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Passagem entre prédios

Ainda não tive tempo suficiente para ler as quase mil páginas d’  Os Últimos Dias da Humanidade  (devia haver uma baixa médica para resolver assuntos literários deste calibre), mas já deu para perceber que em tempos conturbados o mais importante é aprender a desaparecer numa passagem entre prédios .  GRITOS ENTRE A MULTIDÃO: “Mas que é que querem aqueles dois judeus além?” “Têm cara de também serem dos Balcãs!” “Só lhes falta o cafetã!” “São sérvios!” “Traidores!” “Porrada neles!” ( Os dois historiadores desaparecem num passagem entre prédios. ) ( Muda a cena .)
Nunca sei o que vou encontrar na biblioteca. Hoje trouxe um livro de Antonio Di Benedetto para não me esquecer dos argentinos e Os Últimos Dias da Humanidade para não me esquecer do que nos espera. 2024 promete ser mais um ano cheio de destroços.

Algumas coisas rápidas sobre «Nesta Grande Época»

Karl Kraus usa as citações como as personagens shakespereanas dos westerns de John Ford. Não são um ornamento que se traz à lapela, mas uma força universal e histórica que irrompe das entranhas.  ¶ António Sousa Ribeiro consegue segurar todo o ritmo que existe no original alemão e oferece-nos um texto em português que sobe e desce como uma montanha russa e faz-nos rir e também nos envergonha porque tanto daquilo passa-se ainda hoje e tão perto, raisparta!  ¶ Por sorte,  Os Últimos Dias da Humanidade também está disponível na Biblioteca Almeida Garrett. Junto com os Aforismos  (que está em casa) formam uma rica trindade. — A vida corre mal; a vida corre-me bem!  ¶ Tudo o que Kraus escreve é tão tronante (a coisa mais viva da cidade) que fico sempre com receio (ou será vontade?) que os seguranças me ponham fora da carruagem por causar distúrbios ao bom funcionamento do Metro. ¶ Se falasse português, Karl Kraus escrevia um artigo n’ O Archote a desancar na Tânia Laranjo.  ¶ Apetece-
Viena não era infame como a representava Karl Kraus, e provavelmente a Roma Antiga não era como a pintava Juvenal, mas sem a exasperação furiosa de Kraus ou de Juvenal não teriam sido desveladas, como pelo violento rasgar de um véu, certas expressões extremas, certas deformações anormais que o rosto do Homem pode assumir. Danúbio, de Claudio Magris. Tradução de Miguel Serras Pereira. Quetzal.

Errata

A imprensa devastará o que a sífilis deixou. As causas dos amolecimentos cerebrais do futuro já não poderão ser determinadas com segurança. (Karl Kraus, na tradução de Lumir Nahodil) Primeira errata: onde se lê «imprensa», deve ler-se «televisão». Onde se lê «sífilis», deve ler-se «imprensa». Segunda errata: onde se lê «televisão», deve ler-se «redes sociais». Onde se lê «imprensa», deve ler-se «televisão».

Barba e cabelo

Leio no jornal que o novo comandante militar russo na Ucrânia, Valeri Guerasimov, elegeu como uma das prioridades a higiene e a apresentação física dos soldados que combatem no terreno, incluindo o tamanho da barba e do cabelo. A sensação é a de que estamos a assistir a uma representação dos Últimos Dias da Humanidade , de Karl Kraus. Uma nova «leitura» ou «actualização», como se diz no teatro. E não é preciso «actualizar» demasiado.

Design

Em Design e Crime , Foster começa por um tema que nos remete para o universo acutilante e impiedoso de Karl Kraus (aliás, um dos protagonistas de Design e Crime ). Pensemos, pois, neste problema à maneira de Kraus: qual é a causa do amolecimento cerebral contemporâneo, e a quem serve? Foster, peremptório: é a transformação da ética de vida (Nietzsche, Foucault) num mero décor ; é o design global : aí cada indivíduo é, ao mesmo tempo, “designer” e “designed”. A manipulação pelo design é total: da casa (design de decoração) ao rosto (cirurgia plástica), da personalidade ( drugs design ) ao DNA ( children design ), de um candidato presidencial ganhador à Young British Art (nos livros-objectos de Bruce Mau, por exemplo), passando pela memória histórica ( museum design ), à arquitectura-espectáculo de Frank Gehry (“este designer de museus metálicos e salas de concerto curvilíneas,”) e à teoria-espectáculo de Rem Koolhaas (ver caps. III e IV) que não resistiria à realidade (o 11 de Setembro)

De tanto serem repetidos é como se tivessem realmente acontecido

[Karl] Kraus é, nesse contexto, um intérprete mortal para os mitos que circulam [sobre os verdadeiros motivos para o deflagrar da I Guerra]? Uma das coisas que o Kraus mostra é como se gera essa cultura de violência, e como os principais responsáveis, aos olhos dele, são as pessoas que lidam com as palavras. Os intelectuais, os escritores, os jornalistas, etc. Personagens com bastante proeminência e que são, justamente, aqueles que têm a responsabilidade pelo discurso que se produz, que o usam irresponsavelmente, e transformam também as palavras em armas. Pode dar um exemplo? Um dos aforismos que surge nos "Os Últimos Dias da Humanidade" diz-nos: «Um despacho noticioso (ou uma notícia de jornal) é um instrumento de guerra como a granada, que também não toma quaisquer factos em consideração». Quando hoje em dia se fala na pós-verdade, tinha já lido tudo isso no Kraus. Quando foi para a frente a guerra no Iraque, em que os editorialistas… José Manuel Fernandes, toda essa ge