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Mensagens

Dos jornais XXXX (tout va bien)

Se calhar o que nós temos que pensar é marcar dois dias de greve, em vez de ser só um.

As pernas de Henry Fonda

« (...) não me interessa se um actor consegue expressar bem emoções ou não. Para mim o que é importante é o carácter, captar a sua humanidade.» Como exemplo, Ozu escolheu uma cena de John Ford: «Vejam Henry Fonda em A Paixão dos Fortes : imóvel e inexpressivo – aí está a grandeza de John Ford. Fonda está sentado numa cadeira com as pernas empoleiradas num pilar e um sorriso de satisfação na cara – tenho mesmo inveja dessa relação entre Ford e Fonda.» Ozu, Humanness and Technique . Ozu, Donald Richie. The Stone and the Plot. Tradução de António Nuno Júnior. (Nota 60, página 182.)

Eles não percebem – por isso é que dizem que é Zen e coisas do género.

Sou pouco aplicada; só agora – e porque me ofereceram – é que estou a ler o livro Ozu , de Donald Richie (na tradução editada pela The Stone and the Plot * ). Tem uma série de informações importantes, mas o que mais me agrada são as citações de entrevistas ou dos diários do realizador: Existe no diário uma nota triunfal na data de conclusão da escrita de Viagem a Tóquio . «Terminado. 103 dias. 43 garrafas de saké .» Imaginei logo uma homenagem clandestina com alguns filmes, muito álcool e pouquíssimas palavras. Numa sala junto a uma estação de comboios.  A seguir vou ler Ozu, multitudes   (outra prenda maravilhosa). Desconfio que vou gostar mais do livro do Pablo García Canga.  * A tradução e a revisão deviam ter sido mais rigorosas, acho que nunca li um livro com tantos advérbios de modo no mesmo parágrafo. 

Trabalhar nas obras

Trabalho virada para a marquise. A janela parece um espelho: eu aqui a rever textos e, do outro lado, o senhor José a tratar das paredes. Os meus raciocínios são iguais aos seus movimentos: o mesmo ritmo, a mesma minúcia.

Do ridículo

Leio no jornal que os grandes grupos de saúde privados, como Mello Saúde e Luz, «saíram traumatizados» da experiência das Parcerias Público-Privadas. A declaração do presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada merece ser citada: «Terá de haver um retomar da confiança para os grupos privados se voltarem a interessar pelas PPP, porque saíram traumatizados.» Oh, o horror! O trauma!

Depender apenas do mito

Perante os resultados da fotografia, é possível que os pintores tenham ficado confusos. Depois caíram em si, descobriram o que a pintura ainda era. De igual modo, ou de um modo muito semelhante, os dramaturgos ficaram confusos com aquilo que a televisão e o cinema permitiam. Se aceitarem ver – se for coisa de ver – que o teatro não pode rivalizar com meios tão desmesurados – os da TV e do cinema – os escritores de teatro descobrirão as virtudes próprias do teatro, e que talvez só dependam do mito. Jean Genet, A estranha palavra que... Tradução de Aníbal Fernandes.

Dos jornais XXXIX

Zohran Mamdani : (...) And there are others who see politics today as too cruel for the flame of hope to still burn. New York, we have answered those fears.  Tonight we have spoken in a clear voice. Hope is alive. Hope  is a decision that tens of thousands of New Yorkers made day after day, volunteer shift after volunteer shift, despite attack ad after attack ad. More than a million of us stood in our churches, in gymnasiums, in community centers, as we filled in the ledger of democracy.  And while we cast our ballots alone, we chose hope together. Hope over tyranny. Hope over big money and small ideas. Hope over despair. We won because New Yorkers allowed themselves to hope that the impossible could be made possible. And we won because we insisted that no longer would politics be something that is done to us. Now, it is something that we do. (...) 

Agora tenho a impressão de que se passa tudo ao contrário

Noutro dia voltei a ver, passados muitos anos, La Vallée fantôme , de Alain Tanner. Para mim, trata-se de um cineasta excepcional, pois é dos poucos que se manteve obstinadamente fiel ao legado de André Bazín, à valorização do plano como unidade espácio-temporal com valor próprio, como um «pedaço de vida», um momento que será inserido no decorrer do filme, mas que existe por si mesmo e não deve ser sacrificado a essa integração. Eu diria que se trata de uma noção de «plano» oposta à de Bresson, que afirmava que um plano não tem de significar nada por si mesmo, porque só assim estará em condições de encaixar no conjunto.  O protagonista de La Vallée fantôme (Jean-Louis Trintignant) é um cineasta que se desfez de um argumento em que estava a trabalhar há quatro meses. Quando a mulher aborda o assunto, ele responde que não era mau, era «uma história com princípio, meio ( milieu ) e fim», mas estava morto, era uma das milhares de histórias que há por aí. «Para que servem?». Ela respon...

Com tiros e às escuras

Gosto de ler teatro. Gosto do discurso directo, das entoações, dos apartes, dos itálicos das didascálias. Gosto tanto, que a maior parte das vezes nem sinto falta de ver a peça em cena. Mas Grupo de Vanguarda trocou-me as voltas. Este texto voraz pede mesmo para ser representado numa sala, por uma trupe tão destravadamente livre como Vicente Sanches. Acendam-se as trevas!, diz o autor.

Outras homenagens

Fui à Biblioteca Almeida Garrett e açambarquei os quatro livros disponíveis de Vicente Sanches:  Grupo de Vanguarda ; A Birra do Morto / Promissão do Quinto Império / Metáfora ; Última Vontade juntamente com Aforismos acerca da Última Vontade ; Sétimo Sinal . Como a Biblioteca de São Lázaro está encerrada, posso afirmar que Vicente Sanches não existe no espaço público da cidade do Porto. Ou melhor, está retido em minha casa. 

Dos jornais XXXVIII

A negligência descrita, a insistência de que nada há de ‘político’ no acidente, como se a culpa fosse do cabo que estilhaçou ou, pior, das vítimas, a falta de exigência na manutenção, que roça a burla, a ausência de diligência mínima na superação de um bizarro vazio de fiscalização, tudo isso é muito mais do que mero amadorismo. É uma grave quebra de um compromisso político e ético elementar de respeito pelas pessoas. Não pode haver coisa mais política.

Ele e só ele

Os politólogos e comentadores descobriram, em triunfo, que o maior partido da extrema-direita portuguesa, afinal, tem o seu calcanhar de Aquiles: depende absolutamente do chefe. O chefe é o partido e o partido é o chefe. Sem ele, o resto pouco vale. Escreve uma comentadora: «Ele e só ele. Presidente da Câmara, deputado, primeiro-ministro, Presidente. Ele mesmo e todos os seus ministros ao mesmo tempo.» Mas em que altura da história um movimento fascista ou protofascista não dependeu exclusivamente do chefe? Essa é a sua força. O contrário é que seria absurdo. Nestas eleições, o chefe, justamente, ampliou ainda mais o seu poder. Não é fácil acompanhar as análises sofisticadas dos nossos politólogos e comentadores.

ZOV #2

Rui Manuel Amaral é um escritor cheio de dúvidas e isso é uma sorte. Só alguém assim, tão ferido na fé literária, consegue escrever histórias que ainda nos atiram ao chão . A número dezoito (páginas 91 e 92) é exemplar: parece um andaime precário em redor de um edifício destruído há muito, tomado pelas heras.  Beckett e Cioran passaram uma noite a discutir a tradução da palavra lessness para francês. Não conseguiram. É uma tarefa impossível. Pois bem, este pequeno texto de Rui é a representação desse substantivo que nos foge. Abre com uma sombra e acaba num esgar de riso amargo. O narrador começa por lançar os dados, mas os dados fogem; começa a urdir uma trama, mas a trama desfaz-se. Ele é teimoso, continua uma e outra vez, sem receio, sem sair do sítio. Vacilar é a arte dos juncos e ele faz-se junco e ventania. No fim, chega ao vazio total. É onde estamos todos.  DEZOITO Uma sombra veloz atravessa a cena. Não, não apenas uma sombre, obviamente. Um homem e a sua sombra atr...