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Sonho

Instalaram uma prótese na perna esquerda do meu pai. O médico disse que era a única solução para ele conseguir recuperar alguma da mobilidade que perdeu nos últimos anos. Fui visitá-lo ao hospital. Contou-me que de noite tinha tido um sonho muito bonito. No sonho, corria e saltava como se fosse um miúdo outra vez.

Terra

Três dias na casa onde nasceu e cresceu o meu pai. Uma velha casa de camponeses pobres, enterrada no termo de um caminho estreito. Nas cortes onde estavam os animais é agora a cozinha. E onde era a cozinha são hoje os quartos. De resto, tudo continua igual. O meu pai parece nunca ter saído daqui. Sessenta anos fora: poeira e vento que passou a correr. A «aldeia», a «terra». Como um sinal na pele que se não consegue tirar. Por mais que olhe para este mundo antigo, nunca terei olhos para o ver.

Pai

O meu pai faz hoje 80 anos. Agora não tenho tempo para contar a história da vida do meu pai, mas posso pelo menos dizer que é um digno representante da velha classe trabalhadora. Reformou-se tarde e continuaria a trabalhar se lho tivessem deixado. Como tantos outros, nunca soube o que fazer ao «tempo livre». Se um homem nasce é para trabalhar. É uma questão de honra, dignidade, enfim, de respeito. Hoje, 1.º de Maio, é o dia dele, o dia do velho trabalhador. Devíamos estar juntos, como sempre aconteceu neste dia, mas o vírus fechou-nos em casa. Sem bolo, sem velas, sem bandeiras vermelhas.

Dezoito

O meu filho faz hoje dezoito anos. Quando eu tinha dezoito, o meu pai, que teria mais ou menos a idade que tenho agora, repetia vezes sem conta, como uma litania, que «tudo passa num ápice». Lembro-me de Myrtle, a actriz de «Noite de Estreia», de John Cassavetes, e da luta sem tréguas que ela trava com o papel que todos insistem em lhe atribuir: o de uma mulher que perdeu irremediavelmente a juventude. Uma luta cujo resultado será sempre a loucura ou a solidão. Em todo o caso, uma derrota. Ela sabe isso, todos sabemos isso, mas o instinto de sobrevivência força-nos a resistir. O meu filho faz hoje 18 anos. Sim, tudo passou num ápice. É como se recebêssemos uma carta que achamos que não nos pertence, apesar de apresentar no sobrescrito, em letras garrafais, o nosso nome e a nossa morada. É isso, não é, pai?