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O trajecto da paixão desenganada

MARGUERITE DURAS: Sabe, o seu filme, é assim que o vejo. Vejo-o em Paris, em Paris fora do tempo, imprevisível, inverosímil, como uma cidade que foi admirável mas agora está em processo de destruição e, no interior dessa destruição, estão estas duas mulheres errantes que não se sabe lá muito bem de onde nem de que comunidade vêm — prisões, asilos psiquiátricos, bairros sociais, de certas famílias francesas, da aristocracia Muette-Passy. Estas mulheres desafiam qualquer noção de classe e são largadas na destruição de Paris, já não podem parar, elas circulam como os automóveis, como as notícias, como Nova Iorque na Europa, como o cinema, como a eternidade. Elas são perseguidas enquanto circulam, por um poder que não sabemos se é o da polícia ou o da paixão. Bulle ama um homem e não morre disso, Pascale ama o karaté: nunca se viu mulheres assim ao ar livre, sem qualquer compromisso, sem identidade, um filme que é, como um rio que corre, admirável, admirável.  JACQUES RIVETE: Isso in...
Silêncio .  Ela teria dito: tenho a cabeça cheia de vertigens e gritos.  Cheia de vento.  Então, às vezes, por exemplo, escrevo. Páginas, está a ver.  ( Pausa .)  Ou então durmo.  Fim da música. Silêncio. O Camião,  de   Marguerite Duras.

O sopro revolucionário

Marguerite Duras: (...) Acredito na utopia política, quer dizer, acredito profundamente no movimento de Allende que é talvez a coisa mais importante que aconteceu desde 17, juntamente com os primeiros momentos, os primeiros anos de Cuba. É a utopia que faz avançar as ideias de esquerda, mesmo que falhe. 68 falhou, e isso foi um avanço fantástico para a ideia de esquerda, aquilo a que durante muito tempo se chamou exigência comunista, mas que na conjuntura actual já não significa rigorosamente nada. Só se pode fazer isso.... Tentar umas coisas, mesmo se são feitas para falhar. Mesmo falhadas, são as únicas que fazem avançar o espírito revolucionário. Como a poesia faz avançar o amor. Está tudo ligado. Não há poesia — verdadeira — que não seja revolucionária. Quando Baudelaire fala dos amantes, do desejo, está no auge do sopro revolucionário. Quando os membros do Comité Central falam da revolução, é pornografia. O Camião ( entrevista com Michelle Porte) , de  Marguerite Duras.

Palavras à-toa

Michelle Porte:  Não tínhamos nenhuma confiança no espectador?  Marguerite Duras:  Não. Tomamos o espectador por uma criança. O espectáculo cinematográfico é um espectáculo infantil... Quando vemos filmes antigos na televisão, por exemplo, o espectador é tratado como uma criança atrasada, como se fosse tonto, como se tivéssemos de lhe fazer a papinha toda.  Tudo isso vai de encontro a esta suspeita, definidora, que escondi bem dentro de mim — quando filmo, ela está em todos os planos — que o cinema não existe como função fundamental. Que é uma miscelânea de aspirações derivadas, falhadas, de múltiplas amarguras. E ao mesmo tempo que é assim, e isso agrada-me, tenho de desconfiar dos polícias do cinema, desses que o guardam, que dizem: aqui, é a imagem, e não palavras à-toa — mas as palavras à-toa são palavras lassas, livres. São magníficas, as palavras à-toa. Para cada um dos meus filmes vejo esta imagem: um supermercado que arruina tudo à sua volta, e que dita pala...

O lado luxuriante

O Camião é um livro compósito. Abre com uma épigrafe de Maurice Grevisse sobre o carácter temporal do condicional. Depois vem a conversa entre Marguerite Duras e Gérard Depardieu sobre aquela mulher que pede boleia na estrada e conta a sua vida, mais as descrições da paisagem por onde o camião avança, e algumas didascálias. Seguem-se os textos de apresentação: quatro projectos onde Duras fala das suas intenções e do estado do cinema. Por fim, a entrevista de Michelle Porte. E a entrevista acaba com uma pergunta de Marguerite Duras.  M. P .: Acho que do que mais gosto n’  O Camião é que o filme fala de tudo ao mesmo tempo.  M. D .: O lado luxuriante?
Já não vale a pena fazermos o cinema da esperança socialista. Da esperança capitalista. Já não vale a pena fazermos o cinema de uma justiça por vir, social, fiscal ou outra. O cinema do trabalho. Do mérito. O cinema das mulheres. Dos jovens. Dos portugueses. Dos malianos. Dos intelectuais. Dos senegaleses.  Já não vale a pena fazermos o cinema do medo. Da revolução. Da ditadura do proletariado. Da liberdade. Dos vossos fantasmas. Do amor. Já não vale a pena.  Já não vale a pena fazermos o cinema do cinema.  Já em nada acreditamos. Acreditamos. Que alegria: acreditamos: em nada.  Já em nada acreditamos. Já não vale a pena fazermos o vosso cinema. Já não vale a pena. Temos de fazer o cinema do conhecimento disso: de não valer a pena.  Que o cinema vá para o inferno, é o único cinema.  Que o mundo vá para o inferno, que vá para o inferno, é a única política. O Camião.  Textos de Apresentação. Primeiro Projecto.  Marguerite Duras (tradução revista).

Tempo de intervenção

O condicional é o tempo verbal que nos espera, que espera por nós. Não é como o futuro que já está definido (por quem?) e por isso fechado. No condicional há uma folga em que somos chamados a intervir, em que podemos transformar o «se» em modo presente. No condicional, como no filme de Marguerite Duras, o que teria sido, é.

O tempo do verbo

Na conversa com Michelle Porte que acompanha a edição de O Camião , Marguerite Duras diz: é o primeiro filme que faço, e talvez o primeiro filme que se faz, onde o texto suporta tudo .  Mas neste texto/filme a questão gramatical é tão crucial que, creio, pode-se ir mais longe e dizer que é o único filme feito no condicional lúdico ou futuro hipotético — como as brincadeiras das crianças.

O mundo que vá para o inferno

Lutei dias e dias com a frase mais forte d’ O Camião . « Que le monde aille à sa perte » só surge quatro vezes (uma delas com todas as palavras encadeadas por hífens, outra com «o mundo» substituído pelo pronome), mas arrasa tudo. Escrevi uma série de frases possíveis, mudando o verbo ou o complemento oblíquo; cocei o queixo, inclinei a cabeça; fui ver se estava a chover. Nada. Conseguia segurar a força, mas faltava o ritmo — um golpe seco de espada. Depois lembrei-me que a Marguerite Duras gostava muito de Capri, c’est fini (a mais bela canção de amor, dizia ela). E partir daí foi mais fácil, uma canção leva a outra.

Influenciadores do século XX