Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de fevereiro, 2016

Próximo sábado, 5 de Março, 17h00, no Gato Vadio.

Imagem de Luís Nobre, dos Lina&Nando .

Plano

Começa sempre pelo princípio. Pega numa caneta e numa folha de papel. O que tens vestido? Muito bem, escreve. Acrescenta mais uma camisola, um par de meias, luvas. O que tens calçado? Botas, sapatos, chinelas de quarto? Escreve. Onde estavas há uma hora? No autocarro, na rua, em casa, na cama? Escreve. De que precisas agora? Tabaco, vinho, café? Escreve. Um saca-rolhas? Escreve. O rádio ligado? Escreve. Escreve tudo até ao fim. Não deixes nada por dizer, escreve até esgotares as coisas que te rodeiam, os fantasmas, a imaginação. De seguida, lê com cuidado o que escreveste para teres a certeza de que não falta nada. Depois volta a verificar e corta tudo o que pode ser dispensável. Depois, risca tudo. Depois, queima o papel. É este o plano que deves seguir sempre.
Dedicatória de Três ingleses no estrangeiro , de Jerome K. Jerome.

Indicações de cena

O Conde de Eu e Visconde de Qualquer Coisa entra pelo fundo (as pernas um pouco arqueadas), fecha o guarda-chuva e coloca-o a um canto. Depois, senta-se, tira os sapatos de borracha, atira-os para debaixo do sofá, desenrola o cache-nez e desdobra a bainha da calça. Arrota e esfrega o nariz. Arrota outra vez e adormece. Talvez para sempre.

Paciência, Sísifo!

Sísifo empurrava um enorme porco ladeira acima. O porco grunhia e tentava por todos os meios escapar a Sísifo. Este segurava e empurrava o animal, empenhando nisso todas as suas forças. Assim que chegava ao topo, uma mão invisível libertava o porco, que corria, grunhindo de alívio, ladeira abaixo. Sísifo descia, capturava o animal e recomeçava o trabalho, uma e outra vez, por toda a eternidade. Paciência, Sísifo!

Nem o autor saberia dizer muito bem qual a sua “intenção”

Antigamente, traduzir era, cientificamente, “impossível” (apesar de haver tradução desde sempre…), já que não temos acesso à “intenção do autor” e que existem termos “intraduzíveis” de umas culturas ou outras; o tradutor era um “traidor”, por mais que tentasse ser “fiel” à obra, e esta era sempre “perfeita”, enquanto que a tradução, “diferente”, sempre “inferior”, sempre fadada ao fracasso, sempre destinada a “perder” coisas aqui e ali. Hoje em dia, em grande parte graças aos desconstrutivistas, sabemos (ou ao menos, rosianamente, desconfiamos) que, de qualquer forma, nem o autor saberia dizer muito bem qual a sua “intenção” (lembro de uma anedota do escritor que foi resolver questões de vestibular sobre seu próprio livro e foi reprovado…), que existem termos “intraduzíveis” que são perfeitamente explicáveis, que as obras não são algo fixo, rijo e uno, e que, portanto, tendo em vista a pluralidade de pontos de vista possíveis e a historicidade de que estão impregnados tanto os autores
Leonid Pasternak (1862-1945)

Variações sobre o mesmo tema

Dois homens entram num bar. Grillparzer e Hebbel entram num bar. Um ser de ferro e uma serpente entram num bar. La Fontaine e uma doninha entram, de rompante, num bar. Um pavão e as ruínas do Castelo de Heidelberg entram num bar. Um autor famoso e um autor de que ninguém fala entram num bar. Um romance de Dostoiévski e uma tragédia grega entram num bar. Uma nuvem e um cavaleiro montado no seu garboso cavalo entram num bar. O orgulho sereno de Gluck e a bondade de coração de Haydn entram num bar. A rigidez e a insociabilidade nórdico-protestantes entram, de braço dado, num bar. Uma obra de arte e o sentido profundo da língua entram, completamente ébrios, num bar.

Uma volta à cadeira

Na região de Chao-chou, uma velha mulher enviou ao mestre um donativo pedindo-lhe que recitasse toda a colecção de sutras budistas. Ao ouvir o pedido, o mestre levantou-se e deu uma volta à cadeira. Depois disse: “Acabo de recitar toda a colecção de sutras”. Quando o mensageiro regressou e transmitiu à mulher a resposta de Chao-chou, ela perguntou: Pedi a Chao-chou que recitasse toda a colecção de sutras. Por que motivo ele não recitou senão metade? Koan incluído no ensaio Koans in the Dogen tradition: How and why Dogen does what he does with Koans , de Steve Heine. Tradução de Rosa Maria Martelo.
El sueño del caballero , ou Desengaño del Mundo , de Antonio de Pereda, circa 1650.

Uma bela manhã

O traseiro de Bastian era o sítio para onde convergiam todos os pés. Homens, mulheres, velhos, novos, padres, políticos, altos ou coxos, ninguém se poupava a um belo pontapé no traseiro de Bastian. Era um hábito que fazia parte da vida da cidade. Os pontapés sucediam-se nas ruas, nos transportes públicos, nos cafés e no escritório, com a precisão de um relógio solar. Durante a noite ainda ia tudo bem. Mas de manhã o martírio do pobre homem começava. Havia sempre alguém com vontade de desferir um panásio certeiro. E ao fim do dia, esgotado, abatido, amarrotado, com o traseiro moído de pancadas, arrastava-se até casa. Apesar disso, Bastian conservava a impassibilidade de um santo de altar. Era um homem pacífico, incapaz de fazer mal a uma mosca. Tossia, arqueava as sobrancelhas, acendia um cigarro, e lá ia andando e apanhando pontapé atrás de pontapé. Mas por que razão não punha ele termo àquilo? Por que não fazia qualquer coisa, por que não tomava uma atitude? Os anos foram passando,