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A mostrar mensagens com a etiqueta Marguerite Duras

Assumir os pressupostos da vida não fascista #5

Não sei para onde vou em O Camião . Ela, a mulher do camião, também não sabe. E isso pouco importa. Eu não sabia quem era essa mulher. Nada. Apenas isto: sabia que havia uma mulher na curva de uma estrada — vi essa estrada na Mancha, na direcção de Vauville — que esperava um camião e havia eu. Isso durante várias semanas. O Camião seguido de entrevista com Michelle Porte,  de   Marguerite Duras. BCF editores, maio de 2025. [Apresentação do livro no próximo sábado, dia 19, às 18h00, na Térmita. Com Eduardo Calheiros Figueiredo e Manuel Sá.]

Assumir os pressupostos da vida não fascista #4

M. P.: Na projecção desta noite, o aspecto político do filme impressionou-me muito, esta visão completamente desesperada.  M. D.: Desesperada e alegre.  M. P.: No filme você diz: «Que o mundo vá para o inferno, é a única política.»  M. D.: Mas ela vive isso com alegria pois vive a inventar soluções pessoais para o intolerável do mundo, por exemplo o facto de pedir boleia todas as noites inventando a sua vida.  A mulher do camião é-me completamente fraternal, é uma pessoa por quem sinto amor, isso não me acontecia desde India Song , amo-a profundamente, e ao meu redor ela é muito amada, esta mulher do camião, que obviamente não é aceite na sociedade actual, os estalinistas diriam que ela é louca. Como se a alienação em si mesmo fosse uma definição. Os escritores e as pessoas livres são tratados assim. Na sociedade, a liberdade é tratada como a loucura. Esta mulher é livre, ela ri quando ele lhe diz: «Você é uma reacionária», ela ri quando ele lhe diz: «Saiu do hosp...

Assumir os pressupostos da vida não fascista #3

M. D.: Foi tudo filmado entre Trappes e Plaisir, quer dizer, basicamente na capital da imigração em França. Não sei quantos são, talvez um milhão ou dois milhões nesta zona. Todos esses edifícios mortuários que vê foram construídos para eles, são os bancos de ensaio dos arquitectos de Paris. Os franceses fugiram deles. Devo dizer que os portugueses, nos primeiros tempos, também fugiram dos apartamentos que lhes destinámos, para voltarem às suas caravanas e aos seus bairros de lata, porque nos seus bairros de lata estavam juntos, à noite podiam comer juntos, reunirem-se. Havia uma verdadeira comunidade nos bairros de lata. Foi destruída. Foi substituída por esses blocos que vê no filme, esses fabulosos amontoados de alojamentos. Em vez de uma caravana, agora há entre sete e doze casas sobrepostas. Em Pequim é a mesma coisa, no México, em Madrid. Eu prefiro os bairros de lata, sem água, sem conforto, mesmo que faça muito calor, prefiro. O Camião seguido de entrevista com Michelle Porte,...

Assumir os pressupostos da vida não fascista #2

Voz off de M. D.  Ela teria apontado para o mar  [ Pausa .]  Ela diz: veja, o fim do mundo.  A toda a hora  A cada segundo.  Por toda a parte.  Espalha-se.  Ela diz: é melhor, sim.  É tão difícil... tão... tão duro... tão...  É melhor assim. É o melhor.  Não valia a pena, é o que eu acho...  [ Pausa .]  Ela diz: antes, já havia mar, aqui,  Além, veja.  Além.  [ Pausa .]  Ele diz: mas de que é que está a falar? Ela diz: eu falo.  [ Pausa .]  Ela canta.  Ela fecha os olhos e canta. O Camião seguido de entrevista com Michelle Porte,  de   Marguerite Duras. BCF editores, maio de 2025. [Apresentação do livro no próximo sábado, dia 19, às 18h00, na Térmita. Com Eduardo Calheiros Figueiredo e Manuel Sá.]

Assumir os pressupostos da vida não fascista #1

G. D. Ela fala? M. D. Sim, ela vai falar. G. D. [ Pausa .] Quem é ela? M. D. Uma desqualificada [ Pausa .] Está a ver? G. D. Sim [ Pausa .] M. D. O único elemento em comum entre eles é uma certa violência no olhar. Face a esse vazio diante deles, o Inverno nu, o mar. [ Pausa .] O silêncio no início do filme teria representado a primeira relação entre as personagens. Relação distante, quase indiferente, maquinal. Teria sido uma espécie de estabelecimento de uma relação por vir. G. D. Essa relação vai acontecer? M. D. [ Pausa .] Talvez nunca. G. D. [ Pausa .] O que é que acha? M. D. [ Pausa .] Nunca. O Camião seguido de entrevista com Michelle Porte,  de   Marguerite Duras. BCF editores, maio de 2025. [Apresentação do livro no próximo sábado, dia 19, às 18h00, na Térmita. Com Eduardo Calheiros Figueiredo e Manuel Sá.]
 
«Nestas páginas bravias, descobrimos uma mulher que diz o que pensa, filma como quer e já não tem nada a perder. Trabalhando nas margens e sobre as palavras, Duras prefere vaguear sem destino. Não sabe para onde vai, diz ela, mas não aceita que lhe cortem o direito à inteligência ou às suas próprias contradições — ora aqui está uma bela definição de liberdade! De certa forma, ela foi sempre uma estranha no cinema, alguém que veio da escrita e não foi aceite pelos «polícias do cinema, esses que o guardam, que dizem: aqui, é a imagem, e não palavras à-toa». Talvez tenha sido essa estranheza que a empurrou para tamanha insolência. O cinema só poderá continuar se cortar com as amarras monetárias que o dominam e fecham, diz ela. É isso. Um apelo destemido, sem dúvida, mas como nos mostrou a mulher que pede boleia na estrada e todas as noites inventa a sua vida, um acto de loucura pode ser um acto de amor — o maior de todos.» Apresentação do livro O Camião seguido de entrevista por Michelle ...

«Pensei muitas vezes nessa mulher»

Devia ter vinte e tal anos quando vi O Camião pela primeira vez numa sessão no antigo Instituto Francês, na Praça da República. Era um objecto estranho e atraente como um redemoinho. Depois vi tantos filmes que o fui esquecendo. Nos últimos anos voltou a surgir, mas agora as imagens, palavras e música vinham de dentro de mim, um reflexo, um filão de memórias que se impunham. Comecei a fazer o caminho do reencontro. Os travellings que imito aos domingos de manhã pelas estradas nacionais dos subúrbios. A aproximação àquela mulher louca e politicamente tão lúcida. O exercício de tradução. A tradução é o passo mais arriscado — até tremo.

Coisas para arreliar a autora

Foi editada dois anos depois da Chantal (ajuste de contas com 1975). O Camião está encostado a O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, de Karl Mark ( Ela diz: sabe, Karl Marx, acabou-se ). A fotografia na contracapa é do Saviem azul de trinta e duas toneladas (tão assustador como o carro assassino de Carpenter). A Ana Jotta partiu o livro de cima abaixo. E eu, com a ajuda valente do João, tomei muitas liberdades. No fundo, adoramos O Camião .

Que tudo vá para o inferno!

Na próxima quinta-feira vou a Lisboa . Vai ser o ponto alto da campanha eleitoral.
A imagem desaparece. O NEGRO do fim começa (dezasseis segundos de negro).  Voz off de MD  Aguarda-se o acidente que povoará a floresta.  É o ruído de uma passagem.  Não se sabe de quem, de quê.  [ Silêncio .]  E depois, pára.  O tema de Diabelli sobrepõe-se à música, estridente, e envolve o desenrolar do GENÉRICO .   O Camião,  de   Marguerite Duras.

Presto scherzando

Quando decidiu contar o que teria sido O Camião se tivesse sido filmado, Marguerite Duras foi furiosamante contra as convenções do cinema. Não só fez um filme suportado pelo texto como o construiu sobre um tempo verbal que é em simultâneo passado e futuro: o futuro hipotético das brincadeiras das crianças. Essa liberdade lúdica resgata o poder encantatório das histórias orais e apanha-nos em cheio. Na sala escura somos convocados a participar: vemos as imagens projectadas (Marguerite Duras e Gérard Depardieu sentados numa sala da casa de Neauphle-le-Château a ler o texto pela primeira vez com as folhas na mão, o camião a avançar pelas estradas, atravessando a paisagem e o inverno) e vemos outras imagens por trás dos nossos olhos — como se houvesse dois filmes a caminhar em paralelo para a perdição. Uma potência descomunal que trabalha misteriosamente dentro de nós. 

O trajecto da paixão desenganada

MARGUERITE DURAS: Sabe, o seu filme, é assim que o vejo. Vejo-o em Paris, em Paris fora do tempo, imprevisível, inverosímil, como uma cidade que foi admirável mas agora está em processo de destruição e, no interior dessa destruição, estão estas duas mulheres errantes que não se sabe lá muito bem de onde nem de que comunidade vêm — prisões, asilos psiquiátricos, bairros sociais, de certas famílias francesas, da aristocracia Muette-Passy. Estas mulheres desafiam qualquer noção de classe e são largadas na destruição de Paris, já não podem parar, elas circulam como os automóveis, como as notícias, como Nova Iorque na Europa, como o cinema, como a eternidade. Elas são perseguidas enquanto circulam, por um poder que não sabemos se é o da polícia ou o da paixão. Bulle ama um homem e não morre disso, Pascale ama o karaté: nunca se viu mulheres assim ao ar livre, sem qualquer compromisso, sem identidade, um filme que é, como um rio que corre, admirável, admirável.  JACQUES RIVETE: Isso in...
Silêncio .  Ela teria dito: tenho a cabeça cheia de vertigens e gritos.  Cheia de vento.  Então, às vezes, por exemplo, escrevo. Páginas, está a ver.  ( Pausa .)  Ou então durmo.  Fim da música. Silêncio. O Camião,  de   Marguerite Duras.

O sopro revolucionário

Marguerite Duras: (...) Acredito na utopia política, quer dizer, acredito profundamente no movimento de Allende que é talvez a coisa mais importante que aconteceu desde 17, juntamente com os primeiros momentos, os primeiros anos de Cuba. É a utopia que faz avançar as ideias de esquerda, mesmo que falhe. 68 falhou, e isso foi um avanço fantástico para a ideia de esquerda, aquilo a que durante muito tempo se chamou exigência comunista, mas que na conjuntura actual já não significa rigorosamente nada. Só se pode fazer isso.... Tentar umas coisas, mesmo se são feitas para falhar. Mesmo falhadas, são as únicas que fazem avançar o espírito revolucionário. Como a poesia faz avançar o amor. Está tudo ligado. Não há poesia — verdadeira — que não seja revolucionária. Quando Baudelaire fala dos amantes, do desejo, está no auge do sopro revolucionário. Quando os membros do Comité Central falam da revolução, é pornografia. O Camião ( entrevista com Michelle Porte) , de  Marguerite Duras.

Palavras à-toa

Michelle Porte:  Não tínhamos nenhuma confiança no espectador?  Marguerite Duras:  Não. Tomamos o espectador por uma criança. O espectáculo cinematográfico é um espectáculo infantil... Quando vemos filmes antigos na televisão, por exemplo, o espectador é tratado como uma criança atrasada, como se fosse tonto, como se tivéssemos de lhe fazer a papinha toda.  Tudo isso vai de encontro a esta suspeita, definidora, que escondi bem dentro de mim — quando filmo, ela está em todos os planos — que o cinema não existe como função fundamental. Que é uma miscelânea de aspirações derivadas, falhadas, de múltiplas amarguras. E ao mesmo tempo que é assim, e isso agrada-me, tenho de desconfiar dos polícias do cinema, desses que o guardam, que dizem: aqui, é a imagem, e não palavras à-toa — mas as palavras à-toa são palavras lassas, livres. São magníficas, as palavras à-toa. Para cada um dos meus filmes vejo esta imagem: um supermercado que arruina tudo à sua volta, e que dita pala...

O lado luxuriante

O Camião é um livro compósito. Abre com uma épigrafe de Maurice Grevisse sobre o carácter temporal do condicional. Depois vem a conversa entre Marguerite Duras e Gérard Depardieu sobre aquela mulher que pede boleia na estrada e conta a sua vida, mais as descrições da paisagem por onde o camião avança, e algumas didascálias. Seguem-se os textos de apresentação: quatro projectos onde Duras fala das suas intenções e do estado do cinema. Por fim, a entrevista de Michelle Porte. E a entrevista acaba com uma pergunta de Marguerite Duras.  M. P .: Acho que do que mais gosto n’  O Camião é que o filme fala de tudo ao mesmo tempo.  M. D .: O lado luxuriante?
Já não vale a pena fazermos o cinema da esperança socialista. Da esperança capitalista. Já não vale a pena fazermos o cinema de uma justiça por vir, social, fiscal ou outra. O cinema do trabalho. Do mérito. O cinema das mulheres. Dos jovens. Dos portugueses. Dos malianos. Dos intelectuais. Dos senegaleses.  Já não vale a pena fazermos o cinema do medo. Da revolução. Da ditadura do proletariado. Da liberdade. Dos vossos fantasmas. Do amor. Já não vale a pena.  Já não vale a pena fazermos o cinema do cinema.  Já em nada acreditamos. Acreditamos. Que alegria: acreditamos: em nada.  Já em nada acreditamos. Já não vale a pena fazermos o vosso cinema. Já não vale a pena. Temos de fazer o cinema do conhecimento disso: de não valer a pena.  Que o cinema vá para o inferno, é o único cinema.  Que o mundo vá para o inferno, que vá para o inferno, é a única política. O Camião.  Textos de Apresentação. Primeiro Projecto.  Marguerite Duras (tradução revista).

Tempo de intervenção

O condicional é o tempo verbal que nos espera, que espera por nós. Não é como o futuro que já está definido (por quem?) e por isso fechado. No condicional há uma folga em que somos chamados a intervir, em que podemos transformar o «se» em modo presente. No condicional, como no filme de Marguerite Duras, o que teria sido, é.

O tempo do verbo

Na conversa com Michelle Porte que acompanha a edição de O Camião , Marguerite Duras diz: é o primeiro filme que faço, e talvez o primeiro filme que se faz, onde o texto suporta tudo .  Mas neste texto/filme a questão gramatical é tão crucial que, creio, pode-se ir mais longe e dizer que é o único filme feito no condicional lúdico ou futuro hipotético — como as brincadeiras das crianças.