Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens com a etiqueta Metro

Costuras

Ontem li «Costuras», de Olga Tokarczuk (tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz, edição da Cavalo de Ferro), entre o Campo 24 de Agosto e Matosinhos Sul, de manhã bem cedo. A viagem de metro é mais longa do que o conto (dez páginas e oito linhas), passei o resto do percurso a olhar pela janela para tentar alhear-me da história e enfrentar um dia de trabalho banal. Continuava, porém, a ver as costuras das meias, a cor acastanhada da tinta das esferográficas, a forma dos selos. Aqueles objectos tomaram a vez dos pensamentos, alastravam pela cabeça criando uma tremenda inquietação material. Conseguia, não compreender (nunca ninguém consegue), mas pressentir o desassossego de B.  No regresso, ao fim da tarde, voltei a ler o conto e tirei as dúvidas: é dos tais, dos que nos encostam à parede, dos que não nos largam mais.  A tradução inglesa (de Jennifer Croft) pode ser lida aqui .

Algumas coisas rápidas sobre «Nesta Grande Época»

Karl Kraus usa as citações como as personagens shakespereanas dos westerns de John Ford. Não são um ornamento que se traz à lapela, mas uma força universal e histórica que irrompe das entranhas.  ¶ António Sousa Ribeiro consegue segurar todo o ritmo que existe no original alemão e oferece-nos um texto em português que sobe e desce como uma montanha russa e faz-nos rir e também nos envergonha porque tanto daquilo passa-se ainda hoje e tão perto, raisparta!  ¶ Por sorte,  Os Últimos Dias da Humanidade também está disponível na Biblioteca Almeida Garrett. Junto com os Aforismos  (que está em casa) formam uma rica trindade. — A vida corre mal; a vida corre-me bem!  ¶ Tudo o que Kraus escreve é tão tronante (a coisa mais viva da cidade) que fico sempre com receio (ou será vontade?) que os seguranças me ponham fora da carruagem por causar distúrbios ao bom funcionamento do Metro. ¶ Se falasse português, Karl Kraus escrevia um artigo n’ O Archote a desancar na Tânia Laranjo.  ¶ Apetece-

Na câmara escura (II)

Vesti a t-shirt vermelha que é quase igual à capa d’ A Imagem Fantasma , um rectângulo com um pouco menos de amarelo e brilho. Não foi de propósito, era a única que estava lavada e passada a ferro. Mas quando abri o livro no metro, percebi as manhas do inconsciente: caramba, estou com as luzes ligadas, vou destronar o cartaz do Cronenberg .  Não aconteceu nada, os turistas continuaram a segurar as malas e a mostrar panos de cozinha com galos de Barcelos.  Vou a meio, página 96. Quando estou a ler os livros que leio, às vezes penso, ah, sim, gostava de ter escrito isto, mas é muito raro e não mais do que um ou outro parágrafo porque não tenho ambições de escrita consecutiva. Com o livro do Hervé Guibert o descaramento é grave: queria ter escrito tudo, mais, queria ter a perspectiva dele, estar no seu exacto lugar, ser completamente ele.  Não sei como é que o Amândio conseguiu chegar ao fim da tradução incólume e calmo; se fosse eu, estava em maus lençóis.

Olhar pela janela

É cedo. Ainda não há turistas no metro. Apenas gente que se desloca para o trabalho e que, como sempre, faz a viagem sem levantar os olhos do telemóvel. De súbito, apercebo-me de um tipo, o único na carruagem cheia, que olha pela janela. Não tem telemóvel. Não tem um livro, um jornal. Limita-se a olhar pela janela, estação após estação. Quem é ele? Um fantasma do passado? Um sábio? Um louco?
Os cartazes de Cidade Rabat ao longo da linha do metro abrem uma brecha na realidade. Às vezes, o cinema começa antes do cinema.

Da futilidade

A leitura das Máximas  de La Rochefoucauld (da maravilhosa colecção Clássicos de Bolso da Editorial Estampa) não combina com o metro, mas combina com o colar de pérolas da minha mãe.

Um vento forte

Na estação de metro dos Aliados, está uma exposição de cartazes sobre o campo de refugiados de Moria, o lugar onde colocaram o inferno, em Lesbos. Durante a noite levantou-se um vento forte e uma parte dos cartazes descolou e caiu. Arrastam-se agora, sob a indiferença geral, pelo pavimento da estação.

Peregrinos

Entrou em Pedro Hispano e saiu na Câmara de Matosinhos, já a conheço de vista. Contou a uma amiga que a patroa da senhora que saiu no Parque de Real foi a Fátima a pé e ela só tem de cozinhar para os dois doutores . Depois de um silêncio, acrescentou: Também sou peregrina. Somos todos . ( São velhas, dizem muitos lugares comuns, é uma forma de assegurarem uma pertença, creio, mas no meio, sai-lhes uma frase que nunca ouviram, que é mesmo delas. Às vezes até se admiram com a força e o brilho e repetem o aforismo com satisfação .)

No metro

Quando são surpreendidas sem bilhete ou com o passe caducado, algumas pessoas tentam escapar, outras protestam, outras ainda arranjam desculpas. Esta manhã, os seguranças surpreenderam um tipo sem bilhete que não tentou escapar, não protestou, não arranjou desculpas. O homem baixou a cabeça. Fixou um olhar submisso no chão. E pronto.

Linha A

Os livros de Dostoiévski tornaram-se mais políticos. “A Submissa” (a tradução é macia, mas continuo a embirrar com o título) é pura política do desespero . O metro não devia sair do subsolo.

A linha

Estação da Trindade, fim de tarde. A linha do metro divide os passageiros por classe. No Cais 1, os passageiros que regressam aos condomínios e hotéis da Boavista, Matosinhos, Maia e Vila do Conde: funcionários públicos, professores, estudantes altivos de economia, casais de «turistas seniores», arquitectos vestidos à moda, jovens empreendedores ao telefone. No Cais 2, os passageiros que vivem em Campanhã, Rio Tinto, Gondomar ou Fânzeres: trabalhadores do comércio e da restauração, empregadas domésticas, operários, crianças sozinhas vindas da escola, pensionistas e jogadores de cartas dos bancos de jardim.

Alívio rápido

Na estação de Faria Guimarães, um cartaz publicitário com a imagem de um medicamento. Da janela do metro, leio num relance: «Para o alívio rápido da alegria.» Leio com mais atenção: «Para o alívio rápido da alergia.» O metro retoma a marcha. Caracol fanhoso e tristonho.

O Contador

Hoje voltei a vê-lo. Quando o metro pára na estação da Lapa, ele percorre a plataforma ao longo das carruagens, espreita pelos vidros e faz anotações num caderno. Não tem tempo para contar as pessoas, por isso calculo que os apontamentos são vagos. Haverá alguma empresa que se interesse por essas informações não exactas? Ou será que ele é um maníaco que trabalha por conta própria?

Porto cosmopolita

Os cartazes da União Proletária do Porto colados junto à estação de metro do Campo 24 de Agosto são de influência soviética: papel vermelho sangue de boi com impressão de um punho — cerrado erguido — a preto     Na estação da Trindade, as folhas secas no chão demonstram a influência do Japão na arquitectura de Souto Moura.

Fundo e superfície

Na linha Porto-Gaia, pouco depois de São Bento, o metro irrompe inesperadamente do fundo para a superfície. Na verdade, o metro voa do túnel para a ponte e, num segundo, estamos a correr entre as nuvens. Transposta a ponte, desvio de novo o olhar para o livro, e leio: «São tempos singulares, estes em que vivemos. Tempos em que grandes agitações de superfície conseguem fazer-se passar por reais transformações de fundo. (...) Os homens mudam, dir-se-á. Sem dúvida, e tanto mais facilmente quanto se lhes der a possibilidade de parecerem mudar . A ilusão da mudança poupa com efeito a muitos deles dilacerações cornelianas entre os interesses e as convicções. Tal como essas viagens que se empreendem sem uma pessoa sair de onde está sentada, deixando simplesmente que umas às outras se sucedam as paisagens móveis dum diorama...» (Georges Henein.)