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Mensagens

Música concreta

Às vezes tenho vontade de mexer no som de certos filmes, tirar-lhes a música que me parece a mais, substituí-la por sons. Em  Paris s’en va , em vez Piazolla (que me irrita), preferia: o movimento dos carros, uma campainha, passos, alguém a correr, ruídos de obras, umas frases que ficam no ar, talvez o rugido de um leão.

O pensamento mágico do capitalismo

O abismo cognitivo foi instalado quando todos nós vimos que as coisas podem ser reproduzidas em série e que a caixinha do leite ou qualquer outro produto que está na gôndola do supermercado, aquela coisa apareceu ali (…) e não importa mais o processo. Então a caixinha de leite e toda essa facilidade da gôndola seriam coisas que aparecem na sua cara e você pode simplesmente consumir. É isso que o Davi Kopenawa Yanomami, nessa sua prospecção do mundo do branco que ele olha de dentro da floresta, dirá que é o ‘mundo da mercadoria’. Vamos imaginar que esse mundo da mercadoria é mágico. Ele faz aparecer água na torneira, leite na caixinha e coisas na gôndola. Quer dizer, é um pensamento mágico o desse mundo subalterno à ordem capitalista. É tão mágico quanto o pensamento de um xamã. O pensamento mágico de um escravo do capitalismo é tão fantástico que ele acredita que o capitalismo pode acabar com o mundo e criar outro. Eu me pergunto: por que um cara vai financiar o envio de um foguete par

Não cancelar

Desde que me apercebi do botão que permite anular o envio de um email, sinto sempre um pequeno arrepio quando os deixo seguir o seu caminho — um pouco pela tentação de voltar atrás, de apagar os disparates, mas principalmente pelo desejo de não o fazer. A possibilidade de cancelar, torna qualquer envio trivial num acto um bocado perverso.

Dois continentes a rir

Alan Schneider, na sua autobiografia, Entrances , descreve a catástrofe que ocorreu quando, na primeira encenação em solo americano de À Espera de Godot , os espectadores acorreram à sala, esperando ver Bert Lahr numa comédia burlesca tradicional (expectativa esta encorajada pela respectiva campanha publicitária, que anunciou a obra como «uma peça que pôs dois continentes a rir a bandeiras despregadas»), e acabaram irritados e confusos ao perceberem que a experiência não se enquadrava nas suas expectativas. Marvin Carlson, Palco Assombrado . Tradução de Paulo Faria.

Sete mãos esquerdas

Fomos ver a companhia de Trajal Harrell dançar ao som do Concerto de Colónia, de Keith Jarrett. Em casa, depois do espectáculo, leio no jornal que o pianista sofreu um AVC em 2018 e que tem a mão esquerda paralisada. Já não consigo pensar senão nas mãos dos sete bailarinos a desenharem aqueles acordes no ar. Belos e pungentes. Um bailado para sete mãos esquerdas.

Eu também já tinha reparado nisto

Há aquela anedota sobre os amigos de Jane Austen que evitavam falar na presença dela por medo de irem parar a um livro. Não sei exatamente como é que a poesia e a ficção funcionam, mas parte da questão é que nós reparamos em muito mais do que julgamos reparar. Uma das particularidades da ficção não é tanto fazer o papel de observador em benefício dos outros, mas despertar nos leitores a consciência das suas próprias capacidades de observação. Por isso, enquanto leitor, muitas das descrições ou das digressões que me interessam não são as que me parecem inteiramente novas, mas as que envolvem aquele inquietante “Meu Deus, eu também já tinha reparado nisto, mas nunca me dei ao trabalho de o pôr em palavras”. David Foster Wallace numa conversa com Mark Shechner.

Par les champs et par les grèves

Nantes Uma cerveja, ao fim da tarde, num bar chamado Corneille, que fica nas traseiras do edifício da Ópera. Copo pequeno, bebida vulgar. A mais barata da lista. Nem drama, nem comédia. Noirmoutier-en-l'Île Uma hora e tal pelos campos entre Nantes e Noirmoutier-en-l'Île, a pequena povoação balnear onde se rodaram várias sequências de As Praias de Agnès . O mar é um grande lago de águas paradas. O areal está coberto por conchas de ostras. Milhões de pequenas peças de mármore branco e cinzento esculpidas por um dadaísta enlouquecido. Saint-Marc-sur-Mer Foi aqui que Monsieur Hulot fez férias em 1953. E daqui não mais saiu. Está por toda a parte: nos nomes das ruas, nos logotipos das lojas, nos menus dos restaurantes. A praia chama-se agora «Plage de Monsieur Hulot» e o hotel da rodagem, comprado há uns anos por uma cadeia internacional, tem a personagem de Tati pintada numa das empenas. A praia é de areia escura. Borboletas da couve adejam no ar como flocos de espuma branca. Ao lo

Três em linha

Selfie XXI

Devia ter 3 ou 4 anos. Vivíamos com os avós maternos. No Natal, o meu avô deu-me cinquenta escudos; ao meu irmão deu cem. Achei a diferença injusta e devolvi-lhe o dinheiro. Foi o meu primeiro acto político.

Ban, Ban, Calibã!

O título, Calibã e a Bruxa , inspirado na peça A Tempestade , de Shakespeare, reflete esse esforço. Na minha interpretação, no entanto, Calibã não apenas representa o rebelde anticolonial cuja luta ressoa na literatura caribenha contemporânea, mas também é um símbolo para o proletariado mundial e, mais especificamente, para o corpo proletário como terreno e instrumento de resistência à lógica do capitalismo. Mais importante ainda, a figura da bruxa, que em A Tempestade fica relegada a segundo plano, neste livro situa-se no centro da cena, enquanto encarnação de um mundo de sujeitos femininos que o capitalismo precisou destruir: a herege, a curandeira, a esposa desobediente, a mulher que ousa viver só, a mulher obeah que envenenava a comida do senhor e incitava os escravos à rebelião.  Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici.

Vivemos dilacerados, à procura dos nossos corpos dispersos pela terra inteira.

Sempre que vejo Francisca , fico impressionada com a sua irreverência. Descubro tantas coisas novas que até parece que estou a ver um filme desconhecido — feito no futuro, talvez. Ontem à tarde, anotei isto: A presença constante do vento — de uma ponta à outra, fora ou dentro de casa, o vento é quase uma personagem. A forma insidiosa como as personagens se dirigem a nós — parece que estamos num julgamento, mas não conseguimos perceber se somos juizes ou julgados, ou ambos. A utilização da música contra o desenrolar da história. Faz lembrar Renoir quando dizia: «Por que raio é que, numa cena de amor em que o actor diz à actriz «je t’aime», a música também há‑de dizer «je t’aime»? Porque é que a música não diz «estou‑me nas tintas para ti». Mas o que mais me espantou foi o modo com Manoel de Oliveira pegou no romance de Agustina Bessa-Luís (escrito para cinema, é certo, com muitos diálogos, alguns deles colagens documentais) e, alterando-lhe o ritmo e criando um distanci

Vermelho dos bombeiros

Não me importo de ver os filmes de Kaurismäki em casa, na televisão que não tem mais de cinquenta e tal centímetros de largura. Pode-se beber e fumar e isso ajuda a compreender o filme, seja ele qual for. Principalmente (assim espero, em breve, tipo espelho perverso)  uma coisa de câmara, à Bergman, com gente sentada no sofá .  Onde não consigo imaginar os seus filmes é nos festivais internacionais, nesses circuitos de vaidades, poses e frases complicadas e tão vazias, oh! Por isso é que ele compensa esse aborrecimento nas entrevistas , sempre muito divertidas. Kippis! Claro que o melhor sítio para os filmes de Kaurismäki, pelo menos onde gosto de os imaginar, é nos Bombeiros de Viana do Castelo (já não me lembro quando, por isso é sempre), projectados para uma data de miúdos entusiasmados. O Hugo contou-me esta história e eu transformei-a em imagens cheias de coisas vermelhas e cadeiras velhas. Pode-se levar o cão. Desnos também havia de gostar.

Aprender com os cães

O outro lado da esperança começa como filme mudo e vai-se revelando musical. Parece uma flor a desabrochar. Talvez por causa desse movimento suave, o pessimismo de Kaurismäki está mais fininho — para além dos sacanas habituais, há mais boas pessoas e onde menos se espera. Ninguém filma os cães vira-latas como Kaurismäki, são verdadeiros modelos , no sentido bressoniano, mas também como ensina o dicionário: coisa ou pessoa que é ou merece ser imitada; exemplo . Acrescentava ainda: como conceito .

O bife

Onde é  que está  meu bife?  Fugiu do açougue  sumiu da cozinha  no prato não acho  quem sabe me diga:  será que meu bife  está noutra barriga?  Meu bife  era  a cavalo:  um ovo estalado  com batata frita.  Porém me lembrei:  sendo bife a cavalo  fugiu no galope  não vou mais achá-lo. José Paulo Paes

O elemento que faltava

Alberto Pagán: As representações em Contactos são muito recitativas, frias e anti-psicológicas. Isso deveu-se a limitações das filmagens ou foi uma estética brechtiana intencional?  Paulino Viota: Acho que faz parte do estilo. Num esquema de tempos mortos e rupturas, se tentássemos uma interpretação mais natural, mais directa, provavelmente teria ficado demasiado desajustada com o estilo da câmara. Pensei que era mais coerente assim, uma espécie de teatralização, num sentido de ascetismo, claro; não no sentido de multiplicar a expressão, mas precisamente ao contrário. É a ideia de conter a expressão, de não expressar. Acho que provavelmente já tínhamos visto algum filme de [Robert] Bresson [A TVE passou Pickpocket ( O carteirista , 1959) a 2-12-1967 e Les anges du péché ( Os anjos do pecado , 1943) a 23-03-1970] e tínhamos visto, de certeza, a Crónica de Anna Magdalena Bach [ Cronik der Anna Magdalena Bach,  1967] de [Jean-Marie] Straub [e Danièle Huillet; transmitida pela TVE a

Um filme perverso

(...) Contactos é outra coisa, é o que na altura se chamava cinema de vanguarda, uma verdadeira experiência. Podemos considerá-lo próximo desse movimento, pois é um artefacto de reflexão cinematográfica; reflexão sobre o espaço e o tempo em oposição ao que se fazia no cinema que conseguíamos ver. Quando filmámos  Contactos,  em 1970, o cinema tinha uns setenta anos e já desenvolvera técnicas prodigiosas para contar histórias e utilizar o espaço e o tempo em função dos interesses dessas histórias (os tempos devem ser abreviados, os espaços trabalhados de determinada maneira, prescinde-se de todos os momentos que não têm interesse…). Contactos foi feito contra tudo isso. Uns anos depois, li um texto de Eisenstein em que ele dizia que, embora o sistema fosse outro, A Greve ( Stachka , Sergei M. Eisenstein, 1925) tinha sido feito totalmente do contra. Então, de forma modesta, fizemos o mesmo em Contactos ; quer dizer, tudo o que não se podia fazer, tudo o que era proibido, nós fizemos (

A culpa

Os homens estão convencidos de que foram expulsos desse lugar [o paraíso] por terem comido o fruto da Árvore do Conhecimento do bem e do mal. Mas é uma ilusão. Não é essa a culpa dos homens. A culpa dos homens está no facto de ainda não terem comido da Árvore da Vida. A expulsão do paraíso foi um pretexto para o impedir. Vivemos no pecado não porque fomos expulsos do paraíso, mas porque essa expulsão nos tornou incapazes de realizar um gesto: comer da Árvore da Vida. Roberto Calasso, K . Tradução de José J. C. Serra.

Quosque Tandem…! (Modelo de leitura B)

Contactos. Maio de 1970. O título do filme é, por si só, uma estrutura polissémica. Tem a ver com o processo de impressão directa dos negativos fotográficos em que dois corpos em bruto se tocam, mas também pode ser alguém infiltrado dentro de um grupo político, a secção de classificados dos jornais, ou até uma composição de Karlheinz Stockhausen .  Contactos deve ser visto junto com Duración . Não só por serem os filmes mais radicais de Paulino Viota, mas também porque há uma ligação entre eles que torna a projecção conjunta mais arrojada, tipo 1+1=11. O tempo em Duración e o espaço em Contactos  (que, perante os nossos olhos contemplativos, se converte em tempo) são simultaneamente formas puras da intuição a partir das quais é possível começar a perceber o mundo que nos rodeia, mas também matéria cinematográfica que nos permite compreender (principalmente no sentido de abranger) o cinema. Kant e Marx em contraponto. Avante! Quando Paulino Viota diz que  Contactos foi feito contr

Ver e não ver (outros exemplos)

Vertigo é não só a história de um homem que se apaixona por uma quimera, mas também de um homem incapaz de ver a mulher real, próxima, calorosa, enamorada, abnegada, compreensiva, inteligente que tem à sua frente.  Paulino Viota, A herança do cinema.

Variações sobre um tema ou — Babylone, à nous deux !

«Os bons tradutores não interpretam só as palavras.»  Alda Rodrigues, Simpatia inacabada #5, 15 de março de 2023. À primeira vista, traduzir não tem nada a ver com representação teatral. A tradutora está metida no seu quarto, sozinha, horas a fio, enquanto a actriz se move em cima de um palco iluminado a falar para o público.  Mas depois de contornarmos essas pequenas evidências, podemos muito bem afastarmo-nos a correr, movidas por ideias caprichosas, e então começamos a perceber que traduzir e representar podem ser — são mesmo — movimentos afins.  Afinal, a tradutora não está fechada num quarto, já saiu pela janela e vai para todo o lado atrás das ideias e das palavras impressas. Interpreta o texto e o autor; ensaia os seus gestos até o movimento sair automaticamente, sem pensamentos analíticos — até as palavras e as frases encontrarem um ritmo instintivo: uma coisa nova . E agora é como se estivesse em cima de um palco iluminado com uma luz escura a representar para uma audiência de
«O homem começa de novo todos os dias, apesar de tudo o que sabe, contra tudo o que sabe.» Cioran a abrir o belíssimo livro A Noite de Todos os Dias que acompanha a exposição de Maria Capelo na Galeria Ala da Frente, em Famalicão, até 4 de Outubro.

Dos jornais III

Não é preciso artes de bruxaria para ver o futuro; as notícias que vou lendo das catástrofes provocadas pelas alterações do clima na Grécia são o nosso futuro. As imagens parecem saídas dos filmes bíblicos dos estúdios de Hollywood — já sabemos como é que a história acaba.

O trajecto da paixão desenganada

MARGUERITE DURAS: Sabe, o seu filme, é assim que o vejo. Vejo-o em Paris, em Paris fora do tempo, imprevisível, inverosímil, como uma cidade que foi admirável mas agora está em processo de destruição e, no interior dessa destruição, estão estas duas mulheres errantes que não se sabe lá muito bem de onde nem de que comunidade vêm — de prisões, asilos psiquiátricos, bairros sociais, de certas famílias francesas, da aristocracia Muette-Passy. Estas mulheres desafiam qualquer noção de classe e são largadas na destruição de Paris, já não podem parar, elas circulam como os automóveis, como as notícias, como Nova Iorque na Europa, como o cinema, como a eternidade. Elas são perseguidas enquanto circulam, por um poder que não sabemos se é o da polícia ou o da paixão. Bulle ama um homem e não morre disso, Pascale ama o karaté: nunca se viu mulheres assim ao ar livre, sem qualquer compromisso, sem identidade, um filme que é, como um rio que corre, admirável, admirável.  JACQUES RIVETE: Isso int