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Rigidez e graça

Visita de um professor japonês, Tadoo Arita, e da sua mulher. Decididamente, este povo tem classe. Nem o menor traço de vulgaridade! Têm «estilo» como os franceses devem ter tido noutro século e como os ingleses ainda têm um pouco. Rigidez e graça — paradoxalmente combinadas. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (março de 1967).

Discussão sobre as coisas altas

De manhã, praia (vento sul). Ao fim da tarde, Ozu (saké, cerejas). Doce engano, parece que o mundo vive em harmonia.

O saké tem um gosto amargo como um insecto

À primeira vista — quer dizer, enganadoramente — O  Gosto do Saké  ( Sanma no Aji ) é mais um filme japonês sobre o casamento, sobre as relações entre pais e filhos; pode-se até mesmo dizer que é uma espécie de compêndio ( monogatari ). Aceitemos a premissa.  A personagem principal chama-se Hirayama Shihei: viúvo, cinquenta e tal anos. Sabe-se que entrou para a Academia Naval Imperial Japonesa depois do liceu e foi oficial naval de carreira até 1945. Quando a guerra acabou e o Japão ficou de rastos, um amigo (talvez Kawai) arranjou-lhe emprego e ele conseguiu aguentar-se e vingar. Durante a acção do filme é director numa fábrica (faz parte da pequena burguesia urbana que vive mais ou menos desafogada e que Ozu gosta de filmar). Tem três filhos: Koichi, o mais velho, casou há pouco tempo e vive com a mulher num pequeno apartamento; Michiko e Kazuo ainda vivem com o pai. Mantém relações com alguns colegas do tempo do liceu com quem costuma comer, beber e jogar. Dois deles, Kawai e Horie,

Segunda-feira, 1 de junho de 1953.

Com o mês de junho, vêm também as tristezas e a melancolia.  Diário de Ozu

Estranho à transcendência

O claro-escuro holandês, com todo o seu mistério, é estranho à transcendência. É possível que a melancolia seja refractária ao absoluto. Emil Cioran, Lágrimas e Santos. (Podia aplicar este pensamento de Cioran aos filmes de Ozu. Em vez de  o   claro-escuro holandês ,  os planos geométricos de Ozu …)

O último plano de "O Gosto do Saké"

 

Uma certa alma

Devia escrever um pequeno texto sobre O Gosto do Saké  mas, contando com os comentários laterais e as observações geométricas, ultrapassei os 7000 caracteres. Deixei-me levar; é demasiado para as minhas capacidades e hábitos (até parece que estou a pagar uma dívida com juros elevados).  O que vale é que no último parágrafo acho que derrotei aquela teoria do estilo transcendental em Ozu e isso merece uma boa comemoração.

Revelações japonesas

Como estava sozinha em casa, e para adiantar trabalho, ontem à noite resolvi rever "O Gosto do Saké" ( Sanma No Aji ). Não via um filme de Ozu desde que a minha mãe morreu há quase quatro anos. Agora percebo porquê, deve ter sido um desses mecanismos do instinto que nos defendem de emoções demasiado intensas.  A meio desisti, por excesso de tristeza e também porque percebi que, por mais que tenha escrutinado o filme no passado, não apanhei o principal: o casamento de Michiko é apenas um pretexto para outra coisa mais profunda e mais dolorosa, e está tudo lá (como as montanhas de Cézanne) — nós é que nem sempre estamos preparados para ver. 

No ideas but in things

Estado de emergência

Ontem consegui cortar o cabelo. Paguei dois cortes, por conta do futuro. Hoje de manhã, na rotunda do Freixo, tive de levantar a voz para informar o polícia distante que ia às compras ao Continente de Massarelos. Omiti a frase sobre sentar-me um bocado em frente ao rio a apanhar sol — acho que os polícias não estão familiarizados com as cadências de Ozu.

Início da primavera

Tem outro nome

A influência de Ozu nos filmes de Pedro Costa não é só cinematográfica. Há o plano da chuva a cair nas telhas (Griffith  remix ). Os objectos vulgares filmados com a gravidade do ouro, incenso e mirra. As relações entre pais e filhos, reais ou inventadas. O modo como os corpos se movimentam nos quartos. Todas essas disposições unem os dois cineastas desde Vanda. Com o tempo, porém, apercebo-me que a ligação a Ozu é mais íntima, é antes do que se vê (também no cinema, nem tudo passa pelos olhos). Está relacionada, talvez, com o hábito japonês de descalçar os sapatos à porta? Não é só Vitalina descendo as escadas do avião com os pés nus, não é só neste filme. À semelhança das personagens discretas de Ozu, Pedro Costa entra sempre descalço na casa de cada um. Isso não se aprende numa escola de cinema, nem sequer no confronto com a matéria cinematográfica. Tem outro nome.

Querido Ozu,

o Japão está a ganhar a guerra.