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Mensagens

A mostrar mensagens de março, 2018

A origem da couve

No paraíso terrestre, no luminoso dia em que as flores foram criadas, antes que Eva fosse tentada pela serpente, o maligno espírito aproximou-se da mais bela rosa, no momento em que esta estendia, à carícia do celeste sol, a encarnada virgindade dos seus lábios. – És bela. – Sou – disse a rosa. – Bela e feliz – prosseguiu o diabo. – Tens a cor, a graça e o aroma. Mas… – Mas? – Não és útil. Não vês estas vastas árvores carregadas de bolotas? Além de frondosas, dão alimento a multidões de seres animados, que se detêm sob os seus ramos. Rosa, ser bela é pouco… A rosa – tentada, como seria depois a mulher – desejou então a utilidade, de tal modo que houve palidez na sua púrpura. Passou o bom Deus, depois do romper da aurora. – Pai – disse aquela princesa floral, agitando-se na sua perfumada beleza – quereis fazer-me útil? – Seja, minha filha – respondeu o Senhor, sorrindo. E o mundo viu então a primeira couve. Rubén Darío, Curiosidades Literárias e Outros Contos.  Colecção Av

É tudo verdade

Leio numa revista brasileira que, dentro de dias, abre mais uma edição do festival internacional de documentários É Tudo Verdade , no Rio de Janeiro. Em Paris, decorre o festival Cinéma du Réel . Entre nós, o Porto/Post/Doc classifica-se a si mesmo como um “festival de cinema do real” e usa o slogan «As nossas histórias são reais». Curiosa esta recorrente necessidade de afirmar o documentário como o género cinematográfico do «real» e da «verdade». Há aqui uma espécie de horror à ficção que contradiz justamente o tipo de filmes que têm sido premiados - e bem - nestes certames. No Porto/Pos/Doc, por exemplo, que é o caso que conheço melhor, os mais belos filmes do festival revelam sempre um olhar , uma montagem e uma escolha pessoalíssima dos seus autores. Não sei se a «verdade» e o «real» têm alguma relevância para o caso. Há certamente uma contaminação do documentário pela ficção. Mas esse jogo, entre criador e espectador - o que é verdade e o que é ficção? - é a parte verdadeirame

Dentes portugueses

Adeus, adeus, meus dentes! Só mais outro dia, E vamos dirimir esta pugna entre nós, Divórcio que a dentista estrangeira oficia Num desconsentimento total e feroz. Essa fidelidade tão à portuguesa, Feita de tanto golpe baixo, tantas fintas, Com que me temperastes o prazer da mesa, Fruto de fero amor, tão vero e troca-tintas, Ficai com ela, que eu dispenso despedidas. A culpa é toda minha, devo confessar Que não tinha dinheiro e descurei medidas Evidentes no plano mais elementar. O remorso católico arde-me feridas No sítio que Calvino gosta de brocar. Manuel Resende, Poesia Reunida .

Um Fausto

Dois homens, pai e filho, ambos velhos. Outrora, grandes glórias da ciência e da academia. O pai, de noventa anos, praticamente esquecido pela sociedade, o filho, de setenta, a caminho disso. O pai lamenta-se de não ter morrido antes de cair na implacável espiral de decadência provocada pela velhice. O filho ainda acredita que é capaz de lutar contra ela. O pai aconselha o filho a matar-se enquanto há tempo, enquanto se não transforma num “semimorto” e não começa dentro dele o processo de nascimento do “monstrozinho”. O filho ainda pode aspirar à imortalidade, diz o pai: só alguém que morre no momento certo, no auge da glória pública, pode viver para sempre. “Mata-te”, repete ele ao filho, apontando-lhe a bengala (mais simbólica do que concreta). O filho, por sua vez, diz sentir-se bem, “completamente vivo”, com ânimo para aproveitar a vida e a fama, e afastar o terror da decrepitude e decadência. O pai insiste para que o filho se suicide com uma ampola de cianeto. O filho, calma e pac

O fantasma do cavalo de Turim em Ödön von Horváth

CAROLINA: Isto é um Austro-Daimler? RAUCH: Acertou! Bravo! CAROLINA: O meu ex-namorado conduziu um Austro-Daimler. Sabe, era chauffeur . Um homem esquisito. Olhe, há três meses, quisemos os dois ir dar um passeio ao campo; pois não é que teve uma bulha dos diabos com um cocheiro porque ele tinha dado chicotadas no cavalo? Por causa de um cavalo, calcule! Quando ele próprio é chauffeur ! Uma pessoa tem de dar valor às coisas. Ödön von Horváth, Casimiro e Carolina . Tradução de Maria Adélia Silva Melo.

O que se passa naquelas montanhas?

“Quando a morte entra no quarto, a poesia é uma idiotice”, diz Ebru Ojen, a narradora de Meteors , numa espécie de eco longínquo da famosa frase de Adorno sobre a impossibilidade de escrever um poema depois de Auschwitz. O mais intrigante desta frase é que o filme de Gürcan Keltek é exactamente o contrário do que ela enuncia: Meteors  é uma obra terrivelmente bela sobre a guerra. A explicação para isto talvez resida no facto de não existirem explicações claras neste filme. O que se passa nas remotas montanhas do Curdistão, na fronteira entre a Turquia e a Síria? O que se passou durante a campanha militar turca contra os curdos, em 2015? Não estou certo de que o filme responda a esta pergunta. Na verdade, duvido que o filme queira responder ao que quer que seja. O que vemos, desde o primeiro plano - a lua crescente a desvanecer-se numa poeira densa, que também pode ser nevoeiro ou nuvens - é uma sucessão de imagens de uma beleza esmagadora. Cenas de caça nas montanhas nevada