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Imersão na lama

Depois do ciclo integral de Hong Sang-soo numa estância de verão abandonada, lembrei-me agora de lançar um curso prolongado e decadente sobre o Tango de Satanás .  Uma turma fechada numa casa velha no cu de Judas — duas ou três  semanas. Tinha de chover ininterruptamente. Vento também, forte e em grande quantidade. Comíamos batatas com paprika e bebíamos pálinca como se seguíssemos o método Stanislavsvki. Líamos e discutíamos os capítulos sem ordem nenhuma. Podíamos começar pelo fim, quando o doutor descobre o que é a escrita — a música que ele ouve também vem de Shakespeare, pois claro, que a vida não é só a realidade. Depois passávamos para o capítulo anterior e ia ser uma diversão encontrar retratos corrosivos da academia e da crítica literária naquelas personagens burocráticas que afinam os relatórios pidescos (Kraszhahorkai é um bocado exagerado mas também um cómico). Deus podia ser uma teia de aranha como em certos filmes e o diabo um estado de alma quebrada ou um ritmo...

Prova incriminatória

Há apenas três referências ao tango nos Cadernos e mais uma no pequeno Caderno de Talamanca , mas que não restem dúvidas quanto à importância do tango para Emil Cioran — como experiência musical mas, principalmente, como estado de alma.  Se isto fosse um caso de polícia e quisesse provar a relação entre os dois, bastava contar as vezes que Ramón Gómez de la Serna usa a palavra “desengano” — crucial no pensamento e na vida de Cioran — na sua “Interpretação do Tango”.

Tango del desengaño

Gostava de ter vivido entre povos tristes, ou pelo menos cuja música é langorosa ou pungente: fado, tango, lamentos árabes, húngaros... ( Cadernos , junho de 1963 )  Ibiza, 1 de agosto. No ano passado, F. emprestou-me o seu gira-discos e ouvi um disco que me encantou. Era um tango espanhol, do mais dilacerante que há. De volta a Paris, tentei lembrar-me do ritmo e da melodia. Impossível. Um ano depois, encontro-me de novo na mesma casa. No dia seguinte à minha chegada, durante a sesta, tenho um sonho no qual escuto um tango. Ao despertar, tinha reencontrado o meu tango. ( Caderno de Talamanca , agosto de 1966 )  Borges escreveu um poema sobre o tango. Como eu o compreendo. Tenho vontade de exclamar: «Dêem-me um tango por dia!» Trago em mim uma Argentina secreta. ( Cadernos,  outubro de 1966 )  A tristeza impetuosa em todos os níveis, do tango ao Apocalipse. É esse o meu clima habitual. ( Cadernos,  fevereiro de 1969 ) 

A seita dos tanguistas

O tango é uma espora com a qual o homem se fere a si mesmo, é uma dança de passo cauteloso e retorcido, gestual com os gestos da sedução animal que, dentro da própria dança, vai urdindo a sua teia com a qual manieta a mulher que quer escapar à sua influência. O verdadeiro tango dançado é um tango de garatuja, pernalta e corcunda, insistente e humilde, em que as calças são acordeões que se dobram e desdobram e por fim se encavalitam num passo requintado. Um inglês disse que era uma declaração de amor feita com os pés e alguém mais atrevido que «era fazer a dançar aquilo que os outros fazem deitados». Uma senhora inglesa, em contrapartida, ao ver dançar um tango perguntou se se tratava de uma seita religiosa. Interpretação do Tango,  de Ramón Gómez de la Serna. Tradução de Sofia Castro Rodrigues. VS editor. 2022.

Tango gregueríano (operação Ramón e um palito)

Não me saiu nada na raspadinha (o destino despreza sempre as boas intenções literárias, raisoparta), mas já desviei 21 euros para ajudar o querido Ramón a pagar à gráfica .

Tango finlandês

Às vezes a entrada envidraçada do abandonado Hotel Nave parece uma cena do Kaurismäki: mantas de diversas cores e sacos de supermercado cheios. Dois homens sentados em cadeiras — calados. Bebem (vodka ou cerveja?) e ouvem música (em língua russa?) Nem de propósito, no JN de hoje: (...) Sobre o aumento do número de sem-abrigo na cidade, Fernando Paulo salientou que o Porto tem "uma forte atratividade" para as pessoas em Situação de Sem Abrigo (...)   Por este andar, “a forte atratividade” ainda há-de aparecer na Monocle em fine papers.