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Linha A

Os livros de Dostoiévski tornaram-se mais políticos. “A Submissa” (a tradução é macia, mas continuo a embirrar com o título) é pura política do desespero . O metro não devia sair do subsolo.

Uma impostura

Terei lido mal Os Irmãos Karamázov ? Li-o como se de uma blague se tratasse. Dostoiévski destrói o que até então considerávamos uma obra de arte com assertividade, dignamente. Parece-me, após a leitura, que qualquer romance, poema, quadro ou música que não se destrua, quer dizer, que não se construa como um jogo de massacre que o inclua entre as suas vítimas, é uma impostura. Jean Genet, a propósito dos Irmãos Karamázov.

Noites Brancas

Vi ontem, na televisão, As Noites Brancas do Carteiro , de Andrei Konchalovsky. É um filme belíssimo. Alguns críticos referem o «simbolismo do título», que evoca Noites Brancas , de Dostoiévski. É possível. Para mim, no entanto, é mais óbvio o fantasma de Bulgákov. Há um gato preto que aparece recorrentemente, em visões, ao carteiro. Que outro gato poderá ser senão Behemoth?
Custa-me aceitar o título “A Submissa” . (Não é uma questão semântica.)

Fábula bressoniana

Ontem, por volta das seis da tarde, um grupo de raparigas e rapazes franceses entrou no 502 (paragem Serralves). Eram mais de dez, falavam baixo, tinham a beleza diáfana dos modelos de Bresson. Parecia aquela cena de  Le Diable probablement . Um deles (esguio, calças e sapatilhas pretas, camisa esbranquiçada larga sem colarinho, gorro preto) podia ser Ivan Karamazov e trazer o diabo no bolso. 

O tempo dos Smerdiakoves

Continuo a pensar n’ Os Irmãos Karamázov . O livro de Dostoiévski deixa várias inquietações que não consigo ultrapassar.  Logo no início, o narrador explica que a personagem principal do livro é Aleksei. Paradoxalmente esta elucidação cria uma dúvida: porque é que ele tem de o dizer, não devia ser evidente ao longo da leitura do romance?  Se o narrador toma essa precaução é porque receia que Ivan Fiódorovitch se transforme na personagem mais importante. O episódio do Grande Inquisidor (onde Ivan cria um espaço autónomo de narração dentro do livro), as ideias e gestos radicais, o desvario mental e as febres são provas inequívocas. Além disso, Ivan é uma personagem compósita: tem o diabo como emanação (as febres e alucinações) e Smerdiakov como duplo ou, melhor dizendo, excrescência.  E esta é a inquietação mais grave. Esse tal Smerdiakov — criatura repelente em extremo — mostra-nos como os pensamentos podem apodrecer. A sua maneira de ser rancorosa, a forma rebuscada de se exprimir, as

Tour de France, Tour de France

A forma como estou a praticar Cioran é muito revigorante; mais do que disciplina é todo um curso: depois de Dostoiévski,  Emily Dickinson, Bach, e não sei quantos dicionários de francês, eis que chega a vez de Swift. Vou começar pela releitura dos “ Preceitos para uso do pessoal doméstico e outros   textos ”.

Divertimento

“Mas também o sofredor gosta às vezes de se divertir com o seu desespero, como se o fizesse também por desespero.” — Diz o stárets Zóssima a Ivan Fiódorovitch Karamázov. Podia ser um rascunho de Cioran nos seus Cadernos.
— Pela última vez, Deus também não existe. — Então, quem anda a gozar assim com as pessoas, Ivan? — O Diabo, pelos vistos — esboçou um sorriso Ivan Fiódorovitch. — E o Diabo existe? — Não, também não existe. Os Irmãos Karamázov, primeira parte, livro 3 “Os Voluptuosos”, capítulo 8 “Enquanto se toma conhaque”. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra. Editorial Presença. Outubro de 2002.

O tipo de homem não só inútil e depravado, mas ao mesmo tempo inapto.

Apesar do título e do narrador explicar, ainda antes de começar a acção, que o herói do livro é Aleksei Fiódorovitch Karamázov, as descrições e as entradas em cenas de Fiódor Pávlovitch (pai dos três irmãos Karamázov) são prodigiosas de bufonaria. Só para dar três exemplos. Logo na primeira página do primeiro capítulo, um retrato e conceito muito bem definidos (nada a mais, nada em falta, excelente ritmo): Agora digo apenas que este “proprietário rural” (como lhe chamavam aqui, embora não tenha vivido na sua propriedade durante quase toda a vida) era um tipo estranho, desses que no entanto se encontram com bastante frequência, ou seja, o tipo de homem não só inútil e depravado, mas ao mesmo tempo inapto — desses inaptos que, aliás, sabem tratar muitíssimo bem dos seus interesses mas, pelos vistos, só disso. (Página 17) Mais à frente, esta conversa de Fiódor Pávlovitch com o filho Aleksei é de uma perfeição extrema e perturbadora; por preguiça transcrevo apenas um pedaço: (...)

Corrida de obstáculos

Para ocupar cinquenta por cento do meu tempo de trabalho — agora e possivelmente até ao fim do ano — livre, pensei traduzir as Lágrimas e Santos do Cioran de uma ponta à outra. Decidi continuar a ler Dostoiévski para aquecimento e preparação, como se fosse uma prova de atletismo. Os Irmãos Karamázov estão a revelar-se uma verdadeira musa, quero dizer, tusa, não, púsia, púsia — assim é que é.
Como nos vícios, queremos sempre algo mais forte. Depois d’ O Idiota, avanço para Os Irmãos Karamázov. Sinto um formigueiro na cabeça.

Uma cena de luta de mulheres na lama

Conforme previsto, o sarau de apresentação do príncipe à alta sociedade, em casa dos Epantchin, correu muito mal. O príncipe exaltou-se ao falar sobre religião — o tema, por excelência, supremo—, partiu o vaso chinês, caíu redondo no chão. Pouco apto para marido de Aglaia ou o que quer que seja, depreenderam os ilustres convidados. Mas o golpe final vem mais tarde, quando Aglaia, fazendo-se acompanhar pelo príncipe, decide visitar Nastássia para acerto de contas. Parece uma cena de luta de mulheres na lama: Aglaia e Nastássia ao centro, copo a corpo; o príncipe e Rogójin na retaguarda, nervosos e inseguros. Aglaia levantou ativamente a cabeça. — Tenha tento na língua, não foi com essa arma que vim lutar consigo... — Aah! Porque afinal de contas, veio cá para “lutar”? Imagine, pensei que a menina era mais espiritual... Aglaia ataca Nastássia pela forma como ela que se colou ao príncipe para logo o largar pelo ricaço Rogójin , a sua mania em chafurdar na desonra como um anjo qu

A literatura em ritmo de cavalgada

Depois de um pequeno intervalo, retomei a leitura d’ O Idiota. A quarta parte (última e conclusiva) começa com uns pressupostos teóricos do narrador, dá lugar a personagens menores para fazer tempo, e entretanto percebe-se que as coisas vão aquecer. A partir do capítulo seis, a sequência de cenas é exímia no humor e no ritmo. O diálogo entre Aglaia e o príncipe, a sós e à parte, sobre o sarau de apresentação do presumível noivo à alta sociedade é tão divertido e rico em estratagemas, caretas e equívocos linguísticos que parece filmado por Lubitsch: — Oiça, Aglaia — disse o príncipe — parece que está com muito medo de eu amanhã chumbar... nessa sociedade? — Medo? Por si? — corou toda Aglaia. — Por que havia de ter medo por si, nem que... se cobrisse totalmente de vergonha? O que me importa isso? E que tipo de linguagem é essa? O que quer dizer “chumbar”? Acho de mau gosto, uma palavra ordinária. — É uma palavra... estudantil. — Pois, estudantil! Imprestável! Já vi que amanhã, pe

A dialéctica fundiu

— É paradoxal que as melhores adaptações de Dostoiévski sejam de Bresson: um é eufórico e o outro refreado. — Não basta não gostar das Noites Brancas, de Visconti, para determinar esta certeza. — Quando escrevo “melhores adaptações” quero dizer: as que vão directas ao âmago. Quando escrevo "âmago", quero dizer: coração. — Mas, para além desse disparo certeiro, Bresson transforma as histórias de Dostoiévski em objectos austeros ou, como diria um cinéfilo praticante, justas . — Insolente. — Em termos estéticos, troca Dionísio por Apolo. — Em termos corriqueiros, retira toda a doença a Dostoiévski ou melhor: substitui a epilepsia por uma neurose contemplativa. — Resulta tão bem no cinema. — Mas é revigorante voltar a Dostoiévski e encontrar a exaltação e seres humanos mais imperfeitos.

Ah, se houvesse um burro

Não sei qual é a minha personagem favorita d’ O Idiota ; são todos exaltados em demasia. Mesmo o Príncipe, agora que estou mais perto da idade de Lisaveta, parece-me tão parvinho como Aglaia. E os nilistas, sempre prontos a trocar as frases radicais pelos tormentos da alma — que decepção! Na verdade, apesar de me divertir muito com as grandes e as pequenas intrigas, de quem gosto mais é do narrador. Ou do burro, se houvesse um burro.

Maneiras e lágrimas

Ainda sobre a cena dos “pensamentos duplos”, é aí que Keller diz duas das falas mais engraçadas do livro sobre maneiras : — Quais esmeraldas? Oh, príncipe, o senhor vê a vida ainda com tanta inocência e ingenuidade, vê a vida, pode até dizer-se, de maneira pastoril! — Impossível?! — exclamou Keller pesaroso. — Oh, príncipe, até que ponto o senhor continua a compreender uma pessoa, por assim dizer, à maneira Suíça! E utiliza sete vezes a palavra “lágrimas” no seu choradinho, chegando ao ponto de exclamar: (...) Deste modo, preparei a confissão como quem, por assim dizer, prepara uma “ fines-herbes de lágrimas” (...). Ora, com tantas maneiras bucólicas e lágrimas frequentes, como é que Cioran não havia de ler, reler, gostar dos livros de Dostoiévski?

Os pensamentos duplos

É uma cena curta e discreta só com duas personagens; não chega a ocupar quatro páginas. Passa-se na casa de campo de Lébedev, em Pávlovsk, onde o príncipe Míchkin está hospedado. Ao anoitecer, Keller irrompe pelo quarto do príncipe com confissões várias tentando desculpar-se indirectamente pelo artigo difamatório publicado no jornal, mas também cravar alguns rublos. Míchkin apercebe-se da duplicidade do gesto e desmascara-o sem, no entanto, o julgar. Em vez disso, Míchkin isola o procedimento mental de Keller, descreve e explica os pensamentos duplos — como um professor na sala de aula. É um assunto que ele conhece por dentro, que o preocupa e assusta cada vez mais: dois pensamentos opostos que coincidem e — provocam uma desordem, uma hecatombe? Sem saber, Míchkin estava quase a criar um conceito filosófico. Agora é tarde demais.

São gente prática

— Não, não são propriamente niilistas — adiantou Lébedev, que também quase tremia de emoção —, são outros, muito especiais, o meu sobrinho diz que eles vão mais longe do que os niilistas. Não pense que os embaraça com a sua presença, excelência; eles não se deixam atrapalhar. Os niilistas, em qualquer caso, às vezes são gente culta, com muitos conhecimentos, mas estes foram mas longe porque, em primeiro lugar, são gente prática. No fundo, são uma consequência do niilismo, mas não directa, antes “por vias travessas”, e não se limitam a manifestar-se nuns desgraçados artiguelhos de revista, mas agem, directamente, na prática; não se trata da inutilidade, por exemplo, de um qualquer Púchkin nem, por exemplo, da necessidade de desintegração da Rússia; não, agora, literalmente, considera-se que existe o direito, caso nos apeteça muito qualquer coisa, de não parar diante de nada para a conseguir, nem que para isso seja preciso despachar oito pessoas. Eu não lhe aconselharia, príncipe... O

O Idiota — primeira parte

O romance começa dentro de uma carruagem de terceira classe do comboio Varsóvia-Petersburgo. O príncipe Míchkin regressa da Suíça, onde durante quatro anos tentaram tratar a sua doença nervosa do género da epilepsia . Parfion Rogójin vem de Pskov, da casa da tia onde se curou das terçãs. Convalescentes, os dois. Um comboio é um bom princípio; já está tudo em movimento — a caminho de Petersburgo e das desgraças. Ainda não sabemos, nem os leitores nem as personagens, mas o príncipe Míchkin e Parfion Rogójin têm a mesma missão: receber uma herança e resgatar a concubina Nastássia Filíppovna. Os dois rapazes (vinte e seis, vinte e sete anos) são duplos opostos; cada um avança numa direcção diferente do tabuleiro. O casamento com Rogójin a troco de cem mil rublos é a perdição certa de Nastássia. Mais, é a perdição dentro da perdição, se assim se pode dizer. Um fim perfeito e coerente. Atrai Nastássia para o abismo da inevitabilidade. (Talvez os russos tenham um provérbio para dizer “o