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Não sei resumir-me

- Que pretendeu então exprimir com as suas interrogações? - Pois bem, para aqueles que nunca me leram, e são muitos, quis exprimir o desconforto da existência, a separação do homem das suas raízes transcendentais; quis exprimir igualmente que, mesmo enquanto falavam, os homens não sabiam o que queriam dizer e que falavam para não dizer nada, que a linguagem, em vez de os aproximar uns dos outros, não faz senão separá-los ainda mais; quis traduzir o carácter insólito da nossa existência; quis parodiar o teatro, isto é, o mundo, e o que escrevi foi em parte, evidentemente, uma paródia, talvez mesmo a paródia da paródia; enfim, que quer que lhe diga, quis dizer o que quis dizer e, umas vezes bem, outras vezes mal, disse-o, e muitas outras coisas ainda que estão nos meus livros. Como vê, não sei resumir-me. Eugène Ionesco, numa entrevista publicada como apêndice a O Solitário . Tradução de Luiza Neto Jorge.

Mal-estar

Eugène Ionesco queixa-se várias vezes, em A Busca Intermitente , da sua obstipação crónica e das constantes crises hemorroidárias, que quase o impedem de escrever. Vassili Grossman, por seu lado, dedica várias páginas, em Bem Hajam! , aos terríveis desarranjos intestinais que experimentou em diferentes ocasiões sociais, na Arménia, e que o conduziram ao limiar do desespero. Durante um desses episódios, chega a considerar a hipótese, logo afastada, de estourar os miolos para escapar à vergonhosa catástrofe: «Se tivesse comigo um revólver… Mas não, por certo que não me daria um tiro na cabeça. Teria sofrido uma vergonha pungente, inédita, tornar-me-ia uma lenda obscena, um herói do folclore grosseiro, mas não me mataria a tiro.» A natureza está sempre a pregar partidas muitíssimo misteriosas à literatura. Que estranhas e secretas ligações há entre a escrita e os intestinos? Pudesse a literatura livrar-se das desordens e angústias do corpo, e o que restaria dela?