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Fulgor de fim de partida

A fisiologia não é um instrumento de análise do pensamento. Às vezes sabemos algum pormenor das funções orgânicas de um ou outro filósofo, uma disfunção, uma doença mais grave, mas esses factos são resguardados e não afectam o trabalho de escrutínio dos seus raciocínios — simplesmente, não é assim que as convenções académicas funcionam.  Porém, quando um pensador faz gala de se afastar das práticas admitidas, tudo é possível. É o que acontece com Emil Cioran: para compreendermos os seus pensamentos devemos, antes de mais, esquecer o jargão da hermenêutica e considerar a fisiologia e as suas palavras clínicas.  Essa é uma das ideias que se apreende logo nas primeiras páginas dos seus Cadernos . Quando começou a escrever estas notas diárias, Cioran tinha 46 anos o que, na altura, correspondia a uma idade já um bocado avançada (em 1957, a esperança de vida em França para os homens era de 65,5 anos). Mas o problema é mais estrutural. Para além dos males do espírito de que sofre de...

Estão todos doentes

Resolvi aproveitar as férias para reler “O Idiota”. Nas primeiras cem páginas apanhei referências a epilepsia, dança de São Vito, terçãs, coqueluche e tísica. A trama confunde-se muitas vezes com um relatório clínico — deve ser por isso que Cioran gosta tanto de Dostoiévski.

Agora já nem as doenças excitam a literatura

Os contos são sempre escritos com uma certa urgência, mas no caso de Flannery O’Connor o modo vai além do que é habitual. A pressão descamba logo em carácter premente: nada pode esperar nem um segundo. Cada história conserva as necessidades imediatas da adolescência e o fervor de uma ambulância. A correria vem, não tenho dúvidas, do avanço ineludível e restritivo da doença de Flannery O’Connor. É o lúpus eritematoso que a obriga a apressar-se e também, talvez, a ser tão concentrada e desmedida em tudo. As doenças funcionam muitas vezes como um estimulante da literatura. Bom, creio que isto só era válido no passado. Agora já nem as doenças excitam a literatura.