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O que oferece resistência

Sábado à noite: Rebels of the Neon God , de Tsai Ming-Liang. Domingo de manhã: Dear Emma, Sweet Böbe , de István Szabó. Ambos no Batalha. Ao fim da tarde, e depois de limpar a casa, umas páginas do Diário  de Gombrowicz. Um comentário do escritor aos dois filmes, que ele não viu: «A realidade é o que oferece resistência, o que dói. E um homem real é aquele que sente dor. (...) Remova-se a dor e o mundo tornar-se-á indiferente…» ( Diário , Volume II.)

Funcionários

Malditas galinhas cegas às quais os grãos acontecem! Pedreiros cegos que põem tijolo sobre tijolo há milénios sem saber o que estão a construir! Eles são funcionários. Eles são colaboradores. Se um diz a , o outro diz b , e o terceiro c , e assim se forma a Opinião dominante; todos são função de todos, todos se servem de todos, todos são sempre servos - sugados pelo intelecto do vampiro, empurrados para baixo pelo Pensamento que cresce sobre eles, cada vez mais inantigível. Witold Gombrowicz, Diário (Vol. II).  Tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz.

Sardoniscas

Tirei uma semana de férias para tratar de assuntos importantes. Primeiro assunto importante: ler. De manhã, tento avançar umas páginas no segundo volume do diário de Gombrowicz , mas não me sai da cabeça a imagem das sardoniscas a atravessarem dois planos de A Morte de Empédocles , que vimos no domingo em Serralves. Na folha de sala, Jonathan Rosenbaum refere a «presença de um lagarto que atravessa o espaço na cena em que Empédocles liberta os escravos». Mas estou certo de que há pelo menos mais uma sardonisca num outro plano. Um mero acaso? Claro que não. O filme está vivo do primeiro ao último fotograma. Acabou-se. Ponto final. Posso voltar ao Gombrowicz.

Segunda-feira

Jogo de futebol no Estádio River Plate. Com trinta mil espectadores. O sol aquece. De repente, sobre os camarotes, onde se fazia ouvir a algazarra da espera impaciente por uma luta renhida aparece um balão... Um balão? Todos podem ver que não é um balão, mas um preservativo grandemente insuflado pelo hálito indecente de alguém. O balão-preservativo, auxiliado pelas correntes de ar que ascendem do público acalorado, sobrevoa as cabeças e, quando cai, é levemente tocado pelas mãos dos brincalhões... e uma multidão de milhares de pessoas fixava o olhar neste escândalo flutuante, tão horrivelmente visível, tão flagrante! Silêncio. Ninguém se atreve a falar. Êxtase. Foi então que um padre de familia , indignado, o esfaqueou com um canivete. E ele rebentou. Assobios! Uivos! Uma raiva inacreditável explodiu de todos os lados — de perto e de longe —, e o aterrorizado «pai de família» esgueirou-se o mais depressa possível pela saída mais próxima, Quem mo contou foi Betelú Mariano, de alcunha Fl

Para nada! Para nada!

FIOR: Como o tempo corre! Considerem, por exemplo, aquele banco. Parece imóvel, mas como corre! Corre e corre... mas para onde? Hum? Para onde? Em que direcção, porquê? Tudo corre e corre, meu Deus! HUFNAGIEL (canta) : Oh, um galope, galope, galope! Chicoteá-lo uma vez, chicoteá-lo outra vez. (...) Não costumo cair de uma sela. Não, não costumo cair de uma sela. O galope é a minha especialidade! Permita-me, mestre, não partilhar da sua inquietação. Aquele banco? Correr? Galopar? Não saber aonde se vai? E então? Monto, corro, galopo! Não costumo cair de uma sela! (...) FIOR: Galope... sim, sim... galope... Como é fácil montar um cavalo, correr, correr... Mas pior que a corrida de um cavalo É a ideia de imobilidade... Galope imóvel! Galope pleno que não se mexe, mas corre, corre... Toca no banco. Para onde vais, banco? Porque corres como um louco? Hum? Para onde? Porquê? Oh, tudo, tudo, tudo, árvores e pedras, Casas e igrejas, terra, céu, tudo Como cavalos galopando! Mas eu não me mover

Ouro

Página 488 do Diário de Gombrowicz. Um aforismo arrancado ao corpo de um parágrafo: «(...) pois que um artista deve actuar sempre na fronteira entre a vergonha e o ridículo.» Se pudesse, mandava banhar esta frase a ouro. O diário podia terminar aqui. Está tudo dito.

Um animal estranho

Caminhava eu por uma avenida ladeada de eucaliptos quando uma vaca saiu de trás de uma árvore. Parei e olhámo-nos nos olhos. A sua vacalidade chocou com a minha humanidade a tal ponto - o momento em que cruzámos o olhar foi tão tenso - que perdi a confiança em mim enquanto homem , isto é, enquanto espécie humana. Experimentava pela primeira vez uma estranha sensação - a vergonha de um homem face a um animal. Deixei que ela olhasse para mim e me visse - isto tornou-nos semelhantes - em resultado também me tornei um animal - mas um animal estranho e, diria eu, até mesmo proibido. Continuei o meu caminho, retomando o meu passeio interrompido, mas senti-me desconfortável... na natureza, que me cercava por todos os lados, como se estivesse... a observar-me. Witold Gombrowicz, Diário I . Tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz.

Sienkiewicz/Gógol

Há uns tempos, li com imenso prazer a novela  O Senhor Secretário , de Henryk Sienkiewicz. Na altura, fiquei com a impressão de estar a ler um Gógol meio desfocado. Não sabendo explicar melhor, desisti de tentar desenvolver a ideia. Agora, nos diários , Gombrowicz parece confirmar a minha impressão: E aqui - um paradoxo: este escritor conservador é neste sentido um precursor da actualidade revolucionária, este escritor «crente» está inconscientemente próximo da filosofia que refuta os valores absolutos e vive a dialéctica dos valores relativos resultantes das necessidades, nas quais o homem se torna a medida do valor. (...) Seria impossível um Sienkiewicz ateu, um Sienkiewicz bolchevique? Pelo contrário, é possível na medida em que, se algum dia a modernidade vermelha polaca publicar o seu grande romancista, será justamente Sienkiewicz à rebours . Todavia, ele não se via a si mesmo desta maneira. Disto não se apercebeu. E se se tivesse apercebido, teria acabado consigo mesmo na hora, e

Irmão Gombrowicz

8h30. Meia hora antes de começar a trabalhar - dantes dizia-se «pegar ao trabalho» -, abro o diário de Gombrowicz e leio umas linhas. Página 250, mais ou menos a meio do livro. As mesmas queixas, a mesma cantilena triste, como uma litania ecoando pelos séculos dos séculos, sem princípio, sem fim: «Segunda-feira. (...) Não vejo nada diante de mim… nenhuma esperança. (...) Depois de tantos anos de tensão e trabalho duro, quem sou eu afinal? Um escriturário massacrado por sete horas de trabalho, estrangulado em todos os esforços da escrita. (...) Tudo sofre porque, diariamente e durante sete horas, cometo um homicídio no meu próprio tempo. (...) De quem é a culpa? Dos tempos? Das pessoas? Mas quantas delas foram mais bem esmagadas?» 9h00. É o meu turno.

Tempo para ler

A certa altura do seu diário, Gombrowicz fala de um outro autor polaco, Zbyszewski, que tem uma explicação para a «crise da literatura»: «a literatura não tem hipótese em consequência da crise do sector dos serviços domésticos, pois, por falta de empregadas, as senhoras não têm tempo para ler.» Muito acertado e muito lógico. Mas ainda há esperança. Com os novos e modernos robôs de limpeza, que infelizmente ainda não existiam no tempo de Zbyszewski, as senhoras já podem voltar a ler. Talvez os robôs ainda tenham chegado a tempo de salvar a literatura. Uma proposta de campanha publicitária para os supermercados Fnac: compre um livro e receba grátis um robô de limpeza.

Exijo que se fale de mim com palavras domingueiras.

Gombrowicz escreve ao «Clube de Discussão de Los Angeles», cuja primeira sessão tinha sido dedicada à obra dele. A carta termina assim: «Dissestes-me que fui objecto da vossa discussão. Pois bem, gostaria de vos perguntar: a minha pessoa foi respeitada? Será que as vossas palavras foram guarnecidas com vibração? Falastes de mim com emoção, imaginação e paixão tal como se deve falar da arte? Ou será que de mim apenas retirastes umas “ideias” minhas e as mordicastes como um osso seco do meu esqueleto? Ficai a saber que proíbo de falar de mim de modo entediante, normal, comum. Proíbo-o veementemente. Exijo que se fale de mim com palavras domingueiras. Castigo com crueldade aqueles que se dão ao luxo de falar de mim de modo entediante e sensato: morro na boca deles e eles ficam com a sua cavidade bucal cheia do meu cadáver.» ( Diário: 1953-1958 . Tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz.) Devíamos pintar estas palavras a vermelho à entrada das faculdades de letras, dos institutos, das esc

Sabe em que estou a pensar?

Há que saber como essa puta é. Sabe em que estou a pensar? Na Natureza. Quando se desvia assim, para um lado, devido a qualquer coisa que se não espera, não devemos protestar, não devemos opor resistência; pelo contrário: submetermo-nos, fazer boa cara... mas não abrandar por dentro, sobretudo não perder de vista o nosso objecto, de forma a ela saber bem que temos um, nosso . De começo, nas suas intervenções é sempre muito categórica, acutilante, etc., mas depois fica como que desfalecida no seu interesse súbito; abranda e então, às escondidas, podemos voltar aos nossos próprios trabalhos e até contar com certa indulgência da sua parte... Witold Gombrowicz,  Pornografia . Tradução de Aníbal Fernandes.

E em vez disso perguntei

- Vais à igreja? Crês em Deus? (...) - Em Deus? Pff! Bem sabe o que os padres dizem... - Mas Deus? Crês em Deus? - Claro que sim. Mas... - Mas o quê? Calou-se. Eu devia perguntar-lhe: - Vais à igreja? E em vez disso perguntei: - Vais ter com mulheres? - Às vezes. - Tens êxito com as mulheres? Desatou a rir. Witold Gombrowicz, Pornografia . Tradução de Aníbal Fernandes.

Tabu

Não existe nada mais artificial do que as comparações rebuscadas que se costumam empregar para descrever uma jovem. A boca... uma cereja... Os seios, como botões de rosa... Oh, se tudo se pudesse resolver comprando no mercado um cesto de flores e frutos! E quem se apaixonaria se uma boca tivesse realmente o gosto da cereja madura? Quem se deixaria tentar por um beijo que fosse tão doce quanto um rebuçado? Caluda! Basta! Mistério, tabu... Witold Gombrowicz, Bakakai . Tradução de Rui Almeida Paiva.

Bakakai

Começo a ler a primeira edição de Bakakai em português. Tenho a impressão de estar a ler os contos de Virgilio Piñera. Ou será o contrário? Ao ler os contos do Piñera, estou na verdade a seguir a imaginação de Gombrowicz?

Consolo

Para mim, é um mistério livros interessantes como os de Schopenhauer (e os meus!) não encontrarem leitores. Schopenhauer detestava Hegel. Dizia sempre: esse bronco do Hegel! E para desafiar Hegel, tinha fixado o horário das suas aulas na universidade de Berlim ao mesmo tempo que as de Hegel, resultando que a sala de Hegel estava sempre cheia quando a dele estava sempre vazia... Mas Hegel e Schopenhauer tinham argumentos par demonstrar que um génio não pode ter sucesso, uma vez que ultrapassa o seu tempo. É por isso que o génio é incompreensível e não serve para ninguém. Assim, Schopenhauer e eu encontramos consolo! Witold Gombrowicz, Curso de Filosofia em Seis Horas e um Quarto . Tradução de Telma Costa.

Últimas aquisições

No n.º 35 da «Imagem - revista de divulgação cinematográfica», datado de Novembro de 1960, Eurico da Costa e Manuel Villaverde Cabral, no «quadro da crítica», despacham «Intriga Internacional», de Alfred «Hitchkock» (sic) com duas rotundas bolas pretas, quer dizer, com a classificação de “sem interesse”. Alberto Seixas Santos, mais generoso, dá ao filme duas estrelas em quatro possíveis, que correspondem à classificação de “Bom”. Mais à frente, no artigo de crítica ao filme, Seixas Santos afirma: «Não sou dos que tomam o nosso autor por um génio da metafísica, mas não quero também cair no pecado contrário e julgá-lo um imbecil.» O n.º 273 do «Jornal de Letras & Artes», de Janeiro de 1970, abre com um anúncio de página inteira do Banco Pinto & Sotto Mayor intitulado «Esclarecimento sobre o Cartão Sottomayor», onde se explica o funcionamento do cartão de crédito bancário, «processo novo em Portugal, mas utilizado já em larga escala num grande número de países.» «Consist