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Atalhos ou desvios?

“Sonho com um sistema filosófico formulado com atalhos à la Emily Dickinson.” Nesta nota de Cioran, hesitei muito entre atalhos e desvios. Os especialistas de Emily Dickinson usam, muitas vezes e em múltiplos aspectos, “desvio”. É uma palavra eficaz, não nego; é evidente que corresponde bem a deviation (quase o efeito espelho, sonho de todos os tradutores); e talvez se aplique na perfeição a alguém que não segue o caminho habitual. Nos seus Cadernos , em relação a Emily Dickinson mas principalmente a si próprio, Cioran usa a palavra francesa raccourci . É ampla e afiada: serve para atalho e também para resumo, coisa abreviada ou elíptica — parece que tem no seu interior uma acção de corte abrupto (cesura?). Apesar de em português “atalho” não segurar o sentido breve e preciso de “súmula”, consegue ainda assim dar uma boa imagem do método de trabalho da poeta americana. Atalho é uma vereda, um caminho secundário que permite encurtar a distância e chegar mais rapidamente,  enquanto de

Desvios

«A poesia de Dickinson é marcada por uma peculiar gramaticalidade: inserção forçada de plurais, posições sintácticas invertidas, ou, muitas vezes, desrespeito pelos géneros, pelas pessoas ou pelas concordâncias verbais. É ainda necessário destacar da linguagem de Dickinson não só os desvios sintáctico-formais, mas ainda os desvios semânticos internos, aqueles que sustentam, pela ruptura, a arquitectura dos seus textos poéticos e que resultam numa linguagem críptica, compacta, plena de elipses, traduzida em textos que desafiam a tradição da poesia enquanto comunicação e oferecem à linguagem literária um lugar de destaque e autonomia mais próximo da estética que informa a poesia moderna. Excessiva, em relação ao seu tempo; excessiva, mesmo em relação ao nosso, pela opacidade de leitura e apreensão e pelas temáticas envolvidas. “Uma linguagem altamente desviante que arrisca tudo”, como defende David Porter, pois, “na extrema elipse e transposição, desbasta a própria armadura do sentido”.»