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A mostrar mensagens com a etiqueta O Idiota
Como nos vícios, queremos sempre algo mais forte. Depois d’ O Idiota, avanço para Os Irmãos Karamázov. Sinto um formigueiro na cabeça.

Se o banco fosse verde

Nove e pouco da manhã. Estou sentada no jardim do Calém a apanhar sol, a fazer tempo. Ele vem ter comigo e diz: — Não tenha medo de mim, eu não sou um assassino. Depois acrescenta muitas coisas, conta uma história complicada quase sem sentido, mostra-me as mãos abertas, mas já não presto atenção. Aquela frase podia ser d’ O Idiota. Se o banco fosse verde.

Uma cena de luta de mulheres na lama

Conforme previsto, o sarau de apresentação do príncipe à alta sociedade, em casa dos Epantchin, correu muito mal. O príncipe exaltou-se ao falar sobre religião — o tema, por excelência, supremo—, partiu o vaso chinês, caíu redondo no chão. Pouco apto para marido de Aglaia ou o que quer que seja, depreenderam os ilustres convidados. Mas o golpe final vem mais tarde, quando Aglaia, fazendo-se acompanhar pelo príncipe, decide visitar Nastássia para acerto de contas. Parece uma cena de luta de mulheres na lama: Aglaia e Nastássia ao centro, copo a corpo; o príncipe e Rogójin na retaguarda, nervosos e inseguros. Aglaia levantou ativamente a cabeça. — Tenha tento na língua, não foi com essa arma que vim lutar consigo... — Aah! Porque afinal de contas, veio cá para “lutar”? Imagine, pensei que a menina era mais espiritual... Aglaia ataca Nastássia pela forma como ela que se colou ao príncipe para logo o largar pelo ricaço Rogójin , a sua mania em chafurdar na desonra como um anjo qu

A literatura em ritmo de cavalgada

Depois de um pequeno intervalo, retomei a leitura d’ O Idiota. A quarta parte (última e conclusiva) começa com uns pressupostos teóricos do narrador, dá lugar a personagens menores para fazer tempo, e entretanto percebe-se que as coisas vão aquecer. A partir do capítulo seis, a sequência de cenas é exímia no humor e no ritmo. O diálogo entre Aglaia e o príncipe, a sós e à parte, sobre o sarau de apresentação do presumível noivo à alta sociedade é tão divertido e rico em estratagemas, caretas e equívocos linguísticos que parece filmado por Lubitsch: — Oiça, Aglaia — disse o príncipe — parece que está com muito medo de eu amanhã chumbar... nessa sociedade? — Medo? Por si? — corou toda Aglaia. — Por que havia de ter medo por si, nem que... se cobrisse totalmente de vergonha? O que me importa isso? E que tipo de linguagem é essa? O que quer dizer “chumbar”? Acho de mau gosto, uma palavra ordinária. — É uma palavra... estudantil. — Pois, estudantil! Imprestável! Já vi que amanhã, pe

Ah, se houvesse um burro

Não sei qual é a minha personagem favorita d’ O Idiota ; são todos exaltados em demasia. Mesmo o Príncipe, agora que estou mais perto da idade de Lisaveta, parece-me tão parvinho como Aglaia. E os nilistas, sempre prontos a trocar as frases radicais pelos tormentos da alma — que decepção! Na verdade, apesar de me divertir muito com as grandes e as pequenas intrigas, de quem gosto mais é do narrador. Ou do burro, se houvesse um burro.

Maneiras e lágrimas

Ainda sobre a cena dos “pensamentos duplos”, é aí que Keller diz duas das falas mais engraçadas do livro sobre maneiras : — Quais esmeraldas? Oh, príncipe, o senhor vê a vida ainda com tanta inocência e ingenuidade, vê a vida, pode até dizer-se, de maneira pastoril! — Impossível?! — exclamou Keller pesaroso. — Oh, príncipe, até que ponto o senhor continua a compreender uma pessoa, por assim dizer, à maneira Suíça! E utiliza sete vezes a palavra “lágrimas” no seu choradinho, chegando ao ponto de exclamar: (...) Deste modo, preparei a confissão como quem, por assim dizer, prepara uma “ fines-herbes de lágrimas” (...). Ora, com tantas maneiras bucólicas e lágrimas frequentes, como é que Cioran não havia de ler, reler, gostar dos livros de Dostoiévski?

Os pensamentos duplos

É uma cena curta e discreta só com duas personagens; não chega a ocupar quatro páginas. Passa-se na casa de campo de Lébedev, em Pávlovsk, onde o príncipe Míchkin está hospedado. Ao anoitecer, Keller irrompe pelo quarto do príncipe com confissões várias tentando desculpar-se indirectamente pelo artigo difamatório publicado no jornal, mas também cravar alguns rublos. Míchkin apercebe-se da duplicidade do gesto e desmascara-o sem, no entanto, o julgar. Em vez disso, Míchkin isola o procedimento mental de Keller, descreve e explica os pensamentos duplos — como um professor na sala de aula. É um assunto que ele conhece por dentro, que o preocupa e assusta cada vez mais: dois pensamentos opostos que coincidem e — provocam uma desordem, uma hecatombe? Sem saber, Míchkin estava quase a criar um conceito filosófico. Agora é tarde demais.

São gente prática

— Não, não são propriamente niilistas — adiantou Lébedev, que também quase tremia de emoção —, são outros, muito especiais, o meu sobrinho diz que eles vão mais longe do que os niilistas. Não pense que os embaraça com a sua presença, excelência; eles não se deixam atrapalhar. Os niilistas, em qualquer caso, às vezes são gente culta, com muitos conhecimentos, mas estes foram mas longe porque, em primeiro lugar, são gente prática. No fundo, são uma consequência do niilismo, mas não directa, antes “por vias travessas”, e não se limitam a manifestar-se nuns desgraçados artiguelhos de revista, mas agem, directamente, na prática; não se trata da inutilidade, por exemplo, de um qualquer Púchkin nem, por exemplo, da necessidade de desintegração da Rússia; não, agora, literalmente, considera-se que existe o direito, caso nos apeteça muito qualquer coisa, de não parar diante de nada para a conseguir, nem que para isso seja preciso despachar oito pessoas. Eu não lhe aconselharia, príncipe... O

O Idiota — primeira parte

O romance começa dentro de uma carruagem de terceira classe do comboio Varsóvia-Petersburgo. O príncipe Míchkin regressa da Suíça, onde durante quatro anos tentaram tratar a sua doença nervosa do género da epilepsia . Parfion Rogójin vem de Pskov, da casa da tia onde se curou das terçãs. Convalescentes, os dois. Um comboio é um bom princípio; já está tudo em movimento — a caminho de Petersburgo e das desgraças. Ainda não sabemos, nem os leitores nem as personagens, mas o príncipe Míchkin e Parfion Rogójin têm a mesma missão: receber uma herança e resgatar a concubina Nastássia Filíppovna. Os dois rapazes (vinte e seis, vinte e sete anos) são duplos opostos; cada um avança numa direcção diferente do tabuleiro. O casamento com Rogójin a troco de cem mil rublos é a perdição certa de Nastássia. Mais, é a perdição dentro da perdição, se assim se pode dizer. Um fim perfeito e coerente. Atrai Nastássia para o abismo da inevitabilidade. (Talvez os russos tenham um provérbio para dizer “o

Filosofia e vacas

Como seria de esperar — bom, como eu esperava —, logo na página 115 surge uma definição de filósofo. Dostoiévski entrega a tarefa a uma personagem um bocado avariada da cabeça ou, pelo menos, destravada. No seu primeiro encontro com Nastássia Filíppovna, Ardalion Aleksándrovitch diz: (...) Em todos os outros sentidos, vivo como um filósofo, ando, passeio, jogo damas no meu café, como um burguês que se afastou dos negócios, e leio o Indépendance . É uma imagem suave (quase roça o tema das camisas brancas), fácil de pôr em prática. Continuo a preferir a cena das vacas escrita pela Lydia Davis — mais contemporânea e exigente?

Estão todos doentes

Resolvi aproveitar as férias para reler “O Idiota”. Nas primeiras cem páginas apanhei referências a epilepsia, dança de São Vito, terçãs, coqueluche e tísica. A trama confunde-se muitas vezes com um relatório clínico — deve ser por isso que Cioran gosta tanto de Dostoiévski.