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Mensagens

A mostrar mensagens de agosto, 2020

Shanqarani

(...) “O teu poema é comovente,” disse Abu al-Anbas, “mas o que significa shanqarani ?” “Ó, essa é uma palavra antiga. Hoje em dia, só a ouves na poesia de burros.” O Burro de Abu Al-Anba, por Eliot Weinberger.  

Máscaras e palavras

Sou meio duro de ouvido. Acontece-me por vezes não perceber à primeira o que me dizem. Por timidez, nem sempre peço para repetirem. Com as máscaras, o problema generalizou-se e eu desisti. Há conversas em que consigo perceber apenas algumas palavras. Mas será que ouço as palavras correctas ou simplesmente imagino-as? Quantos diálogos extravagantes não têm acontecido nestes tempos de pandemia? Quantas histórias paralelas não têm vivido as pessoas duras de ouvido?

Obras

Os tipos das obras escreveram “FIM” no cimento junto à porta do edifício onde vivo. A palavra — letras maiúsculas, vermelho sangue de boi — ocupa mais ou menos dez por dois centímetros. Vai desaparecer quando fizerem o novo piso de alcatrão. Classificação: ao nível das melhores obras efémeras de Banksy. Ofusca os monstrengos da Joana Vasconcelos.

Banalidades

- Então não tem mesmo respeito nenhum pela sua arte? - Pela minha arte? Porque deveria ter mais respeito pela minha arte do que pela de qualquer outro? - Mas interpretou os grandes papéis; interpretou Shakespeare, interpretou Hamlet, não foi? Nunca se sentiu tocado na essência do seu ser ao proclamar o profundo monólogo «Ser ou não Ser?» - O que quer dizer com profundo? - Bem, profundo e penetrante! - Explique-se. O que tem de tão profundo dizer coisas como «Devo ou não matar-me? Ficaria feliz por cometê-lo se soubesse o que existe depois da morte (como qualquer outra pessoa). Mas não sabemos, por isso não nos atrevemos a tirar as nossas próprias vidas.» O que tem isso de profundo? - Bem, se o coloca desse modo... - Exactamente. Não tenho dúvidas de que pensou em tirar a sua própria vida em alguma altura, não pensou? - Sim, toda a gente o fez. - E porque não o fez? Porque, como Hamlet, não se atreveu, porque não tem a certeza do que existe depois! Estava então a ser especialm

Influenciadores do século XX

Como seres humanos e não como livros

No seu estado parcialmente inebriado, Falk sentia-se muito bem: aquele sítio era quente, luminoso, barulhento e fumarento, e encontrava-se rodeado de pessoas cujas vidas prolongara por algumas horas e que, por conseguinte, estavam tão contentes quanto moscas reavivadas pelos raios do sol. Sentiu-se parte de uma unidade que com eles formara, uma vez que, no geral, eram infelizes, modestos e educados; percebiam o que ele dizia e, quando falavam, expressavam-se como seres humanos e não como livros. August Strindberg, O salão vermelho . Tradução de João Reis.

Há três tipos de melancolia

Emil Cioran: (…) a música deve deixar-nos loucos, senão não vale nada. Sylvie Jaudeau: Em suma, a música confronta-nos com este paradoxo: a eternidade presentida no tempo. Emil Cioran: É de facto o absoluto apanhado no tempo, mas incapaz de aí permanecer, um contacto ao mesmo tempo supremo e fugitivo. Para que permanecesse, seria necessária uma emoção musical ininterrupta. A fragilidade do êxtase místico é idêntica. Nos dois casos, o mesmo sentimento de incompletude, acompanhado por um lamento dilacerante, uma nostalgia sem fim. Sylvie Jaudeau: Essa nostalgia é precisamente a base da sua visão do mundo. Como é que a define? Emil Cioran: Esse sentimento está ligado em parte às minhas origens romenas. Por lá, impregna toda a poesia popular. É um desgosto indefinível que em romeno se diz dor , próximo do Sehnsucht dos alemães, mas sobretudo da saudade dos portugueses. Sylvie Jaudeau: Você escreveu: “Há três tipos de melancolia: russa, portuguesa e húngara." Emil

Picar o ponto

«A vida é uma festa, vamos vivê-la juntos», repetiu Guido Anselmi, ontem à noite, em Oito e meio . Depois, o filme acabou, saímos do cinema e regressámos a casa. Esta manhã, entrei ao serviço às nove em ponto e a sensação foi a de que tinha mordido um prego. «A vida é uma festa.» Talvez ainda tenha de morder muitos pregos até aceitar esta verdade felliniana, sem fazer perguntas.
Ouvi a expressão no noticiário da TSF, à hora do almoço, a propósito da final da Champions: inerência da superação . Significa  ganhar o jogo  mas, dito assim, parece que as palavras estão sentadas na cadeira do dentista.

Beringelas, músculos, comboios.

Para além dos filmes, Christian Petzold é bom, mesmo muito bom, nas entrevistas. Quando fala sobre cinema, claro: I have a working structure that I’ve used since making The State I Am In (2000). The actors all come to set at 8 a.m. without any makeup, just their costumes. And the only people who are there are them, me, and someone with coffee. We start to rehearse what we want to accomplish on this day, and it takes us three or four hours to find the choreography of it. It takes some time, and the producers want to commit suicide because nothing happens. But we find the choreography, and then we get the cinematographer and the sound and lighting departments, and we show them what we’ve done. When the actors go into makeup, the cinematographer, the editor, and I talk about how we can film this, and it doesn’t take more than a half-hour to make a storyboard. We write it down and then Hans [Fromm] does the lighting and the actors come back. We do one take, and then at four o’clock we c

Pontualidade

Esta manhã, quando li no jornal a nova lista de baixas, tropecei num nome que me é familiar, do noivo da minha irmã. Uma hora mais tarde, o carteiro entregou-me uma carta de sobrescrito redigido com a letra do morto e dirigida ao meu falecido irmão, mobilizado ao mesmo tempo que ele. Um morto a escrever a outro é bem melhor do que um morto escrever a um vivo, como no caso daquela mãe que foi recebendo cartas do filho durante um mês e já tinha lido no jornal o relato da sua horrível morte, esfacelado por uma granada. Carinhoso filho esse, que em todas as cartas esbanjava palavras de afecto e consolo, de jovem e inocente esperança na sua boa sorte. Depois de morto continuava com uma pontualidade satânica a falar da vida, ao ponto de a sua mãe duvidar de que tivesse morrido. Leonid Andreiev, Riso vermelho . Tradução de Aníbal Fernandes.

Comparações

Christian Petzold gostaria de fazer filmes como as pinturas de Giorgio Morandi – sem anseios por contraste ou descobertas a cada novo filme, com um número limitado de objetos. Nesta entrevista , Christian Petzold diz: se ela (Nina Hoss) fosse um homem, seria Robert Mitchum em The Lusty Men . E sobre Nelly Lenz:  Num Western, ela seria John Wayne .

Maneiras e lágrimas

Ainda sobre a cena dos “pensamentos duplos”, é aí que Keller diz duas das falas mais engraçadas do livro sobre maneiras : — Quais esmeraldas? Oh, príncipe, o senhor vê a vida ainda com tanta inocência e ingenuidade, vê a vida, pode até dizer-se, de maneira pastoril! — Impossível?! — exclamou Keller pesaroso. — Oh, príncipe, até que ponto o senhor continua a compreender uma pessoa, por assim dizer, à maneira Suíça! E utiliza sete vezes a palavra “lágrimas” no seu choradinho, chegando ao ponto de exclamar: (...) Deste modo, preparei a confissão como quem, por assim dizer, prepara uma “ fines-herbes de lágrimas” (...). Ora, com tantas maneiras bucólicas e lágrimas frequentes, como é que Cioran não havia de ler, reler, gostar dos livros de Dostoiévski?

Os pensamentos duplos

É uma cena curta e discreta só com duas personagens; não chega a ocupar quatro páginas. Passa-se na casa de campo de Lébedev, em Pávlovsk, onde o príncipe Míchkin está hospedado. Ao anoitecer, Keller irrompe pelo quarto do príncipe com confissões várias tentando desculpar-se indirectamente pelo artigo difamatório publicado no jornal, mas também cravar alguns rublos. Míchkin apercebe-se da duplicidade do gesto e desmascara-o sem, no entanto, o julgar. Em vez disso, Míchkin isola o procedimento mental de Keller, descreve e explica os pensamentos duplos — como um professor na sala de aula. É um assunto que ele conhece por dentro, que o preocupa e assusta cada vez mais: dois pensamentos opostos que coincidem e — provocam uma desordem, uma hecatombe? Sem saber, Míchkin estava quase a criar um conceito filosófico. Agora é tarde demais.
Phoenix mostra o que é um filme, como se faz um filme. Para além da transformação de Nelly, Christian Petzold também conta uma história do cinema. Os gestos são muito subtis, quase um movimento inconsciente, o oposto de Godard.

São gente prática

— Não, não são propriamente niilistas — adiantou Lébedev, que também quase tremia de emoção —, são outros, muito especiais, o meu sobrinho diz que eles vão mais longe do que os niilistas. Não pense que os embaraça com a sua presença, excelência; eles não se deixam atrapalhar. Os niilistas, em qualquer caso, às vezes são gente culta, com muitos conhecimentos, mas estes foram mas longe porque, em primeiro lugar, são gente prática. No fundo, são uma consequência do niilismo, mas não directa, antes “por vias travessas”, e não se limitam a manifestar-se nuns desgraçados artiguelhos de revista, mas agem, directamente, na prática; não se trata da inutilidade, por exemplo, de um qualquer Púchkin nem, por exemplo, da necessidade de desintegração da Rússia; não, agora, literalmente, considera-se que existe o direito, caso nos apeteça muito qualquer coisa, de não parar diante de nada para a conseguir, nem que para isso seja preciso despachar oito pessoas. Eu não lhe aconselharia, príncipe... O

O Idiota — primeira parte

O romance começa dentro de uma carruagem de terceira classe do comboio Varsóvia-Petersburgo. O príncipe Míchkin regressa da Suíça, onde durante quatro anos tentaram tratar a sua doença nervosa do género da epilepsia . Parfion Rogójin vem de Pskov, da casa da tia onde se curou das terçãs. Convalescentes, os dois. Um comboio é um bom princípio; já está tudo em movimento — a caminho de Petersburgo e das desgraças. Ainda não sabemos, nem os leitores nem as personagens, mas o príncipe Míchkin e Parfion Rogójin têm a mesma missão: receber uma herança e resgatar a concubina Nastássia Filíppovna. Os dois rapazes (vinte e seis, vinte e sete anos) são duplos opostos; cada um avança numa direcção diferente do tabuleiro. O casamento com Rogójin a troco de cem mil rublos é a perdição certa de Nastássia. Mais, é a perdição dentro da perdição, se assim se pode dizer. Um fim perfeito e coerente. Atrai Nastássia para o abismo da inevitabilidade. (Talvez os russos tenham um provérbio para dizer “o

Ética

Um homem estava seguro de qualquer coisa. Não se sabia por isso o que lhe fazer. Foi posto sucessivamente em prisão, na tribuna, no trono, no asilo de lunáticos, quis-se matá-lo. Outros pensavam em obrigá-lo a fecundar mil mulheres escolhidas. Finalmente, cansado de todos estes avatares, declarou que não estava certo de nada e deixaram-no em paz. Aproveitou para escrever uma Ética, que é um dos livros mais importantes do mundo. Porque toda a gente fala dele e o invoca mas ninguém o leu. Paul Valéry, Fragmentos narrativos . Tradução de Leonor Nazaré.

Terra

Três dias na casa onde nasceu e cresceu o meu pai. Uma velha casa de camponeses pobres, enterrada no termo de um caminho estreito. Nas cortes onde estavam os animais é agora a cozinha. E onde era a cozinha são hoje os quartos. De resto, tudo continua igual. O meu pai parece nunca ter saído daqui. Sessenta anos fora: poeira e vento que passou a correr. A «aldeia», a «terra». Como um sinal na pele que se não consegue tirar. Por mais que olhe para este mundo antigo, nunca terei olhos para o ver.

Filosofia e vacas

Como seria de esperar — bom, como eu esperava —, logo na página 115 surge uma definição de filósofo. Dostoiévski entrega a tarefa a uma personagem um bocado avariada da cabeça ou, pelo menos, destravada. No seu primeiro encontro com Nastássia Filíppovna, Ardalion Aleksándrovitch diz: (...) Em todos os outros sentidos, vivo como um filósofo, ando, passeio, jogo damas no meu café, como um burguês que se afastou dos negócios, e leio o Indépendance . É uma imagem suave (quase roça o tema das camisas brancas), fácil de pôr em prática. Continuo a preferir a cena das vacas escrita pela Lydia Davis — mais contemporânea e exigente?

Estão todos doentes

Resolvi aproveitar as férias para reler “O Idiota”. Nas primeiras cem páginas apanhei referências a epilepsia, dança de São Vito, terçãs, coqueluche e tísica. A trama confunde-se muitas vezes com um relatório clínico — deve ser por isso que Cioran gosta tanto de Dostoiévski.

Máscaras

Noémia Delgado, 1976.

Demonstração de efeito estroboscópico

Imaginem o encontro de Ludwig Wittgenstein com Emily Dickinson. Na floresta. Ainda é madrugada. Emily está sentada num banquinho na direita alta. Junto aos pés, uma caixa com duas tesouras, post-it amarelos, canetas de várias cores, um rolo de papel celofane, uma carteira de fósforos. Ludwig entra pela esquerda baixa a assobiar uma canção de Betty Hutton. Nada de camisas brancas. Os dois vestem roupa de trabalho de tons neutros e calçam botas robustas ( para atravessar pontes com fissuras ). Ludwig traz uma garrafa termos no bolso do casaco. O centro está assinalado por um X riscado no chão. Começa a função:
Uma palavra é morta quando é dita, dizem. Eu digo — apenas começa a viver nesse dia. Emily Dickinson Mais uma tradução para a  lista . Bastante seca. Quase, quase ao nível de um tradutor automático artificial. (Não me contive, acrescentei um travessão)

I tie my Hat — I crease my Shawl (443)

I tie my Hat — I crease my Shawl — Life's little duties do — precisely — As the very least Were infinite — to me — I put new Blossoms in the Glass — And throw the old — away — I push a petal from my Gown That anchored there — I weigh The time 'twill be till six o'clock I have so much to do — And yet — Existence — some way back — Stopped — struck — my ticking — through — We cannot put Ourself away As a completed Man Or Woman — When the Errand's done We came to Flesh — upon — There may be — Miles on Miles of Nought — Of Action — sicker far — To simulate — is stinging work — To cover what we are From Science — and from Surgery — Too Telescopic Eyes To bear on us unshaded — For their — sake — not for Ours — 'Twould start them — We — could tremble — But since we got a Bomb — And held it in our Bosom — Nay — Hold it — it is calm — Therefore — we do life's labor — Though life's Reward — be done — With scrupulous exactness — To hold

Agora somos todos fragmentistas

Emil Cioran: Acho que a filosofia já não é mais possível senão como fragmento . Sob a forma de uma explosão. Agora já não é possível desatar a escrever capítulo após capítulo, sob a forma de um tratado. Nesse sentido, Nietzsche foi eminentemente libertador. Foi ele quem sabotou o estilo da filosofia académica, quem atentou contra a ideia de sistema. Ele foi libertador, porque depois dele podemos dizer qualquer coisa... Agora somos todos fragmentistas, mesmo quando escrevemos livros aparentemente coordenados. O que liga bem com o nosso estilo de civilização. Fernando Savater: Isso também está de acordo com a nossa probidade. Nietzsche dizia que na ambição sistemática, há uma falta de probidade... Emil Cioran: A propósito de probidade, deixe-me ainda dizer uma coisa. Quando alguém se lança num ensaio de quarenta páginas sobre o que quer que seja, parte de certas afirmações prévias e fica prisioneiro delas. Uma certa ideia de probidade obriga-o a respeitá-las até ao fim, a não

"Todo signo sozinho parece morto"

No sábado fui à Biblioteca entregar os livros . Deixei o Wittgenstein — perigoso, intocável — em cima do monte das devoluções. Vai entrar em quarentena. Por coincidência, "Ludwig Wittgenstein" e "Quarentena" têm o mesmo número de entradas no blogue (30). Les jeux sont faits .

Presente perpétuo

Existe desde 1996 uma «Fundação do longo agora» (The Long Now Foundation), cujos promotores são personalidades conhecidas da contra-cultura americana e do high-tech . O seu projecto-farol, que não passa ainda de um work in progress , é um relógio gigantesco concebido para durar dez mil anos. O ponteiro maior avançará uma vez por ano, o pequeno uma vez de cem em cem anos e o cuco cantará a cada milénio... Prevê-se instalá-lo no Texas, na propriedade de Jeff Bezos, o patrão da Amazon e um dos financiadores do projecto, e torná-la num local de peregrinação, onde cada um será convidado a meditar a longo prazo. Que uma tal iniciativa parta daqueles que são os principais arautos e beneficiários do presentismo tecnológico é também um sinal. Será que têm remorsos e procuram redimir-se construindo um santuário a Chronos, o mesmo deus que ajudaram a destituir, com vista a reanimar o seu culto? Ou para se assegurarem de que está bem morto? François Hartog.