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Mensagens

A mostrar mensagens de setembro, 2021

No ponto

Ontem domingo (27 de outubro?) uma trintena de quilómetros a pé. Sete horas de caminhada para lá de Étampes. Momento ideal de outono. Gosto tanto do amarelo como detesto o verde.  Como disse a S.: o outono está no ponto . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Material circulante

Acho que arranjei uma solução para traduzir Mauvais Demiurge . Na verdade não é bem uma solução no sentido de desfecho, mas uma equação dinâmica: traduzir sempre de modo diferente. Transformar o adjectivo mauvais  numa palavra camaleão; a cada ocorrência (e são tantas), convertê-lo em variadas palavras que não se conseguem agarrar — tão esquivas como o  " trabalhador para o povo " .

Novos Rimbaud

Qualquer ignóbil detentor de farta conta bancária, qualquer filho de oficial, qualquer rebento de burocrata, qualquer um desses felizes parvalhões a quem se oferece uma mota pelo Natal, qualquer aborto educado em papel de seda, todos têm como coisa infalível serem novos Rimbaud e que o eu deles é também um outro. Tudo quanto passa a vida à espera da herança fala em sumir-se um dia. (...) O que estudo para já neste fenómeno é a grande comodidade antipoética do rimbaudismo contemporâneo. Porque a antipoesia deixou de ser uma quimera dialéctica. Materializou-se, em tempo desportivo tornou-se sistema, dispõe até de fundamentos metafísicos em caso de necessidade. Louis Aragon, Tratado do estilo . Tradução de Júlio Henriques.

Bestiário

Dois dias após as eleições, os candidatos continuam a sorrir nos outdoors e cartazes. Mas já não é bem um sorriso. É qualquer coisa impossível de definir. No Porto, nenhum candidato foi um verdadeiro vencedor e nenhum saiu propriamente derrotado. Parecem giocondas, nem felizes, nem tristes. Centenas de giocondas espalhadas pelas ruas e esquinas da cidade. Um bestiário branco e monótono.

Um trabalho de vida

Por que é que o velho marinheiro, da balada de Coleridge, mata o albatroz? Porquê? Não se sabe, responde Alberto Pimenta . Talvez por diversão, por tédio, porque estava aborrecido, porque não tinha nada melhor para fazer. Não se sabe. «Estará aqui» - pergunta Alberto Pimenta - «não só o fundo de todo este poema, como até o próprio caminho que leva à poesia? É talvez uma compulsão dessas que habita e sempre habitou o poeta.» O certo é que a bala que atravessa o corpo do inocente albatroz também condena a tripulação à morte. A natureza vinga-se. O marinheiro é condenado à morte-em-vida e à eterna compulsão de narrar a história, uma e outra vez, que é o mesmo que a reviver continuamente. Alberto Pimenta propõe uma hipótese: «Esta compulsão de quase permanentemente refazer, narrando, o próprio crime, ou falha, ou falta, ou desvio inicial, é provavelmente o arranque que leva a qualquer narração poética, que se torna assim um trabalho de vida. (...) Quer dizer que poesia que claramente o é,

El escritor catalán Félix de Azúa retratado en 1970

— Esquálido e com ar de refugiado.  Fui procurar o jovem Félix de Azúa dos anos setenta e encontrei duas fotografias num banco de imagens ( esta e esta , mas sem perceber a que se destinavam). Não tem a gabardine acolchoada verde-garrafa (quem será o Víctor a quem ele a deu? Será Víctor Gómez Pin?) nem as botas forradas a pelo.  Descalço, de calções esfarrapados e t-shirt de feira (por enquanto vou ignorar o cinto e o relógio), parece que está dentro de um filme de Pasolini: adorável.

Um refugiado em casa

Nada do que li de Cioran me esclareceu tanto sobre a complexa e delicada trama do seu espírito como aquela visita, há mais de 20 anos, na companhia de Fernando Savater. Fomos vê-lo às suas águas-furtadas no Bairro Latino — uma chambre de bonne de um ascetismo semelhante ao de Dreyer, pintada de branco até ao chão e com uma salamandra de ferro no meio, certa tarde de fevereiro ou março, já não me lembro, com um frio de rachar. A salamandra, que parecia uma divindade primitiva e malévola naquele refúgio evidentemente santo, estava apagada. Nessa altura, Savater andava a traduzir Cioran para aquela editora Taurus dirigida por alguém que ainda não tinha conseguido enobrecer o sangue, e ninguém conhecia o romeno. Recordo que naqueles anos não muito distantes de 70 houve uma greve de lixeiros em Paris e a cidade estava coberta de lixo. As ratazanas roçavam as pernas dos transeuntes e um fumo excrementício emanava das montanhas de matéria decomposta. Todos os dias, enquanto durou a greve, Be

Oráculo

Quando Creso consultou Delfos antes de dar o passo mais grave na sua longa vida de soberano - a guerra contra Ciro da Pérsia -, a resposta da Pítia foi perfeitamente dúbia: «Destruirás um grande império.» Creso pensou que o grande império era o de Ciro, mas o oráculo referia-se ao seu. Roberto Calasso, As núpcias de Cadmo e Harmonia . Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo.

Não demasiado

Quando chegou a Micenas, na companhia de Menelau, e encontrou sua irmã Clitemnestra, que acabara de ser degolada por seu filho, Orestes, Helena em sinal de luto cortou as pontas dos cabelos, mas não demasiado, para não se desfear. Roberto Calasso, As núpcias de Cadmo e Harmonia . Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo.

Miopia

Ontem fomos dar uma volta pelas estrada nacionais (em busca do “Milagre da Fruta” e também por saudade dos textos de Álvaro Domingues): EN 13, EN 206 e EN 14. Sem os óculos, os cartazes das autárquicas confundem-se com os cartazes das imobiliárias e vice-versa.  É outra forma de análise política.

Partita

Esta manhã, reabriu a Vandoma. Numa banca, um tipo vendia um violino «Stardivarius».

Arranhar a ferida

Fernando Savater:  Qual foi a sua formação filosófica, quais são os filósofos que mais o interessaram? Emil Cioran:  Bem, na minha juventude li muito Lev Chestov, que era então muito conhecido na Roménia. Mas quem me interessou mais, quem mais amei — é essa a palavra —, foi Georg Simmel. Sei que Simmel é bastante conhecido em Espanha, graças ao interesse que Ortega lhe dedicou, enquanto é completamente ignorado em França. Simmel era um escritor maravilhoso, um filósofo ensaísta magnífico. Era amigo íntimo de Lukács e Bloch, que influenciou e que mais tarde o renegaram, o que acho absolutamente desonesto. Hoje, Simmel foi completamente esquecido na Alemanha e até silenciado mas, no seu tempo, era admirado por figuras como Thomas Mann e Rilke. Simmel também era um pensador fragmentário. O melhor do seu trabalho são os fragmentos. Também fui muito influenciado por pensadores alemães daquilo que se chama a "filosofia da vida" como Dilthey etc. Claro, também li muito Kie

Nevoeiro

Revi ontem à noite Identificação de uma Mulher , no ciclo dedicado a Antonioni. Não é um dos meus filmes. Mas a longa sequência do nevoeiro é inesquecível. O nevoeiro e aquela coisa estranha que aparece entre os ramos de uma árvore. Não é um fruto, não é um ninho, não é um bicho. O que é? Uma coisa viva, uma coisa morta? Ninguém sabe. Somos como o personagem do cineasta Niccolo. Mesmo em dias limpos, não vemos um palmo à frente do nariz e o que vemos nem sempre tem explicação.

Gregos

Leio no jornal que, de acordo com um estudo de opinião , oito em cada dez jovens portugueses acreditam que «o futuro é assustador» e que o mundo está condenado por causa da crise climática. «Neste cenário, 37% mostram-se reticentes em ter filhos.» A crise climática tem todos os ingredientes da tragédia grega. Como personagens na história da nossa própria ruína, limitamo-nos a desempenhar os papéis que nos foram atribuídos, sem nos desviarmos um milímetro do texto. É assim que tem de ser. Os jovens consideram o futuro assustador; os velhos lamentam, mas não podem fazer nada.

Zeus está desejoso de os observar

Quando chegou o tempo de os heróis serem exterminados, teria bastado uma peste. Mas uma guerra, uma longa e emaranhada guerra, era muito mais bela. Assim, os deuses empenharam-se em fazê-la nascer e durar. Zeus não teria perdido tempo a observar das alturas as devastações da peste. Pelo contrário, quando os Troianos e os Aqueus voltam a enfrentar-se, Zeus está desejoso de os observar, e por vezes também, de sofrer. Roberto Calasso, As núpcias de Cadmo e Harmonia . Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo.

Influenciadores do século XX

 

Conferências do casino (tardias)

A produção de pensamento é um acto importante, principalmente se ocorrer de forma independente à proposição enunciada; e ainda mais se não perder mão do pressuposto íntimo: “a nossa vida é sempre (e apenas) um amontoado de factos muito trágicos e muito cómicos”. Facilita ler Thomas Bernhard antes de iniciar o processo de fabrico — qualquer coisa, de preferência tudo. Nenhum objectivo será alcançado.

O que a pele de leão deixava a descoberto

As nádegas de Héracles eram como um velho escudo de couro, enegrecidas pela longa exposição ao sol e pelo hálito ardente de Caco e do touro cretense. Quando Héracles capturou os dois escarninhos Cércopes, que vinham para o roubar e para lhe tirar o sono, disfarçados de importunos moscardos, depois de os ter obrigado a reassumir uma forma humana, pendurou-os pelos pés a uma trave e, como os seus pesos se equilibravam, colocou a trave sobre os seus ombros. A cabeça dos dois minúsculos patifes pendia à altura das nádegas possantes do herói, que a pele de leão deixava a descoberto. Então os Cércopes recordaram-se das palavras pressagas de sua mãe: «Meus pequenos Cus Brancos, tende cuidado com o momento em que vos encontrardes com o Cu Negro». Os dois ladrões pendurados foram sacudidos pelo riso, enquanto as nádegas do herói continuavam a subir e a descer na sua marcha segura. Enquanto ia andando, o herói sentia atrás de si aquele riso sufocado. Sentia-se triste. Nem as suas vítimas o leva

Lama

Fomos ver O Grito , de Antonioni. O filme foi feito com personagens e lama. Tal como o desespero é uma expressão do pensamento e do corpo, a lama é uma mistura de água e terra. Não há nada verdadeiramente sólido nem apenas líquido no filme. As personagens escorregam pela tela. Ou melhor, deixam-se escorregar. Como se escorregar fosse a sua condição. Leio na folha de sala que, na época em que realizou o filme, Antonioni «atravessava uma grave crise de depressão».

Observações avulsas sobre a boavista #35

Quando passo pelos miúdos que trabalham na Euronext, sinto-me como uma mineira que vai perder o emprego em breve por obsolescência. Mas não como no filme do Ford; uma mineira contemporânea que está pronta a pôr em prática — de viés, sempre de viés — o conceito chinês de tang ping (bolas, uma coisa tão importante e não tem página em português na Wikipédia).

Observações avulsas sobre a boavista #34

Ai Weiwei até pode não ser um artista notável, mas é um provocador bastante activo. A imagem de “Entrelaçar” (ele nu entre melancias, ananases, bananas, tomates e outros frutos), que está nas bandeirolas à entrada da Marechal, perturba a compostura burguesa da zona e isso é sempre digno de apreço.

Influenciadores do século XX

Juízos à posteriori

Uma das vantagens de trabalhar em casa é poder estar sempre descalça. É difícil incluir esse direito na luta dos trabalhadores por condições laborais mais justas. A única hipótese era encarregar Cossery de escrever as exigências. — Sim, ele seria capaz de corroer o próprio conceito de trabalho (alegria extrema).

Selfie II

Quando renovei o cartão de cidadão, a fotografia (que já era má) transformou-se num borrão negro — assusto-me sempre que a vejo. Pelo contrário, a fotografia da carta de condução é muito divertida, pareço alguém (distante) que já fez parte de uma banda (punk progressista?) e agora come cenouras. Nunca pensei que o sistema burocrático do estado pudesse alcançar revelações deste tipo.