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Mensagens

A mostrar mensagens de dezembro, 2021

Salas de exposição

Num comunicado recente da DGS sobre as normas de acesso aos equipamentos culturais, os cinemas não se chamam cinemas, mas «salas de exposição cinematográfica» . Podíamos ler mil ensaios sobre o declínio do cinema em sala e em nenhum encontraríamos a clareza e o poder de concisão da DGS.

Evidência material

Por desleixo, nunca levei a cabo a ideia de recolher títulos de notícias menores (a minha versão de filmar um engarrafamento numa rua de Paris). Arrependo-me sempre que vejo um bom exemplar. Hoje foi no JN: Pirotecnia não sabe o que fazer "com tanta pólvora" . É evidente que podiam fazer uma revolução.

Roda da Fortuna e da Fantasia

Não sabia que é necessário certificado e teste para ir ao cinema, por isso voltei para casa um bocado chateada. Mas agora começo a achar graça a esta situação: o filme do Ryûsuke Hamaguchi equiparado a uma ida ao bar ou discoteca, interdito a quem não tem os papéis em dia. Nem preciso de ver o filme e já tenho uma crítica.

Ofício

Ontem à noite vi O Discípulo , de Chaitanya Tamhane. Não é um filme sobre a perfeição ou a «excelência», mas sobre a mediania. E isso impressionou-me. Como é que um artista mergulhado até à obsessão na sua arte suporta a evidência de que nunca será excepcional? E estando mais ou menos conscientes disso, o que leva os artistas medíocres ou medianos, que são quase todos, a devorarem-se uns aos outros, como peixes de dentes afiados num lago turvo, movidos pela inveja e o ressentimento? Como escapar a tudo isto? Como ser honesto? Desistir é um acto de coragem ou de cobardia? E ao contrário: um artista verdadeiramente excepcional pode ser imune a concessões, mentiras, mitificações? De onde vêm os raríssimos génios? Que mistério é este?
Se a palavra noël fosse japonesa, os pontinhos sobre o “e” eram gotas de chuva.

Cismar

(...) Naquele tempo, ainda se usava um sinónimo ligeiramente depreciativo do verbo «pensar»: de acordo com a avó, que já não vivia noutro continente, a mãe passava o tempo a «cismar». É um verbo que aparece nos poemas de Florbela Espanca. Cismar é o que acontece quando o pensamento não vai a lado nenhum. Em vez de progredir, o pensamento repisa e repete, sem conseguir avançar. Quem cisma não encontra o que não perdeu, mas continua a insistir. Se pensar é procurar coisas que não sabemos que estão lá, cismar é procurar coisas que sabemos onde estão.(...)

Cem anos depois

No noticiário da rádio, ouço um tipo a comentar as últimas informações sobre a possível transferência do treinador do Benfica para o Flamengo, do Brasil. O tipo não se cansa de repetir que «tudo isto é surreal». «É uma história surrealista!» «É surreal!» «É surreal!»  Como é que se chegou aqui? Como é que uma palavra de fogo se transformou numa coisa desprovida de peso e significado, usada apenas para embrulhar conversa fiada, frases balofas, peixe podre?

Early life

Concordo com George Saunders quando diz: Kushner é uma jovem mestre. Não entendo como sabe tanto e consegue passar esse conhecimento para os seus livros de uma forma tão interessante.   Mas acho que aquilo do não entendo como é retórica. Basta espreitar a página da Wikipédia da Kushner para entender alguma coisa, basta até o primeiro parágrafo:  Kushner was born in Eugene, Oregon, the daughter of two Communist scientists, one Jewish and one Unitarian, whom she has called "deeply unconventional people from the beatnik generation." Her mother arranged after-school work for her straightening and alphabetizing books at a feminist bookstore when she was 5 years old (...).

Uma pequenina luz

O Natal atira-me para um estado de aguda melancolia. Não sei explicar. Ou melhor, sei. Claro que sei. Há demasiadas luzes a cintilar, bonecos de neve nas janelas, Pais Natais a pilhas e duendes a agitar as ancas de plástico, Frank Sinatra e Bing Crosby aos abraços pelas ruas, a árvore de 34 metros de altura por 15 metros de largura na praça, mil paisagens nevadas dos alpes suíços em mil montras de lojas de pronto-a-vestir. E não há uma única luz a cintilar dentro de mim. «Uma pequenina luz bruxuleante. Une toute petite lumière, just a little light, una picolla…» Nada. Gosto de rabanadas, apenas isso.

you make my heart sing

Reactivei as idas à Biblioteca Almeida Garrett (onde, confirmei mais uma vez cheia de vaidade e surpresa, sou reconhecida pelo nome). Para festejar o evento, trouxe Emmanuel Bove traduzido por Manuel Resende e Rachel Kushner traduzida José Miguel Silva. É um alegria pegada, não consigo perceber de qual dos quatro gosto mais.

Wild thing,

Paulo Nozolino, Pedro Costa e Rui Chafes no Centro Pompidou em 2022 parece o anúncio de um concerto. Precisavam de uma vocalista. Talvez a Flannery O’Connor — vestida de couro preto.

Grelha de leitura

Toda a gente discorre sobre distopias conforme leu — ou ouviu dizer — no livro do Orwell e semelhantes. Custa-me a aceitar esse cenário. Quando leio os jornais, não vejo senão uma grande farsa (vertente Thomas Bernhard).

O modesto papel de minhoca

Enquanto anarquista (e pessimista, uma vez que tenho consciência de que a sua contribuição pode ter apenas um valor simbólico), o escritor pode, entretanto, atribuir-se em boa consciência o modesto papel de minhoca na terra da cultura. Caso contrário, secará na aridez das convenções. Ser o político do impossível num mundo onde são muitos os políticos do possível é, apesar de tudo, um papel que me satisfaz como ser social (...). Stig Dagerman, A Política do Impossível . Tradução de Flávio Quintale.

A cabeça de um condenado

É praticamente no início da narrativa. Um misterioso personagem dos Contos Cruéis , de Villiers de L’Isle Adam, decide chamar a si mesmo Barão Saturno. A tradutora, Fernanda Barão (coincidência curiosa), remete o leitor para uma nota de rodapé onde explica os motivos que poderão estar na origem daquele nome. É a nota 44: Depois de As Flores do Mal , os Poemas Saturnianos de Verlaine («Jette ce livre saturnien…»), transformaram, de certo modo, em moda o signo maldito de Saturno. No primeiro capítulo de Claire Lenoir [novela de Villiers de L’Isle Adam], Bonhomet define-se a si próprio como um saturniano.  E agora a parte que mais me interessa e que é uma homenagem à imaginação dos tradutores:  Para um visionário como Villiers, além disso atraído pelas curiosidades da astronomia, o planeta Saturno, com a sua esfera prisioneira de um anel, podia evocar a cabeça de um condenado decapitado pela guilhotina. Mais à frente, o leitor percebe que o Barão era um «executor de sentenças finais», o

3. Le commerce

Ao passar pelos cartazes de natal do Continente percebi que a única forma de suportar estas mensagens tão estafadas é convertê-las automaticamente em material pornográfico (imagem exemplo, em anexo). Claro que já não se trata de publicidade, é território da intervenção política ou até da arte contemporânea.

Cinema do real

Picture from a cinema after tornadoes ripped through several U.S. states in Mayfield, Kentucky. Shawn Triplett/via REUTERS .

Noites Brancas

Vi ontem, na televisão, As Noites Brancas do Carteiro , de Andrei Konchalovsky. É um filme belíssimo. Alguns críticos referem o «simbolismo do título», que evoca Noites Brancas , de Dostoiévski. É possível. Para mim, no entanto, é mais óbvio o fantasma de Bulgákov. Há um gato preto que aparece recorrentemente, em visões, ao carteiro. Que outro gato poderá ser senão Behemoth?

Mais um Godot

Em vários momentos do Manual de Leitura * dedicado à nova encenação de À Espera de Godot , de Gábor Tompa, se sugere que a pandemia lançou uma nova luz sobre as peças de Samuel Beckett. É como se a insegurança e a solidão dos confinamentos nos tivessem empurrado para dentro de uma peça viva de Beckett. Percebo e concordo. Mas a verdade é que as peças de Beckett, e em especial  Godot , vão mais longe e mais fundo, muito para além de uma catástrofe circunstancial. Funcionam da mesma maneira que os grandes textos religiosos, as peças dos gregos ou de Shakespeare: são o nosso espelho de quarto. Mostram-nos como somos, antes de nos vestirmos, lavarmos, pentearmos. Reflectem a nossa catástrofe permanente. O que Beckett traz para o palco é, mais uma vez, o reconhecimento de que o riso é um meio de salvação. A vida são dois dias, como em Godot , e rir do nosso destino absurdo é a maneira de o suportar, de adiar mais um pouco a morte. * Não me canso de admirar estes maravilhosos manuais do Teat

Para onde fugir?

ANDREI BOTH: (...) Vivemos num mundo vigiado, sob a influência de um cartel digital, o Big Brother espreita-nos. Vivi 32 anos sob o comunismo e a opressão, e esta atmosfera tipo KGB que sinto a crescer assusta-me imenso. Estou a aproximar-me do fim da vida, farei 70 anos em breve e tudo isto me parece um autêntico pesadelo. Para onde fugir? GÁBOR TOMPA: Não há lugar para onde fugir, essa é a diferença agora. É uma afirmação paradoxal: felizmente que se é velho! [Risos.] Foi realmente nos últimos cinco anos que o discurso no mundo se tornou mais extremo e ideológico. Não há diálogo, apenas atitudes extremadas e um discurso do ódio. O ativismo, seja de que tipo for – comunismo, nazismo, feminismo, sexismo –, divide o mundo em seguidores e inimigos, e isso cria ódio. O mundo nunca esteve tão polarizado e parece que já entramos na Terceira Guerra Mundial. É difícil resistir a este tipo de ideologização e de lavagem cerebral que se sente pelo mundo fora e pelas uni

Excessos vergonhosos

Passo o feriado a ler O Senhor Secretário , a magnífica novela de Henryk Sienkiewicz. A dada altura, o narrador conduz o leitor à igreja de Wrzeciadza. É domingo de manhã e o padre Czyzyk celebra a missa. Durante o sermão, o vigário evoca a «heresia dos maniqueus cataristas». O narrador comenta que não sabe a que propósito vem esta referência aos maniqueus cataristas na homília do vigário: «Não sei por que causa ou razão.» O tradutor, Isolino Caramalho , introduz uma nota de rodapé para esclarecer o leitor sobre estes misteriosos maniqueus cataristas: «Seita religiosa, cujos adeptos se entregavam a excessos vergonhosos.» Apenas isto. Nem mais uma palavra. Mas a que excessos vergonhosos se entregavam eles? Isso é que eu gostava de saber.

Maria da Visitação

Esta noite, durante o meu passeio habitual, vi com todos os detalhes a peça que podia fazer da história desta falsa santa portuguesa, Maria da Visitação , cujas façanhas li num livro sobre os fenómenos físicos do misticismo. Ela ocupava o palco sozinha durante duas horas, e o monólogo tratava de todos os aspectos que comporta uma santidade duvidosa mas patética. Escusado será dizer que esta peça, depois de a ter elaborado perfeitamente na minha cabeça, vai ficar por aí. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Exuberância irracional

No Público de hoje , o economista Ricardo Cabral escreve o seguinte: «No actual contexto pandémico e de “exuberância irracional” dos mercados, retirar estímulos e aumentar rapidamente as taxas de juro seria problemático.» O texto, como quase todos os que são escritos por economistas, está carregado de passagens similares. Normalmente, não perco muito tempo com este «género literário». Desta vez, porém, a frase fascina-me e preciso de a registar: a exuberância irracional dos mercados . É todo um programa. A economia é a nova religião, já o sabemos, e os economistas são os padres do nosso tempo: especialistas num mistério que não dominam, mas que procuram interpretar e transmitir aos fiéis. E quanto mais exuberantes e irracionais as interpretações, aparentemente mais «credíveis».
É daquelas coisas que saem sem explicação e ainda não tive tempo para analisar se é disparate ou intuição certeira (sou boa nas duas actividades): o episódio “A Friend in Deed!” do Columbo tem umas cenas que parecem saídas dos contos da Flannery O’Connor. Não se trata de semelhanças literárias, nada disso — é uma ligação visual, qualquer coisa ao nível dos figurantes e cenários. Quando Hugh Caldwell entra no bar para falar com Artie Jessup e quando Mark Halperin vai ao (falso) apartamento de Jessup esconder as jóias — nessas duas situações, reconheci os ambientes de algumas histórias de Flannery O’Connor. Como se Flannery fosse artista plástica e não escritora.

A vida na Terra

Fomos ver Drive my Car , de Ryûsuke Hamaguchi. Sob a fina película do filme - a pele do filme? -, um número incontável de histórias cresce em todas as direcções. Cada personagem tem sete vidas, muda sete vezes de máscara, voa de um palco para o outro, exprime-se na sua própria língua. E, no entanto, tudo parece perfeitamente claro e transparente. Tudo está iluminado, como num milagre, como numa peça de Tchékhov. Parece que nada nos escapa, de que percebemos tudo, porque a língua do milagre, a língua de Tchékhov, é a grande língua comum, universal, o esperanto da alma e dos sentimentos. Nada mais enganador.

Schöne Welt, wo bist du?

Se a Sally Rooney fosse portuguesa, o João Pedro George já a tinha esfrangalhado (i.e., exposto as fragilidades, o fastio e o tremendo emproamento) nas páginas da Sábado. Podíamos rir um bocado, coisa que as personagens não sabem fazer (nem a própria Sally Rooney, desconfio), e já não se perdia tudo.  Sempre que um livro encaixa nesse conceito foleiro de escrita geracional ou é canalizado, imediata e apressadamente, para as adaptações televisivas, é sinal que o princípio activo da literatura está em falta. Por mais influências sonantes que se apregoem. Aliás, às vezes até são as influências que dão cabo do trabalho (?) (ver o modo como Sally Rooney chegou ao título).

O Contador

Hoje voltei a vê-lo. Quando o metro pára na estação da Lapa, ele percorre a plataforma ao longo das carruagens, espreita pelos vidros e faz anotações num caderno. Não tem tempo para contar as pessoas, por isso calculo que os apontamentos são vagos. Haverá alguma empresa que se interesse por essas informações não exactas? Ou será que ele é um maníaco que trabalha por conta própria?

Anexos sanitários

A arte contemporânea é uma zona sacrificial que absorve todas as correntes envenenadas que aparecem incessantemente e pelas quais toda a gente seria infectada. Pensa-se que é um campo alternativo, mas na realidade é um dos anexos sanitários da cultura de massas, como, por exemplo, uma fábrica com anexos técnicos que asseguram a evacuação das águas contaminadas (...) Parece-me que a a arte contemporânea desempenha exactamente esse papel: as ideias e as imagens potencialmente perigosas são para aí canalizadas, e tudo funciona perfeitamente. É um mecanismo de evacuação, e os artistas ficam com a ilusão de ser uma alternativa, de se opor à cultura de massas, quando na realidade eles são uma função dela, os seus cuidadores. Pavel Pepperstein, citado por Jovan Mrvaljevic, na revista Electra  n.º 14. Tradução de António Guerreiro.