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Vida e destino

O que Vassili Grossman não viu ou não conseguiu descrever por palavras em Bem Hajam! talvez se perceba com mais clareza nas Quatro Estações , de Artavazd Peleshian. E o que Peleshian não mostrou ou não conseguiu filmar, talvez se consiga ver no livro de Grossman. Ambos, Peleshian e Grossman, são Sísifos, condenados a intermináveis trabalhos em tempos difíceis. Longos e árduos caminhos, com subidas e descidas, numa luta permanente com as leis dos homens, dos deuses e dos elementos. Mas a palavra correcta será “luta”? Os pastores arménios que deslizam montanha abaixo, abrindo sulcos por entre a neve ou as rochas, protegendo com o próprio corpo as ovelhas, não retirarão algum prazer daquele trabalho? É que, no fim de contas, há ovelhas, livros e filmes, vivos. Ovelhas, livros e filmes carregados de vida.

Dilema literário

— Será aceitável levar Vassili Grossman para a praia? Nem por isso. O céu azul, o mar calmo, uma brisa suave — é demasiado, toma a proporção de uma afronta. Como quando Ivan Grigorievitch entra em casa de Nikolai Andréevitch: A cara escura e enrugada do homem do reino prisional, o seu casaco acolchoado, as suas botas de soldado que pisavam desajeitadamente o soalho não condiziam com o mundo de parquê, de armários de livros, de quadros, de lustres.
Há um momento em Vida e Destino , a obra-prima do escritor soviético Vassili Grossman, em que o leitor percebe que o protagonista Viktor Strum não é o "herói" do romance, mas apenas mais uma das suas vítimas. Um físico nuclear talentoso e inteligente, Strum vê o valor objectivo do seu trabalho oscilar ao sabor de caprichos ideológicos, e as suas pesquisas sobre mecânica quântica são publicamente vilipendiadas por não serem "reconciliáveis" com a doutrina do materialismo dialéctico. O processo era típico e tipicamente racional. O dissipar de recursos humanos valiosos era instrumental para a sobrevivência do sistema. Se alguém mostrava qualidade suficiente para ser útil ao país, o raciocínio era que mais tarde ou mais cedo mostraria qualidade suficiente para ser uma ameaça ao regime. Só a mediocridade era considerada inofensiva e, portanto, tolerada; o talento - qualquer talento - tinha de ser controlado, ou neutralizado. Isto pode parecer uma patética subordinação

Mal-estar

Eugène Ionesco queixa-se várias vezes, em A Busca Intermitente , da sua obstipação crónica e das constantes crises hemorroidárias, que quase o impedem de escrever. Vassili Grossman, por seu lado, dedica várias páginas, em Bem Hajam! , aos terríveis desarranjos intestinais que experimentou em diferentes ocasiões sociais, na Arménia, e que o conduziram ao limiar do desespero. Durante um desses episódios, chega a considerar a hipótese, logo afastada, de estourar os miolos para escapar à vergonhosa catástrofe: «Se tivesse comigo um revólver… Mas não, por certo que não me daria um tiro na cabeça. Teria sofrido uma vergonha pungente, inédita, tornar-me-ia uma lenda obscena, um herói do folclore grosseiro, mas não me mataria a tiro.» A natureza está sempre a pregar partidas muitíssimo misteriosas à literatura. Que estranhas e secretas ligações há entre a escrita e os intestinos? Pudesse a literatura livrar-se das desordens e angústias do corpo, e o que restaria dela?

Saturno devorando os filhos

A imagem de Grossman não me sai da cabeça. Impossível não pensar na gigantesca estátua oca de Stálin , o pai dos povos, como um estranho Saturno devorando os filhos, aprisionando-os no seu interior, um após outro, angustiado pela ideia de poder ser destronado por um deles. Ou um outro Zeus que contrariasse a mitologia e que, em lugar de gerar Dioniso no interior da coxa, aí o sepultasse para sempre.

A perna oca de Stálin

No monte sobranceiro a Erevan ergue-se um monumento a Stálin. O gigantesco marechal de bronze avista-se de todos os lados. (...) A figura de corpo inteiro de Stálin tem 17 metros de altura. A estátua, juntamente com pedestal, eleva-se a 78 metros do chão. Quando o monumento estava a ser montado e os fragmentos do gigantesco corpo de bronze estavam deitados no chão, os operários passavam, sem encolherem as cabeças, por dentro da perna oca de Stálin. Vassili Grossman,  Bem Hajam! Apontamentos de Viagem à Arménia! Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.