher, junto à esplanada do Candelabro, resta ainda uma cabina telefónica de estilo inglês. Os turistas que passam, sorriem como se reconhecessem um velho parente desaparecido, tiram fotografias com o telemóvel e seguem caminho. De vez em quando, um turista entra na cabina, tira o telefone do descanso e faz uma pose como se estivesse numa chamada. Do outro lado da linha, imagino um fantasma cansado, que repete, lenta e vagamente: — É engano. Ligou para o número errado.

Cadernos

Nas esplanadas, há sempre um ou outro turista a escrever em caderninhos. Na mesa ao lado, estão duas raparigas a escreverem nos respectivos caderninhos. O que escreverão elas? Também escrevo em caderninhos. Estou justamente a escrever isto num caderninho semelhante ao das raparigas que estão na mesa ao lado. E quando não estou no Porto, também escrevo. Nos lugares onde sou turista, farão a mesma pergunta a meu respeito? «O que estará aquele tipo a escrever no caderninho?» Talvez as raparigas estejam a escrever exactamente isto no caderninho delas.

Dinheiro

8h40. Apesar da hora e de ameaçar chuva, o Jardim do Morro está repleto de turistas. Uma mulher comenta em voz alta para toda a gente na carruagem do metro ouvir: — Olha os turistas! Um ror deles… E ainda dizem que não há dinheiro. Não há é na minha carteira.

Porto

Recomeçou a chover. As ruas esvaziaram-se de turistas. Desço a Lapa até à Baixa sem me cruzar com praticamente ninguém. De repente, a cidade retoma o tom cinzento, triste, belo. A cidade que, em dias de sol e de turismo, já só existe nas traseiras ou na nossa memória.

Observações avulsas sobre a boavista #7

"I’m glad I’m up here seeing these ancient rivers of ice before they disappear."  People definitely say that. — Hum? De certeza que isto não é um conto de George Saunders?