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Segunda-feira

Jogo de futebol no Estádio River Plate. Com trinta mil espectadores. O sol aquece. De repente, sobre os camarotes, onde se fazia ouvir a algazarra da espera impaciente por uma luta renhida aparece um balão... Um balão? Todos podem ver que não é um balão, mas um preservativo grandemente insuflado pelo hálito indecente de alguém. O balão-preservativo, auxiliado pelas correntes de ar que ascendem do público acalorado, sobrevoa as cabeças e, quando cai, é levemente tocado pelas mãos dos brincalhões... e uma multidão de milhares de pessoas fixava o olhar neste escândalo flutuante, tão horrivelmente visível, tão flagrante! Silêncio. Ninguém se atreve a falar. Êxtase. Foi então que um padre de familia , indignado, o esfaqueou com um canivete. E ele rebentou. Assobios! Uivos! Uma raiva inacreditável explodiu de todos os lados — de perto e de longe —, e o aterrorizado «pai de família» esgueirou-se o mais depressa possível pela saída mais próxima, Quem mo contou foi Betelú Mariano, de alcunha Fl

Ouro

Página 488 do Diário de Gombrowicz. Um aforismo arrancado ao corpo de um parágrafo: «(...) pois que um artista deve actuar sempre na fronteira entre a vergonha e o ridículo.» Se pudesse, mandava banhar esta frase a ouro. O diário podia terminar aqui. Está tudo dito.

Um animal estranho

Caminhava eu por uma avenida ladeada de eucaliptos quando uma vaca saiu de trás de uma árvore. Parei e olhámo-nos nos olhos. A sua vacalidade chocou com a minha humanidade a tal ponto - o momento em que cruzámos o olhar foi tão tenso - que perdi a confiança em mim enquanto homem , isto é, enquanto espécie humana. Experimentava pela primeira vez uma estranha sensação - a vergonha de um homem face a um animal. Deixei que ela olhasse para mim e me visse - isto tornou-nos semelhantes - em resultado também me tornei um animal - mas um animal estranho e, diria eu, até mesmo proibido. Continuei o meu caminho, retomando o meu passeio interrompido, mas senti-me desconfortável... na natureza, que me cercava por todos os lados, como se estivesse... a observar-me. Witold Gombrowicz, Diário I . Tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz.

Sienkiewicz/Gógol

Há uns tempos, li com imenso prazer a novela  O Senhor Secretário , de Henryk Sienkiewicz. Na altura, fiquei com a impressão de estar a ler um Gógol meio desfocado. Não sabendo explicar melhor, desisti de tentar desenvolver a ideia. Agora, nos diários , Gombrowicz parece confirmar a minha impressão: E aqui - um paradoxo: este escritor conservador é neste sentido um precursor da actualidade revolucionária, este escritor «crente» está inconscientemente próximo da filosofia que refuta os valores absolutos e vive a dialéctica dos valores relativos resultantes das necessidades, nas quais o homem se torna a medida do valor. (...) Seria impossível um Sienkiewicz ateu, um Sienkiewicz bolchevique? Pelo contrário, é possível na medida em que, se algum dia a modernidade vermelha polaca publicar o seu grande romancista, será justamente Sienkiewicz à rebours . Todavia, ele não se via a si mesmo desta maneira. Disto não se apercebeu. E se se tivesse apercebido, teria acabado consigo mesmo na hora, e

Irmão Gombrowicz

8h30. Meia hora antes de começar a trabalhar - dantes dizia-se «pegar ao trabalho» -, abro o diário de Gombrowicz e leio umas linhas. Página 250, mais ou menos a meio do livro. As mesmas queixas, a mesma cantilena triste, como uma litania ecoando pelos séculos dos séculos, sem princípio, sem fim: «Segunda-feira. (...) Não vejo nada diante de mim… nenhuma esperança. (...) Depois de tantos anos de tensão e trabalho duro, quem sou eu afinal? Um escriturário massacrado por sete horas de trabalho, estrangulado em todos os esforços da escrita. (...) Tudo sofre porque, diariamente e durante sete horas, cometo um homicídio no meu próprio tempo. (...) De quem é a culpa? Dos tempos? Das pessoas? Mas quantas delas foram mais bem esmagadas?» 9h00. É o meu turno.

Tempo para ler

A certa altura do seu diário, Gombrowicz fala de um outro autor polaco, Zbyszewski, que tem uma explicação para a «crise da literatura»: «a literatura não tem hipótese em consequência da crise do sector dos serviços domésticos, pois, por falta de empregadas, as senhoras não têm tempo para ler.» Muito acertado e muito lógico. Mas ainda há esperança. Com os novos e modernos robôs de limpeza, que infelizmente ainda não existiam no tempo de Zbyszewski, as senhoras já podem voltar a ler. Talvez os robôs ainda tenham chegado a tempo de salvar a literatura. Uma proposta de campanha publicitária para os supermercados Fnac: compre um livro e receba grátis um robô de limpeza.

Exijo que se fale de mim com palavras domingueiras.

Gombrowicz escreve ao «Clube de Discussão de Los Angeles», cuja primeira sessão tinha sido dedicada à obra dele. A carta termina assim: «Dissestes-me que fui objecto da vossa discussão. Pois bem, gostaria de vos perguntar: a minha pessoa foi respeitada? Será que as vossas palavras foram guarnecidas com vibração? Falastes de mim com emoção, imaginação e paixão tal como se deve falar da arte? Ou será que de mim apenas retirastes umas “ideias” minhas e as mordicastes como um osso seco do meu esqueleto? Ficai a saber que proíbo de falar de mim de modo entediante, normal, comum. Proíbo-o veementemente. Exijo que se fale de mim com palavras domingueiras. Castigo com crueldade aqueles que se dão ao luxo de falar de mim de modo entediante e sensato: morro na boca deles e eles ficam com a sua cavidade bucal cheia do meu cadáver.» ( Diário: 1953-1958 . Tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz.) Devíamos pintar estas palavras a vermelho à entrada das faculdades de letras, dos institutos, das esc

Diário

Entre 26 de Agosto de 1911 e 26 de Setembro do mesmo ano, Kafka não regista qualquer entrada no seu diário. Há períodos ainda mais longos de «silêncio»: entre 19 de Setembro de 1917 e 6 de Julho de 1919, por exemplo. O que terá acontecido durante esses longos meses em branco? Quando não escrevia, quem era Kafka? Interessa saber?