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Mensagens

Gente com asas

CRIANÇA: Mas que ideia é essa que se te meteu na cabeça, paizinho, de arrear um escaravelho para ires até aos deuses? TRIGEU: É que fui descobrir nas fábulas de Esopo, que só gente com asas foi capaz de chegar aos olímpicos. CRIANÇA : Incrível essa história que me estás a contar! Ah, pai, pai! Um bicho fedorento como esse ser capaz de chegar até aos deuses! TRIGEU: Pois chegou sim, em tempos que já lá vão, com raiva da águia. E, por desforra, arirou-lhe com os ovos para o chão. CRIANÇA: Tu devias era arrear um Pégaso alado, para apareceres aos deuses com um ar mais trágico. TRIGEU: O pior, minha cara amiga, é que para isso tinha de arranjar rações a dobrar. Ao passo que assim, seja o que for que eu manduque, com a mesma paparoca - nem mais nem menos - encho a pança aqui ao fulano. Aristófanes, A Paz . Tradução de Maria de Fátima Sousa e Silva.

Othon, de Huillet-Straub

O que há de mais sólido no mundo são as palavras. Creio que também é isso que Othon prova. As palavras são feitas de um material próprio, cujo segredo os próprios físicos ignoram. Os carros continuarão a circular em Roma até serem substituídos por outra coisa qualquer. Os regimes cairão em silêncio ou com estrondo, e outros surgirão em seu lugar. O tempo continuará a produzir ruínas. Mas aqueles personagens permanecerão ali, onde sempre estiveram, a dizer aquelas palavras, até não restar mais nada.

Exercício de tradução

Othon é um filme violento . Não só são violentas as tramas que se urdem no império romano pela luta pelo poder — quem irá suceder a Galba? — mas toda a forma como Danièle Huillet e Jean-Marie Straub levantam o texto de Corneille .   Filmar ao ar livre, nos montes Capitólio e Palatino em Roma, cenas que são de gabinetes e corredores onde é normal esconder as intenções ou até mudá-las em função das oportunidades do momento é, talvez, o primeiro acto arrojado. Ameaças, traições, cinismo, casamentos de conveniência, todas essas intrigas que descrevem o comportamento de uma classe dirigente apodrecida na sua imponente ambição, vistas assim, ao sol e ao vento, entre a vegetação, as pedras e as fontes, sobranceiras ao ruído do trânsito da cidade, parecem-nos mais reais e mais aflitivas e também mais intoleráveis — não há escuridão para esconder o gesto vil nem veludos para abafar o som das palavras hipócritas.  E se essa determinação abre a urgência do filme, tudo o que se segue investe ain

Adaptação de uma história japonesa

Uma paixão em surdina assemelha-se a um crime perfeito. Abandona-se o corpo de delito num sítio longe de tudo e espera-se que as raposas o devorem.  

Algumas coisas rápidas sobre «Nesta Grande Época»

Karl Kraus usa as citações como as personagens shakespereanas dos westerns de John Ford. Não são um ornamento que se traz à lapela, mas uma força universal e histórica que irrompe das entranhas.  ¶ António Sousa Ribeiro consegue segurar todo o ritmo que existe no original alemão e oferece-nos um texto em português que sobe e desce como uma montanha russa e faz-nos rir e também nos envergonha porque tanto daquilo passa-se ainda hoje e tão perto, raisparta!  ¶ Por sorte,  Os Últimos Dias da Humanidade também está disponível na Biblioteca Almeida Garrett. Junto com os Aforismos  (que está em casa) formam uma rica trindade. — A vida corre mal; a vida corre-me bem!  ¶ Tudo o que Kraus escreve é tão tronante (a coisa mais viva da cidade) que fico sempre com receio (ou será vontade?) que os seguranças me ponham fora da carruagem por causar distúrbios ao bom funcionamento do Metro. ¶ Se falasse português, Karl Kraus escrevia um artigo n’ O Archote a desancar na Tânia Laranjo.  ¶ Apetece-

Observações avulsas sobre matosinhos sul #58

Os três metrosideros que crescem no areal de Matosinhos (um encostado ao muro e os outros dois a cerca de cinquenta metros do início da praia, junto às esplanadas Lais de Guia e Titan) são dos melhores exemplos de sobrevivência que conheço.  É o que o futuro nos reserva: aprender a viver no deserto.

All these are dangerous

Na minha vida, os filmes de Pedro Costa estão ligados a acidentes. On suicide  é tão tremendo que até tenho medo do que possa acontecer. In such a country and at such a time There should be no melancholy evenings. Even high bridges over the rivers And the hours between the night and morning And the long long wintertime. All these are dangerous. For in view of all the misery People just throw their unbearable lives away.

Obsessões e caprichos

Vou agarrar-me a estes cadernos pois são o único contacto que mantenho com a «escrita». Há meses que não escrevo mais nada.  Mas este exercício diário até é bom, permite-me aproximar-me das palavras, e despejar aqui as minhas obsessões, ao mesmo tempo que os meus caprichos: o essencial e o inessencial ficarão registados por igual. E tanto melhor assim. Pois nada é mais ressequido e fútil do que a busca exclusiva da «ideia». O insignificante deve ter direito de cidadania, até porque é por ele que acedemos ao essencial. A anedota está na origem de toda a experiência capital. É por isso que é mais cativante do que qualquer ideia. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1968)

Maio de 1971

Prefiro um assassino gentil a um santo sem maneiras.  Gostava de ser canibal, menos pelo prazer de devorar esse imbecil do X, do que para o poder vomitar logo a seguir.  Exclamações . Que belo título!  Fui feito para vociferar ou para fazer chacota?  Para as duas coisas, para uma síntese irrealizável. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Os pássaros do Marquês

Um bando de publicitários decidiu pendurar nas árvores do Marquês um sistema de som que reproduz, sem descanso, o canto gravado de vários pássaros. Apesar do barulho do trânsito, o monstruoso chilreio ouve-se em toda a praça e nas ruas mais próximas. As aves de carne e osso, tomadas de pavor, voaram para longe. Nem os pardais ficaram. Espécie esquisita de gentrificação.

Einstellung

Einstellung  também significa disposição moral. (...) O que é necessário, creio, é uma ideia. Uma ideia que não seja uma intenção simbólica nem psicológica. Uma ideia moral, logo política. Tenho andado a pensar no que escrevi ontem porque não basta dizer que é preciso um outro tipo de acção para homenagear os filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Lembrei-me do verso de Hölderlin e percebi que, por exemplo, os pobres também têm direito a olhar o rio é igual a um dia talvez a terra volte a brilhar verde para nós — é o mesmo desejo, a mesma reivindicação.  Então, naquele terreno abandonado do antigo bairro de São Vicente de Paulo devia ser construído um jardim — era uma resposta justa ao trabalho de Huillet e Straub. Um jardim de laranjas doces. E depois projectavam-se um ou dois filmes as vezes que fossem necessárias até ficar clara a relação entre as imagens no écran e as laranjas, entre a vida dos antigos e as nossas — uma dialéctica das sensações. Podem objectar que isto n

Da nuvem à resistência

A projecção dos filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub integral e por ordem cronológica é um acontecimento notável.  No entanto, passada a primeira euforia fico a pensar se não seria necessário um gesto mais incisivo para os homenagear. Uma mulher que percebe o que são as bruxas:  Quando damos de comer aos gatos em Roma, compreendemos o que se passava com as bruxas; muitas vezes tinha a impressão que era a minha pele que estava em jogo. Aí, dei-me conta que havia mulheres que, porque observavam as estrelas à noite, porque apanhavam ervas de noite, porque os gatos as seguiam... foram queimadas. É isto as bruxas! E que explica: O que nos interessa, são as pessoas que dizem os textos de Pavese, o que elas fazem na vida, a maneira como dizem os textos, os problemas que têm com aquilo que dizem, e por isso, bruscamente, aquilo que eles dizem já não é de Pavese mas sim do sujeito que o diz e que, no começo, nem sabia quem era Pavese. O único interesse do texto ou daquilo a que chamas

Lá em Cima dá trabalho a analisar e isso tem a ver, creio, com o método que Hong Sang-soo usa desta vez.  O filme parece um daqueles discos em vinil que tem mais do que uma estria num lado : o que se ouve depende do sítio onde pousamos a agulha.

Sinopses de filmes

No programa do Festival Beast: Três melhores amigas, que juram ser virgens, lutam com rapazes locais. Quando as coisas ficam difíceis, eles são salvos por uma rapariga em desenvolvimento. *** Um retrato íntimo de uma jovem mulher à procura de um objetivo num mundo de incerteza económica, social e ambiental. *** O gerente local do Palácio da Cultura, Desporto e Entretenimento fica frustrado por um telefonema de sua esposa. Enquanto isso, as crianças reúnem-se no salão do palácio para uma sessão de artes marciais, mas dois meninos escapam. *** Uma jovem está a fim de enfrentar o evento de vida mais difícil que se pode imaginar - será ela capaz de aceitar isso, ou continuará a evitar enfrentá-lo e continuar a sua vida despreocupada. *** X transita entre a realidade e a fantasia. Ele tenta resolver o desgosto como se fosse um quebra-cabeça. Ele está escondido há tanto tempo que não reconhece o seu próprio reflexo quando olha para ele. Ele acorda com um som. Programa completo.

Ainda a propósito dos filmes mais recentes de Hong Sang-soo

Nos filmes mais recentes de Hong Sang-soo, Lá em Cima e A Romancista e o seu Filme , há várias sequências em que os maços de tabaco foram substituídos por cigarros electrónicos. E quase no final de A Romancista… , a personagem principal tem de fumar às escondidas, em segundo plano, e de costas para a câmara, porque a cena passa-se num local «livre de fumo». Outra personagem comenta algo até aqui impensável num filme de Hong Sang-soo: «Ela fuma muito.» Claro que nenhuma das situações representa uma concessão do realizador ao «ar dos tempos». O que acontece é o contrário. O cigarro electrónico é um objecto obviamente postiço nestes filmes. E a personagem que «fuma muito», que se afasta e vira as costas ao centro da cena, é uma justa alegoria da obra de Hong Sang-soo.

Uma cena de «A romancista e o seu filme»

Kim Junhee e Kilsoo estão a comer num restaurante sentadas junto a uma janela. Passa uma miúda na rua e fica a olhar, intrigada, vai embora, regressa. Kilsoo sai para conversar com ela. Kim Junhee aproveita  para tirar um bocado de comida da tigela de Kilsoo.  Se gosto tanto desta cena é porque acho que nada daquilo estava previsto: a miúda passou por ali por acaso e foi atraída pelas mulheres e pela câmara; Kim Min-he decidiu ir falar com ela e contar-lhe o que estavam a fazer para a convencer a sair do centro do enquadramento; e Lee Hye-yeong não resistiu a provar o bibimbap da Kim Min-he sem ela ver.  Este encadeado de acções não foi escrito por Hong Sang-soo. As três implicadas agiram por conta própria. Não foi preciso insuflar nada para tudo ter, não um significado, mas uma presença real . O cinema de Hong Sang-soo é cada vez mais isto, ah,  o vento nas árvores .

A estátua de Camilo na Cordoaria

Não conheço ninguém que goste da estátua de Camilo na Cordoaria. Em três dias, porém, transformou-se num símbolo de resistência contra o snobismo parolo dos «ilustres» da cidade . Agora, sim, aquela coisa de bronze tem um significado. A estátua mal amada já não sai da Cordoaria. E espero que nunca saia.

Azeite e laranjas

Ir às compras exige cada vez mais dinheiro e capacidade de fazer contas; entramos nas lojas como quem entra na Bolsa de Valores. Comprar azeite vai passar a ser um acto solene, desconfio. E as amadas laranjas, oh, creio que qualquer dia ainda vou ter de as comprar no mercado negro.

Uma espada talvez

Há no Cemitério da Lapa um grande anjo que se vê da Rua Antero de Quental. Eleva-se acima do muro alto, pousado no telhado de um mausoléu e com o braço direito erguido para o céu. Na verdade, o anjo segurava qualquer coisa que entretanto desapareceu. Talvez um estandarte, uma luz, uma espada talvez. O anjo parece estar sempre amuado, a cismar naquilo.
Luísa Costa Gomes confessou que a peça de Kleist desencadeou nela “qualquer coisa” que não é “capaz de explicar”. Em que consistia, ou como se manifestou? “Achei que deveria ser eu a traduzir, a fazer a dramaturgia, a encenar e — se não me tivessem segurado – teria provavelmente feito o papel do Príncipe.”  Isto é mais ou menos a definição de síndroma. Síndroma de Homburgo.

Falso raccord

Passei d' A Imagem Fantasma para O Príncipe de Homburgo . O raccord não é totalmente falso e a ligação a uma personagem tão estouvada é capaz de agradar a Guibert. (Esqueçamos Gérard Philipe.)

«Tenciono libertar-me deste fascínio em breve» (IV)

Estabeleci limites de páginas por dia, mas o livro é pequeno e já cheguei ao fim. Fica um travo um bocado amargo, qualquer coisa que se aproxima da morte. Todos os textos, mesmo os que não parecem estar na ponta extrema do abismo, é aí que acabam. Proibi-me de ir buscar as fotografias que estão guardadas (escondidas?) numa caixa num desvão. Nada de mimetizar os devaneios de Guibert. Mas a memória traiu-me e lembrei-me da imagem difusa e amarelada do meu pai apanhado a andar na rua. ( Um fotograma de um filme de Pasolini? ) Deve ser inverno, ele veste uma camisola de gola alta e gabardine. Ri-se para a máquina. Muito alto e muito magro e agora também muito novo. ( Como é que uma recordação esbatida pode ser superlativa? ) Sou parecida com ele e às vezes, creio, consigo representá-lo . Os mortos nunca estão completamente mortos.

Chuva e trovões (III)

Há uma altura em que até eu acho que já estou a exagerar e todavia continuo porque faz parte do exagero não ligar ao resto. Escrevo de noite, estou cansada e passa tudo. Isto ainda é sobre o livro do Guibert, mas está um bocado para lá das questões literárias ou fotográficas ou estéticas. Apercebo-me que a energia do livro extravasa as cenas habituais da literatura; há qualquer coisa indecente em  A imagem fantasma  que nos obriga a olhar para tudo de outro modo. A fita vermelha é um texto exemplar. Não enche sequer a mancha da página, porém não pára de emitir sinais de alerta. Por um lado, Guibert é tremendamente objectivo, quase telegráfico; por outro, introduz pequenos pormenores de contraste e excesso no fim de cada frase, e depois nas últimas linhas rebenta com tudo mas ao contrário — com o contrário de uma explosão, não sei qual é a palavra para isso mas o som é de uma explosão passada ao contrário. Guibert é tão bom nestas técnicas de virar do avesso que depois de ler uns quant

A fita vermelha

Em Bruxelas, ao contrário de Paris, onde isso é proibido e só se põem à mostra grandes cartazes riscados com um «X», as fotografias pornográficas são expostas nas montras dos cinemas, à vista de todos, mesmo das crianças. Mas as partes sexuais, e a forma como elas são manipuladas, são cobertas com adesivo vermelho, numa delimitação simultaneamente cerrada (ao milímetro) e sugestiva. A fita-cola deve ter sido posta pela menina da caixa, ou pelo gerente do cinema, imagina-se, com uma indiferença apressada, irritada mas meticulosa: em certos sítios, ela ou ele teve de a passar várias vezes, e isso cria diferentes espessuras na fotografia, muitas vezes em quadriculado, como uma gradação do excesso, como, nas cartas submarinas ou vulcânicas, a indicação de zonas de incandescência, remoinhos, correntes mais violentas ou mais quentes, abismos… Faz-se esta distinção com fascínio: a fotografia censurada é mais erótica do que a fotografia nua, a fotografia pornográfica torna-se uma fotografia er