Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens com a etiqueta Serguei Dovlatov

Dois Dovlatov

É de mim ou no livro editado pela Antígona há dois Dovlatov? Há o Dovlatov de Leninegrado, de «O livro invisível», fresco, ágil, armado de uma ironia tenaz e de um humor formidável, na melhor tradição da literatura russa do século XX, de Daniil Harms a Zamiatine ou Zoshchenko, embora irremediavelmente preso no interior do cerco montado pela absurda e tirânica burocracia soviética. E há um segundo Dovlatov, o de Nova Iorque, de «O jornal invisível», livre para pensar e escrever, e que, no entanto, é um autor cansado, sem ideias vivas, sem mão, que se arrasta pelas páginas como um velho mestre cego. Até as anedotas do Dovlatov nova-iorquino não têm a mesma graça do de Leninegrado. Que conclusão tiramos disto? Só o diabo sabe, como disse Erik Bastin.

As águas do Neva

Dovlatov prova (como se fossem precisas provas; mas eu tinha de começar o texto por algum lado...) que o absurdo não é uma distorção caprichosa da realidade, mas a própria realidade. Os episódios biográficos que descreve em «O livro invisível» mostram que as histórias de Daniil Harms , por exemplo, são tão plausíveis como uma mosca no tecto ou um pedacinho de madeira a flutuar nas águas do Neva.

Vou-lhes contar como isto se passou

Certa vez, Bitov deu uma bofetada a Andrei Voznesenski. Bitov foi sujeito a um juízo dos companheiros. Estava numa situação mesmo má. «Ouçam-me», disse Bitov, «e hão-de compreender! Vou-lhes contar como isto se passou! Quando o fizer, vão convencer-se de que agi correctamente. E então vão-me desculpar logo. Deixem-me desabafar. Foi assim. Entro no restaurante. Vejo o Andrei Voznesenski parado. E agora digam-me: podia evitar dar-lhe uma bofetada?» Serguei Dovlatov, O ofício . Tradução de Galina Mitrohovitch.

Influenciadores do século XX

Brodski contrariava uma qualquer norma extremamente importante

(...) Brodski criou um modelo inédito de comportamento. Não vivia num estado proletário, mas num mosteiro do seu próprio espírito. Não lutava contra o regime. Simplesmente não dava por ele. E mal sabia da sua existência. A sua falta de conhecimento da vida soviética parecia fingida. Por exemplo, andava convencido de que Dzerjinski estava vivo. E que Komintern era o nome de um grupo musical. Não reconhecia os membros do Politburo do Comité Central. Quando, na fachada do seu prédio, afixaram um retrato de seis metros de Mjavanadze, Brodski disse: — Quem é este? Faz lembrar William Blake... O comportamento de Brodski contrariava uma qualquer norma extremamente importante. E foi desterrado para a região de Arkhangelsk. O poder soviético é uma dama melindrosa. Quem a ofende, sofre. E é pior ainda para quem a ignora... Serguei Dovlatov, O Ofício. ANTÍGONA. Outubro 2018. Páginas 42 e 43.