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Mensagens

A mostrar mensagens de novembro, 2021

(not me)

O eu mais sofisticado (válido para sentido figurado e pouco usado) é o que escreve no blogue. Pensa que está dentro de um filme realizado por um mestre.  Colocá-lo na terceira pessoa é uma forma espontânea de o tramar.
No mesmo dia em que Rui Rio ganhou as eleições internas do PSD, o filme Distopia , de Tiago Afonso, foi premiado no Porto/Post/Doc.  Os antigos chamavam a estes sinais, augúrios ou auspícios — uma espécie de aviso dos deuses. Mas os políticos deixaram de perscrutar o movimento dos pássaros há muito tempo.

Seis da tarde

Às seis da tarde é quase noite cerrada. O empregado do Vitória baixa discretamente a luz dos candeeiros. Há três gatos pingados a ler na sala que dá para a rua. A esta luz parda de velório, é impossível decifrar as letras no papel. Fecho o livro, pago o café e saio. É a vez da grande sombra pôr os óculos e ler-me a mim: «Era uma vez um fantasma com calças a caminho de casa.»

Two Rode Together

Só agora, ao rever o filme, é que me apercebi que Guthrie McCabe/James Stewart e Jim Gary/Richard Widmark representam John Wayne a meias. (Refiro-me a John Wayne como conceito cinematográfico, o que mexe maravilhosamente a bacia no Pólo Norte .)  Esta ideia também serve para ler o título de outro modo. Se continuar, ainda chego à conclusão que Ford, para além de fazer westerns , também se entretinha a desconstruir personagens e outras actividades meta-ilícitas.

Suspensão

É uma belíssima antologia de poemas traduzidos para português. Poemas de dezenas de autores, de origens e épocas diferentes. Para cada autor, existe uma pequena referência ao ano de nascimento e ao ano da morte. Nos casos de autores vivos, além do nascimento há um espaço em branco com reticências no lugar da morte. Um espaço para preencher mais tarde. Talvez amanhã, talvez hoje mesmo, talvez dentro de muito tempo. Talvez o poeta consiga manter o espaço em branco e prolongar as reticências, escrevendo mais um poema. E outro, e mais outro, e outro ainda.

Striptease

As tílias da Lapa despem-se longa e demoradamente. Todos os dias, mais um pouco. O ar está carregado de electricidade e folhas amarelas. Na fachada da igreja, os santos de pedra, vestidos até ao pescoço, observam e guardam segredo. Vão arder por dentro até o Inverno chegar.

Lar doce lar

Um plano do filme Distopia , de Tiago Afonso: um grupo de moradores do Bairro do Aleixo, no Porto, assiste à implosão, ao longe, do prédio onde viviam; ao lado, um painel publicitário com o anúncio de uma marca de artigos de decoração e o título «Lar doce lar».

Ferro-velho

Esta noite sonhei que fui ao cinema ver um filme de Pedro Costa. Como é habitual nos sonhos, era tudo pouco credível e montado às três pancadas: cheguei atrasada à sessão, sentei-me na última fila, a sala parecia um armazém abandonado (influência de Desnos?) com sofás desconchavados em vez de cadeiras, discuti com um tipo qualquer já não sei porquê.  Só me lembro vagamente de um ou dois planos do filme (por precaução, o sonho eclipsou o resto), mas pela quantidade de luz aquilo não parecia nada um trabalho de Pedro Costa. A única coisa real — quer dizer: que transmite alguma linha de pensamento material — aconteceu no fim. Quando dei por mim estava a conversar com Pedro Costa; não dissemos nada sobre o filme nem sobre cinema, falámos sobre ferro-velho.

Porto cosmopolita

Os cartazes da União Proletária do Porto colados junto à estação de metro do Campo 24 de Agosto são de influência soviética: papel vermelho sangue de boi com impressão de um punho — cerrado erguido — a preto     Na estação da Trindade, as folhas secas no chão demonstram a influência do Japão na arquitectura de Souto Moura.

Ideais

VALÉRIO: Ah, senhor, isto sim, é sentir a natureza! Esta erva está tão linda, que gostaria de ser boi para a devorar e, depois, de ser outra vez homem para devorar o boi que devorou a erva. LEÔNCIO: Infeliz! Afigura-se-me que também vós sois vítima de ideais. VALÉRIO: Oh, meu Deus! Há já oito dias que ando a correr atrás de um ideal de carne de vaca, sem conseguir encontrá-lo em parte alguma da realidade. Georg Büchner, Leôncio e Lena . Tradução de Renato Correia.

Мода и вышивка

Uma das coisas que mais aprecio nos livros antigos que seguem as hierarquias literárias, são as relações entre autor, narrador(es) e personagens. É engraçado ver os que têm mais poder na história troçarem ou pregarem partidas às personagens principais, mas também tem piada quando se põem do lado do protagonista e destroem uma personagem afectada logo à primeira entrada em cena só com meia dúzia de palavras bem colocadas.  É o que acontece a Herr Karl Kluber, noivo da bela Gemma, em Águas da Primavera , de Ivan Turguénev. Quando ele vai visitar Sánin — e apesar de, na página anterior, Sánin ter ficado abalado ao saber que Gemma estava noiva — , é o narrador extradiegético quem se encarrega de lhe destruir o, digamos assim, retrato. São três parágrafos cómicos e demolidores sobre as propriedades morais e têxteis de Kluber que culminam na frase: Este homem tem camisa e qualidades espirituais de primeira categoria!

Déglacer une poèle

Talvez porque pedem mais mão que cabeça, quando estou a executar tarefas domésticas repetitivas (fazer a cama, passar a ferro, cortar legumes, etc.), tenho tendência para me perder em raciocínios abstractos. Já atingi o ponto em que esses pensamentos se debruçam sobre a própria acção de pensar. Ainda hoje, enquanto preparava o jantar, tentei perceber se será possível aplicar a técnica de deglaçar uma frigideira à construção de um conceito para o tornar mais profundo e denso.  Não cheguei à resposta — nunca chego, aliás —, mas talvez seja uma questão de língua, talvez esse gesto intelectual só funcione em francês.

Quilómetros

Sábado. Gostava de conseguir escrever sobre O Menino da Ama , o magnífico filme de Tomotaka Tasaka, que vi ontem à noite. Andei quilómetros à procura de uma ideia, uma frase, uma palavra. Nada. Não consigo. Parece que me faltam vértebras, parece que tenho nuvens em lugar dos ossos.

Japoneses desconhecidos

Ontem fui ver Cada Um Na Sua Cova , de Tomu Uchida. À minha direita estava uma mulher japonesa de idade indefinida, vestida quase como eu. — Deve ser a minha dupla japonesa . No fim do filme senti-me tentada a segui-la, mas desisti. Pode ser que a encontre de novo hoje.
Custa-me aceitar o título “A Submissa” . (Não é uma questão semântica.)

Fábula bressoniana

Ontem, por volta das seis da tarde, um grupo de raparigas e rapazes franceses entrou no 502 (paragem Serralves). Eram mais de dez, falavam baixo, tinham a beleza diáfana dos modelos de Bresson. Parecia aquela cena de  Le Diable probablement . Um deles (esguio, calças e sapatilhas pretas, camisa esbranquiçada larga sem colarinho, gorro preto) podia ser Ivan Karamazov e trazer o diabo no bolso. 

Pára-arranca

Uma semana de trabalho presencial no escritório. Os meus colegas queixam-se do trânsito. Dizem que nunca viram tantos carros na rua. Demoram horas para percorrer três ou quatro quilómetros entre a casa e o escritório. São vegetarianos, veganos, activistas ambientais no instagram, praticam a reciclagem, fazem caminhadas organizadas no campo ao fim-de-semana, sofrem de eco-ansiedade. Quando vão a Berlim, Londres ou Marijampolė andam de metro, comboio e autocarro, e fazem selfies nas estações e paragens. Mas para os meus colegas não existe nem nunca existiu transporte público no Porto. Alguns talvez já tenham ouvido falar. Para a maioria, porém, transporte público é qualquer coisa do domínio da fábula. Tão distante como um lugar de estacionamento disponível em hora de ponta.

Modas & Bordados

Estava para publicar um texto (estúpido) sobre os filmes de Wes Anderson e os alinhamentos da loja Ermenegildo Zegna, mas censurei logo o ímpeto. Se não me ponho a pau, ainda acabo a escrever na revista Modas & Bordados.

Duas figuras na paisagem

No capítulo IX d’ O Belo Verão , Amelia conta a Ginia que arranjou trabalho. Como a pintora precisa da duas modelos, tenta convencê-la a posarem juntas. Parece uma cena banal — se calhar até não passa disso e estou a exagerar o envolvimento emocional de Pavese —, mas a minha atenção encrava na forma como Amelia descreve a tarefa. Primeiro, diz: duas mulheres abraçadas (linha 6). A seguir: duas mulheres que estão a lutar (linha 13). E acaba assim: Basta fazermos de conta que estamos a dançar (linhas 14 e 15).

Natureza morta

Ginia estava em pé, diante do cortinado, e em cima da mesa estava um copo sujo e cascas de laranja. — Quando volta o Guido? — perguntou. — Segunda-feira — disse Rodrigues. — Estás a ver? Isso é uma natureza morta — e apontava para o copo. Cesare Pavese, O Belo Verão. Tradução de José Lima. Livros do Brasil. Junho de 2021.

Condomínio fechado

[A propósito de Três Andares , de Nanni Moretti.] Engenheiros, arquitectos, académicos, advogados, juízes do Primeiro Mundo consumidos, em lume brando, pelo tédio. Um tédio branco, higiénico, educado. Um odor a anestésico a flutuar por todo o lado. As casas não são casas, os prédios não são prédios, mas armazéns em zonas nobres onde a solidão engendra monstros. Aquários de água tépida com peixinhos dourados que se mordem uns aos outros porque não há mais nada para fazer. Nanni Moretti aproxima-se de Michael Haneke. Ou talvez Heneke tenha estado este tempo todo à espera de Moretti.

Bibelôs

Afinal, o governo não estava cansado nem desgastado . Afinal, o governo estava cheio de tesão e com vontade de ir a eleições. Nos ressequidos estúdios televisivos, os comentadores explodem de euforia. Da miséria de factos passamos para o luxo de acontecimentos. Há petróleo a correr novamente nas redacções dos jornais. Os comentadores babam-se agora com a decadência da oposição, com a queda e putrefacção de uma certa direita, com a ascensão rápida de outra. Repete-se mil vezes que a democracia está em crise. O fim sem remédio do regime parece pertencer à ordem das evidências. E tudo, esquerda, direita, democracia, eleições, estado, povo, trabalho, direito, liberdade, a nossa vida, tudo, tudo é reduzido à dimensão de bibelôs de plástico com que os comentadores decoram a indigência do seu pensamento.

O cão da angústia

O plano-sequência que abre Fabian — Going to the Dogs vale mais do que mil artigos de politólogos. A câmara percorre uma estação de metro de Berlim na actualidade. É o olho de um passageiro ocasional. Pode ser qualquer pessoa, posso ser eu. Sou eu a caminhar para a saída. Subo as escadas da estação em direcção à superfície. Um degrau após outro. Quando chego à rua, estou em Berlim, sim, mas em plena República de Weimar. Os sinais da ascensão do nazismo estão por todo o lado. Fazem parte da paisagem. Parecem tão naturais como a pedra dos edifícios, o ruído dos automóveis, as nuvens no céu. Neste filme, Dominik Graf não nos convida a mergulhar na história, não quer que desçamos às profundezas de Berlim como arqueólogos em busca de vestígios dos fascismos; pelo contrário, ele empurra-nos para a superfície. É à superfície que tudo se passa, aqui e agora, em carne e osso, diante dos nossos olhos. Não há fronteira entre o passado e o presente. Só temos de apanhar o metro ou o autocarro, e c

Eram sete horas de uma noite muito quente nas colinas de Sinoe

Quando perguntavam a Jean Giono, escritor de surpreendentes dotes literários, qual tinha sido em si o primeiro sinal de homem da escrita, como lhe era possível mostrar um tão hábil convívio com a língua francesa saindo ele de poucas letras e de um passado onde tinham sido impostas à sua infância e à sua juventude tão grandes limitações culturais, Giono desfazia a expectativa de motivações complexas recorrendo apenas a um acidente onde cabiam Kipling e o seu The Jungle Book : Esta simples frase -  «Eram sete horas de uma noite muito quente nas colinas de Sinoe» - deu origem a tudo. Senti a certeza de também ser capaz de escrever aquilo e, à minha maneira, de o continuar. Aníbal Fernandes, na apresentação de O Homem que Falou , de Jean Giono.