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Mensagens

A mostrar mensagens de outubro, 2020

Confinamento (dia dos mortos)

Marilyn Monroe apanhada a ler "Lágrimas e Santos" na cama.

Duvido de que alguma vez tivesse chegado a escrever uma linha

Ao olhar para Rimbaud vejo-me ao espelho. Nada do que diz me é estranho, por mais feroz, absurdo ou difícil de perceber que seja. Para compreender é preciso dispormo-nos a um acto de rendição, e recordo-me perfeitamente dessa rendição no primeiro dia em que olhei para a obra de Rimbaud. Nesse dia, há pouco mais de dez anos, li apenas algumas linhas e, tremendo como uma folha ao vento, pus o livro de lado. Tive nessa altura a sensação, e ainda a tenho, de que ele tinha dito tudo o que há para dizer no nosso tempo. Era como se ele tivesse colocado um telhado sobre o vazio. É o único escritor que li e reli com um prazer e uma excitação que nunca diminuíram, encontrando nele sempre qualquer coisa de novo, sempre tocado profundamente pela sua pureza. Seja o que for que diga dele há-de ser sempre aproximativo, sempre uma tentativa, no melhor dos casos um aperçu . É o único escritor cujo génio invejo; todos os outros, por maiores que sejam, nunca despertaram em mim inveja. E acabou aos dezan

A Veneza do bairro

As gôndolas avançam. Deslizam suave e silenciosamente, em todas as direcções. Há uma certa música no ar. Por trás das máscaras, os gondoleiros navegam nas águas paradas dos seus próprios sonhos. Percorrem os corredores do supermercado, entre a peixaria e o talho, em busca das promoções.

Energia e fluidos

Abro os Poemas de Álvaro de Campos (Pessoa), e deparo com "Seja o que for, era melhor não ter nascido".  Quoi qu’il en soit, mieux valait n’être pas né . Na tradução de uma carta de Pessoa, o tradutor emprega a expressão "crise psíquica". Devia ser: “crise moral", pois não se trata de um desânimo qualquer, mas de uma revisão da sua atitude para com os seus semelhantes. Em Pessoa, é quase a crise de Tolstói. Uma crise de ordem moral, portanto. Emil Cioran, Cadernos, janeiro de 1970 e janeiro de 1969

O mistério

Um manto de silêncio abateu-se sobre os supostos avanços na produção de uma vacina. Há semanas que não há notícias relevantes sobre o assunto. Mil laboratórios numa roda-viva. E, no entanto, o vírus continua sem revelar o seu segredo. O mistério recuperou o seu lugar no mundo. O mistério que nos perturba tão profundamente e que é tão humano como a crença no poder da ciência. É tudo tão velho e tão novo ao mesmo tempo.

Insónia absoluta

Acordo às três ou quatro horas, daí em diante o sono transforma-se em farrapos e voltas na cama. Podia procurar causas normativas, mas na verdade acho que é a influência de Cioran — a palavra estupor brilha como uma bola de espelhos.

Pergunta

Tudo começou com a pergunta de um estudante, diante de um aparente enigma eleitoral da cidade do Salvador. “Por que negros e mulheres são claramente a maioria nesta cidade, mas elegemos em geral homens, brancos e ricos, mesmo quando há candidaturas de negros, mulheres e pessoas com origem na periferia com que a maioria da população poderia se identificar?” Aqui.

Livro I, capítulo I, primeira palavra.

Esta manhã, vimos a exposição de R.H. Quaytman. Quase no fim, há um quadro onde a artista representa um livro - toda a exposição é organizada em torno das ideias de livro e de capítulos de um livro - com a inscrição «Book One: Fear». É perfeito. O capítulo inicial de qualquer livro deveria intitular-se «Medo». E a primeira palavra de qualquer primeiro capítulo também. É aí que tudo começa.

Regras de etiquetas

Ultrapassou os influenciadores, a pandemia e a quarentena; ultrapassou até o venerável Ludwig Wittgenstein. Cioran ( ah, cet enfoiré ! ) alastra neste blogue como um vírus.

“O mundo engendra-se no delírio, fora do qual tudo é quimera.”

É a primeira vez que traduzo um livro de uma ponta à outra (nunca cheguei a terminar os “Postes de Ângulo”). Assumi o título quase literalmente a atirei-me ao trabalho como uma missão. Demorei mais ou menos um mês a  traduzir as cento e tal páginas folgadas de “Lágrimas e Santos” (versão impressa no formato 11X17 cm). Uma ou duas horas por dia, de segunda a sexta, como se fosse um emprego em part-time. Agora vou passar mais de três meses a substituir as palavras, alterar a ordem. É um biscate, mas parece uma guerra — vamos a ver o que sobra.

Mudar o nome

O que peço à arte é que me ajude a dizer o que penso com a maior clareza possível, a inventar os signos plásticos e críticos que me permitam com a maior eficiência condenar a barbárie do Ocidente; é possível que alguém me demonstre que isso não é arte; não teria nenhum problema, não mudaria de caminho, me limitaria a mudar-lhe o nome: riscaria arte e chamaria de política, crítica corrosiva, qualquer coisa. León Ferrari.

O medo

Os outros têm medo de nós porque nós temos medo deles. Nós temos medo dos outros porque eles têm medo de nós. As máscaras não quebram o círculo vicioso. Pelo contrário, são a mais pura expressão gráfica deste estranho terror.

Divertimento

“Mas também o sofredor gosta às vezes de se divertir com o seu desespero, como se o fizesse também por desespero.” — Diz o stárets Zóssima a Ivan Fiódorovitch Karamázov. Podia ser um rascunho de Cioran nos seus Cadernos.

Sabe em que estou a pensar?

Há que saber como essa puta é. Sabe em que estou a pensar? Na Natureza. Quando se desvia assim, para um lado, devido a qualquer coisa que se não espera, não devemos protestar, não devemos opor resistência; pelo contrário: submetermo-nos, fazer boa cara... mas não abrandar por dentro, sobretudo não perder de vista o nosso objecto, de forma a ela saber bem que temos um, nosso . De começo, nas suas intervenções é sempre muito categórica, acutilante, etc., mas depois fica como que desfalecida no seu interesse súbito; abranda e então, às escondidas, podemos voltar aos nossos próprios trabalhos e até contar com certa indulgência da sua parte... Witold Gombrowicz,  Pornografia . Tradução de Aníbal Fernandes.

É a vida

1. Dans un village de Normandie, un enterrement. Je demande à un paysan des précisions. « Il était jeune, à peine soixante ans. On l’a trouvé mort dans les champs. Que voulez-vous ? C’est comme ça. » Et de répéter plusieurs fois : « C’est comme ça. » Qu’aurait-il pu dire d’autre ? Que peut-on dire d’autre sur la mort ? « C’est comme ça, c’est comme ça. » L’irréparable rend stupide. (Emil Cioran, Cadernos 1957-1972) 2. A tradução mais literal é esta, quase palavra por palavra — como deve ser: Numa aldeia da Normandia, um enterro. Peço pormenores a um camponês. “Era jovem, apenas sessenta anos. Foi encontrado morto no campo. Que quer? É assim.” E repete várias vezes: “É assim.” Que mais poderia dizer? Que mais podemos dizer sobre a morte? “É assim, é assim.” O irreparável faz-nos estúpidos. 3. Pois, está muito bem, mas apetece estragar um bocado; apetece traduzir “c’est comme ça” por “é a vida”. Argumentos não faltam: a expressão é muito vulgar, transmite melhor o sentido de inevitab

Invisível

Coloco a máscara. Saio de casa. Os óculos embaciam imediatamente. Tiro-os e guardo-os no saco. Imagino que se me cruzar com um amigo, de máscara e sem óculos, não me irá reconhecer. Imagino que avanço pela rua como se fosse invisível. Que não sou daqui nem de lado nenhum. Acho graça à ideia. Não, não acho graça à ideia.

Pessimismo

No entanto, se mais nada nos resta senão o pessimismo, isto não significa uma qualquer resignação fatalista, mas antes, como Walter Benjamin já o sabia, que este é o ponto de onde teremos necessariamente de partir: «il faut organiser le pessimisme». Daqui.

Deixa a tristeza sair

Não há em português uma expressão com a força de avoir le cafard  e não se percebe porquê — tristeza não nos falta. Podemos traduzir por estar triste, tristonho, destroçado, sorumbático, macambúzio, ou até mesmo “em baixo” — mas falta qualquer coisa. Um substantivo vulgar (como a barata francesa) ou um adjectivo musical (como o azul inglês), uma palavra sem grande reputação mas que sozinha consiga mostrar o buraco em que caímos e que estimule a matéria semântica (ganhar musgo).  Qual? Talvez “na fossa”? Tem uma força sensorial formidável, é certo, e Cioran até era capaz de gostar da imagem, mas não encaixa nos seus aforismos (lamentável desencontro geográfico). Fica para a próxima.

Influenciadores do século XX

 

Cioran a le cafard. Toujours.

Timon: Hé regarde il a le cafard !  Pumbaa: Mais y a pas de cafard dans le désert. Há palavras francesas muito importantes para compreender os pensamentos de Cioran, são uma espécie de didascálias: instruções dadas pelos poetas aos actores — precisamente. Dégoût é uma delas; não tanto na tradução literal desgosto,  que em português é demasiado passiva, mas nos termos mais exuberantes e teatrais: repugnância , aversão ou nojo . Em primeiro lugar, porém, sem qualquer dúvida, está cafard . Com todos os sentidos que a palavra foi ganhando e perdendo ao longo dos anos: a influência árabe kafir para descrever uma pessoa descrente ou um renegado, a obscuridade atribuída por Baudelaire (um dos poetas de Cioran) e, acima de tudo, o seu carácter boémio de vão de escada (condição essencial). Se há palavra que condensa tudo o que Cioran escreveu, essa palavra é cafard . E, ao contrário do que diz o tradutor francês do “Rei Leão”, também há baratas no deserto .

“mofas de mim atiras-te ao chão zombando à tua maneira”

Oito palavras fáceis de traduzir — quase ela por ela —, não fosse o verbo ricaner que é um rir afectado. Zombar ou escarnecer? Fiz um desvio pelo espanhol e cheguei a mofar — já fora de uso? É isso mesmo. Cioran a escrever como um antigo, como alguém que se esqueceu de actualizar o léxico:  Mofar ou rezar — tudo o resto é acessório.
Esta tarde, depois de uma pequena sesta, veio-me à cabeça o nome de Dita Parlo , uma estrela dos anos trinta. Como sou velho! exclamei. Há... quarenta e cinco anos, adorava cinema. Esta atriz, quem ainda se lembra dela? É este tipo de detalhe, muito mais do que uma reflexão filosófica, que nos revela a aterradora realidade e irrealidade do tempo.  Emil Cioran, Cadernos, 30 de março de 1972.

Assalto

Um alarme tocou na rua durante toda a noite. Aquele som agudo, penetrante, como um beliscão contínuo na corda dos nervos. Dez minutos e o nosso único desejo é que aquilo pare. Que a vida retome a indolência habitual. Sono, letargia, torpor. Da mesma forma, podem soar todos os alarmes. Nos jornais, nas rádios, nas televisões. Podemos assistir ao assalto, sermos as primeiras vítimas, podem roubar-nos tudo: a verdade, a liberdade, a compaixão. A maioria de nós vai preferir sempre o silêncio. Deitar-se e dormir.

A apoteose do sub-homem

Samuel Beckett. Prémio Nobel. Que humilhação para um homem tão orgulhoso! A tristeza de ser compreendido! Beckett ou o anti-Zaratustra. A visão da pós-humanidade (como se diz pós-cristianismo). Beckett ou a apoteose do sub-homem.  Emil Cioran, Cadernos, 23 de outubro de 1969.
O cavalo não sabe que é um cavalo. — E depois? Não se vê o que ganhou o homem por saber que é um homem.  Emil Cioran, Cadernos, junho de 1965.

Jogo

Pausa no trabalho. Dez minutos para roer uma maçã. Espreito pela janela. Lá em baixo, as marcas do passeio formam um estranho tabuleiro de xadrez. Os peões avançam numa e noutra direcção, uns devagar, outros mais apressados. O jogo arrasta-se há uma eternidade, sem grandes variações. Ganham os do costume, perdem os de sempre.

E em vez disso perguntei

- Vais à igreja? Crês em Deus? (...) - Em Deus? Pff! Bem sabe o que os padres dizem... - Mas Deus? Crês em Deus? - Claro que sim. Mas... - Mas o quê? Calou-se. Eu devia perguntar-lhe: - Vais à igreja? E em vez disso perguntei: - Vais ter com mulheres? - Às vezes. - Tens êxito com as mulheres? Desatou a rir. Witold Gombrowicz, Pornografia . Tradução de Aníbal Fernandes.

A ordem do dia

Quem supõe paradoxal que um pensamento com tintas fascistas se combine com o suporte empresarial e midiático, que se refastela hoje com as reformas liberais, é o caso de lembrar o entusiasmado apoio que Hitler recebeu das empresas alemãs – sem o qual, certamente, não teria chegado tão longe no domínio territorial da Europa e na produção industrial do genocídio. Em A ordem do dia (Tusquets), Éric Vuillard descreve a reunião que firmou as bases deste acordo, em 1933. O que disse, Hitler, que convenceu os capitães da indústria? “Era preciso acabar com um regime fraco, afastar a ameaça comunista, suprimir os sindicatos e permitir que cada patrão fosse um Führer em sua empresa”. Marcelo Semer.

Casava com ele

Deitei mão à versão digital dos Cadernos escritos por Emil Cioran entre 1957 e 1972. As entradas têm uma vitalidade desconcertante. *** Tenho tudo de um epiléptico, menos a epilepsia. Borges escreveu um poema sobre o tango. Como o compreendo. Tenho vontade de exclamar: «Dêem-me um tango por dia!» Trago em mim uma Argentina secreta.    Mais próximo da tragédia grega do que da Bíblia. Sempre compreendi e senti melhor o Destino que Deus. Nada do que é russo me é estranho. “Sou estrangeiro na terra e no céu.” (Lermontov) Sou filho do tédio russo. Como duvidar das minhas origens eslavas? Sou um Mongol devastado pela melancolia. O próprio Deus não saberia pôr fim às minhas contradições. É estranho que ninguém se tenha apercebido das minhas afinidades com Swift, nem mesmo a influência que ele teve sobre mim. Introduzi o suspiro na economia do intelecto. Um tratado de medicina da época de Hipócrates intitulado: “Sobre as Carnes”. Eis um livro segundo o meu coração, e q

Senão

Para manter o sentido da dupla negativa em francês — mecanismo tão característico de Cioran —,  vi-me obrigada a recorrer uma e outra vez a “senão”. Como preposição ou conjunção, mas sempre, sempre, como uma espada que encosta à parede. A tradução de Lágrimas e Santos revela-se mais ameaçadora que um livro de Stephen King.

Velhas novidades

A extrema direita a ganhar terreno em Portugal. O avanço descontrolado do discurso de ódio um pouco por toda a parte. A nossa eterna pulsão de incendiários. O nosso estranho desejo de fim do mundo. Os franquistas gritavam «viva a morte!», nas assembleias e nos comícios. O povo aplaudia e repetia «viva a morte!» Quando respondemos «não passarão!», estamos a dizer o quê? Não passarão nas ruas? Não passarão nas mesas de voto? Não passarão dentro da nossa consciência?

O destino marca a hora

Passo ao lado de tudo que é importante. Devia ter sido convidada para participar no Festival Eurovisão da Canção Filosófica . Um trio bastante morto: eu, o Cioran e o Tony de Matos. O único consolo é que a tradução de Lágrimas e Santos (vai a um terço, creio) está a correr bem e não tarda nada cresce-me uma auréola céptica nos pés.
O vinho fez mais para aproximar os homens de Deus que a teologia. Há muito tempo que os bêbados tristes — mas haverá outros? — superaram os eremitas. Lágrimas e Santos, Emil Cioran (tradução a partir da versão francesa).