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A mostrar mensagens de janeiro, 2023

Livro

Nicole Brenez: Para além dos argumentos de  Les rendez-vous d'Anna (Albatros, 1978) ou Un divan à New York (L'Arche, 1996), publicaste dois livros: uma peça, Hall de nuit (L'arche, 1992), e uma espécie de monólogo, Une famille à Bruxelles (L'Arche, 1998).  Chantal Akerman: Por muitas razões, acredito mais em livros do que em imagens. A imagem é um ídolo num mundo idólatra. Num livro não há idolatria, mesmo que possas idolatrar as personagens. Acredito no livro; quando mergulhas num livro formidável, é como um acontecimento, um acontecimento extraordinário.  Nicole Brenez:  Que livros foram acontecimentos para ti?  Chantal Akerman: Isso era mais quando era nova. Nos últimos anos, Vida e Destino , de Vassili Grossman, publicado quinze anos depois dele morrer, foi um acontecimento. E os Contos de Kolimá , de Varlam Chalamov.  Nicole Brenez:  Duas histórias russas que documentam a guerra e os campos. Chantal Akerman:  Sim. É sempre isso. Chantal Akerman: A Entrevis

150 confessionários

Cada um dos participantes na Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que decorre em Lisboa entre os dias 1 e 6 de Agosto, vai ter um local onde pode “encontrar a alegria de se sentir amado e perdoado”. Vai ser instalado na chamada “Cidade da Alegria”, chama-se “Parque do Perdão” e conta com 150 confessionários ao ar livre. (...) Em cada confessionário, e em diferentes idiomas, estará disponível um sacerdote “para acolher e escutar os jovens peregrinos, convidando-os a fazer a experiência do amor e da misericórdia de Deus através do sacramento da Reconciliação”, diz a organização da JMJ no seu site na Internet. “Tal como Maria se levantou para ir ao encontro de Isabel, o Parque do Perdão é este espaço de reencontro com Deus, com o próprio e com os outros. Um cais de partida para um coração novo, reconciliado com as suas feridas. A oportunidade de um reinício radical de uma História que só a força do perdão pode eternizar!”, acrescenta o texto de apresentação do Parque do Perdão. As inscriçõ

Há ursos lá fora

Os carros nos filmes iranianos.  São prisões. Mas prisões em movimento.  A paisagem a deslizar, do outro lado da janela, é a parte do filme que não é inteiramente acessível e que é preciso imaginar. Tal como um preso imagina o que se passa do outro lado da cela.  O personagem pode parar, sair do carro e caminhar um pouco pelo mundo. Mas não por muito tempo. É uma breve saída condicional. O personagem já não sabe onde pôr os pés. Há mil armadilhas.  Um dedo invisível aponta-lhe rapidamente o caminho de volta. Resta-lhe entrar no carro e arrancar.  O interior do carro é como o interior do crânio. É aí que tudo se passa: todas as manifestações da vida, especialmente o medo, o terror, e o seu fruto mais cruel e maduro, a paranóia.

Cem cigarros

Disseram-me que a minha irmã fumava cem cigarros por dia! Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (escrito em maio de 1967, seis meses depois da morte da sua irmã Virginia)

Barba e cabelo

Leio no jornal que o novo comandante militar russo na Ucrânia, Valeri Guerasimov, elegeu como uma das prioridades a higiene e a apresentação física dos soldados que combatem no terreno, incluindo o tamanho da barba e do cabelo. A sensação é a de que estamos a assistir a uma representação dos Últimos Dias da Humanidade , de Karl Kraus. Uma nova «leitura» ou «actualização», como se diz no teatro. E não é preciso «actualizar» demasiado.

Observações avulsas sobre matosinhos sul #52

Admirou qualquer coisa, esticou-se e morreu.

As lições de George Saunders sobre os contos russos que fazem parte do livro «Nadar num lago à chuva» são porreiras. Ele é um tipo cheio de ideias (não só literárias, sorte nossa) e consegue manter nas aulas um discurso que é aparentado aos seus contos, pelo menos tem o mesmo sentido de humor e outra coisa que não sei dizer bem o que é, mas que me atrai sempre e muito. Já estou na análise do último conto, «Aliocha, o Pote », de Lev Tolstói, e confesso que fiquei espantada por achar esta história a mais admirável de todas. Se tivesse que responder a um questionário prévio, nunca escolheria Tolstói como escritor (russo) preferido e mesmo depois de ler a pequena narrativa e apesar de me dar conta da sua extrema resistência (como se diz dos materiais) ao entendimento, ainda não sabia da sua importância. Mas as dúvidas que Saunders levanta obrigaram-me a reler e a investigar. Foi a ambiguidade que Tolstói reservou para o final da história e da vida de Aliocha que provocou todo este alvoro

Nomes

Na escolha de nomes, só há um grupo mais imaginativo do que os «criativos» da Polícia Judiciária: os empresários. Na Rua de Santos Pousada existe um Lar de Terceira Idade chamado «Pôr-do-sol».

Avançar para um maior grau de insegurança

Não me cabe a mim, querido amigo, emitir um juízo sobre um livro do qual sou objecto. Saiba, porém, que a sua tentativa de captar desde o interior a minha maneira de ver as coisas iluminou-me sobre numerosos detalhes, sobre numerosas ilusões surgidas do arrebatamento ou da negação e, deste modo, tornou-me um pouco mais exterior, um pouco mais estranho a mim mesmo, o que devia ser a ambição de quem se compromete nesta aventura de espectador que é o conhecimento de si mesmo. Tem razão ao deixar de lado as «influências». Sofri muitas porque, não tendo praticado nenhum ofício, pude, ao longo dos anos, ler um número considerável de autores. Quais citar? Todos aqueles — e são uma legião — que, de Theognis a Beckett, formularam as suas reservas à legitimidade da existência.  Não foram, no entanto, as leituras que me formaram, mas os acidentes e os encontros. Tudo o que descrevi é fruto de circunstâncias, de acasos, de conversas, de ruminações nocturnas, de crises de desânimo mais ou menos quo

Ramón

São incontáveis os pequenos milagres de Ramón Gómez de la Serna. Livro após livro. Estou a ler A Quinta de Palmyra , que foi editado há uns meses pela VS. Uma maravilha. Nesse amanhecer que a surpreendia com um novo cavalheiro ao lado, Palmyra deu-se conta, agora que ele tinha o penteado desfeito, de que ele era mesmo bastante calvo, e, portanto, devia ter a matreirice que atribuía aos calvos, o seu ar de homens do mundo um pouco cínicos, parecendo ter pensamentos que se julgam já sem folha de parra, e, por consequência, tendo o dever de afrontar tudo com uma audácia desmedida. Tradução de Joana Morais Varela. 

Empires

My grandmother prophesied the end Of your empires, O fools!  She was ironing. The radio was on. The earth trembled under our feet. Someone important was giving a speech.  “Monster!” she called him.  There were cheers, long applause for the monster.  “I could kill him with my bare hands,”  She announced to me.  There was no need to. They were all  Going to the devil any day now.  “Don’t go blabbering about this to anyone,”  She warned me.  And pulled my ear to make sure I understood. Charles Simic

Deplorável atentado do estado russo contra a iniciativa privada

Leio no jornal que a tomada da cidade ucraniana de Soledar foi reivindicada pelo administrador do grupo de segurança privada Wagner. A declaração surgiu depois de um comunicado em que o Ministério da Defesa russo anunciava a tomada da cidade pelo exército regular. Em resposta, «o líder do Wagner, Ievgeni Prigojin, denunciou as tentativas de “roubar a vitória” à sua empresa por parte do aparelho militar russo» .
Gosto do auto-retrato da Aurélia de Sousa reproduzido nos cartazes afixados nos autocarros. Apesar do enquadramento cortado e dos problemas de impressão, consigo perceber que foram as mãos daquele rosto que pintavam Jezebel devorada pelos cães .

Armado de escrúpulos

Se alguma vez um mortal foi atormentado, supliciado pelas dúvidas sobre si mesmo, esse mortal sou eu. Em tudo. Quando entrego um texto a uma revista, a minha primeira ideia é reavê-lo, retocá-lo e, sobretudo, abandoná-lo. Não confio em nada do que faço e penso. E se tenho uma certeza, é da desconfiança de mim mesmo — o que põe em causa não só as minhas capacidades, mas também os fundamentos e a razão do meu ser. Estou literalmente armado de escrúpulos. Como é que pude, nestas condições, empreender seja o que for e, com tantas perplexidades, decidir-me pelo menor acto, pelo menor pensamento? Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Números

Ouço na rádio a notícia dos protestos dos profissionais da cultura em frente à Assembleia da República. A reportagem passa as declarações de dois ou três manifestantes, e também do ministro. Esgrimem números para defender as respectivas posições. Mas estes números estão tão longe dos valores que fizeram as manchetes dos últimos dias, que a sensação é a de que estão a falar de outro país, um país muito pobre, muito pequeno, muito distante, sem o brilho e o glamour dos milhões e meio milhões.

Cântico (remix)

O dia a dia transformou-se na catástrofe única. O anjo já não precisa de olhar para o passado; basta o tempo presente, feito de ruínas instantâneas, para lhe dar aquele ar atónito de olhos esbugalhados, boca escancarada e asas abertas — a nossa figura. Depois do cântico, a extinção.

Nada mais interessa

Vejo as imagens da enxurrada que varreu a Baixa do Porto por causa das chuvas fortes. Num dos vídeos, há um homem que é arrastado pela água, na Rua Mouzinho da Silveira. A imagem foi captada por alguém com um telemóvel. O homem parece um bocado de plástico a flutuar na corrente. A pessoa que está com o telemóvel, a poucos metros, continua a filmar. Não larga a câmara, não mexe um músculo para ajudar o homem. Continua a filmar, simplesmente. Nada mais interessa.

Jesus

Primeira sequência de Fairytale . Jesus e Estaline repousam lado a lado, num canto do purgatório. Estaline deitado no meio de uma montanha de rosas, Jesus num catre de pau tosco. Ambos aguardam que Deus decida o destino de cada um. O ditador levanta-se e caminha, mas o Salvador, de ar débil e abatido, não consegue mexer-se. «Dói-me tudo», diz ele, numa voz abafada de tísico. O filho de Deus Pai, de Aleksandr Sokurov, parece tirado a papel químico do Jesus imaginado por Oscar Panizza, o personagem mais triste e patético de O Concílio do Amor. JESUS (estremecendo) Pois é — e com isso, nós é que vamos ficando cada vez mais miseráveis, cada vez mais fracos! Que coisa horrível! (Tosse.) A mim comem-me, e assim se vêem livres da doença e do pecado! Ao passo que nós caminhamos progressivamente para o declínio. Começam, primeiro, por se encherem de pecados até mais não poder, e a seguir ingerem a minha carne e ficam curados, inocentes, gordos e anafados — enquanto nós para aqui estamos magros

E depois, que importa chamar idiota a alguém?

Esquecemos aqueles que insultamos e magoamos; mas eles não se esquecem de nós. (Penso num determinado poeta que me persegue com o seu ódio: parece que lhe disse coisas desagradáveis numa discussão sobre Sainte-Beuve; mal me lembro disso. As palavras que dizemos sobre os outros só a eles dizem respeito, não lhes prestamos atenção. E depois, que importa chamar idiota a alguém?) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Tapete vermelho

Sobre o tufado e natalício tapete vermelho que cobre o passeio em frente à farmácia, a noite depôs dois rotundos poios, enormes e castanhos. Parecem dois escaravelhos atacados de gigantismo, demasiado grandes, gordos e pachorrentos para saírem, de livre vontade, do meio do caminho.

À maneira japonesa

O autor de um artigo sobre o Zen relata que um missionário cristão, que estava no Japão há dezoito anos, ao todo não converteu mais do que sessenta almas. Que, ainda por cima, escaparam dele no último momento. Todos esses convertidos morreram à maneira japonesa, sem tormentos nem remorsos, como se ao nascer não tivessem pousado mais do que um pé sobre a terra .  No fundo, o desapego não se aprende, está inscrito numa civilização. Não é um objectivo, é um dom . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

A big-time loser

O texto de Olizia Nuzzi anuncia : triste, só, falido. E cita três vezes o Sunset Boulevard . Mas a imagem da capa da revista New York  (Damon Winter/The New York Times/ Redux) segue outro rumo cinéfilo e mostra Trump como uma personagem de Kaurimäki, apenas com adereços mais sofisticados.  

Um pastor a tentar lembrar-se onde estacionou o burro

Um escândalo em Londres. Leio no jornal que Jonathan Jones, crítico de arte do The Guardian , acusou a equipa da National Gallery, responsável pelo restauro do quadro Natividade , de Piero della Francesca , de lhe ter estragado o Natal. Na opinião do crítico, o restauro foi realizado sem «alma artística». Os pastores, por exemplo, ficaram com um ar «perturbadoramente imbecil»: o da direita «de rosto cor de laranja parece tonto, até mesmo com prisão de ventre, com os seus olhos quase humanos desfocados e sem vida. É como se estivesse a tentar lembrar-se onde estacionou o burro». Na imagem: o pastor da direita, a tentar lembrar-se onde estacionou o burro.

O pátio do bisavô

Uma das cenas que melhor descreve os mecanismos sinuosos da memória surge quase no início do livro. Em 2011, um conhecido de Maria Stepánova convidou-a para participar numa conferência em Sarátov. Ela não conhecia a cidade mas, como era a terra do seu bisavô, resolveu aceitar o convite e aproveitar para investigar.  O conhecido conseguiu descobrir onde o seu bisavô vivera cem anos antes e ela foi à rua Moskóvskaia à procura do passado. Apesar de nunca lá ter estado, vai reconhecendo o pátio, as vedações, um arbusto, as paredes tortas, a madeira, os tijolos — tudo aquilo era nosso , escreve.  Uma semana depois o tal conhecido telefona-lhe para dizer que se enganara no endereço, o bisavô tinha de facto vivido naquela rua mas noutro número. Maria Stepánova conclui: Isto é mais ou menos tudo o que sei da memória .