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Uma história de sentido ainda oculto

Uma das coisas bestiais dos mortos é que aparecem de imprevisto. O meu fim-de-semana foi inteiramente assombrado/iluminado por Cesariny. No sábado, Pedro Costa explicou que o título do filme sobre Danièle Huillet e Jean-Marie Straub começou com a longa cena do sorriso quântico de Silvestro, passou moto-contínuo para o segundo plano de Von heute auf morgen , e daí para o grafito no muro: Wo liegt euer Lächeln begraben ?! Mas a tradução literal para português tinha um ritmo pesado, então o Pedro pediu a alguém para pedir ao Cesariny um golpe de asa . E o jovem mágico das mãos de ouro decidiu muito depressa ( como se fosse de moto ) cortar uma palavra: Onde jaz o teu sorriso escondido ? Só isso. Outra vez a tal redução que intensifica, a elipse que ilumina, o suspiro que se transforma num romance. No domingo, na A3 a caminho de Famalicão, vi um cartaz verde com o nome de Cesariny. Tinha mais palavras escritas mas só li Cesariny, ali sobranceiro à auto-estrada, no meio das árvore

Coisas escondidas

Uma vez que se tratou de uma encomenda, Onde jaz o teu sorriso?  não devia ser o filme mais indicado para descobrir Pedro Costa. É certo que ele definiu que a melhor forma — a única, aliás — de filmar Danièle Huillet e Jean-Marie Straub era a trabalhar; encontrou uma porta, uma janela e os sítios justos para pôr a câmara; e manteve-se extremamente atento e discreto. Enfim, fez a tal redução que, no fundo, é uma concentração.  Mesmo assim, é assombroso que um filme deste tipo, com constrangimentos e que esteve tão perto de não ser realizado, consiga apanhar tão profundamente não só as características mais inteiras e humanas de Huillet e Straub, mas também o lado mais escondido de Pedro Costa.  «Se houver uma longa paciência, estará carregada do seu contrário, (...) estará carregada de ternura e violência», diz Straub.

Uma certa alegria enterrada

Uma das piores coisas que podem fazer aos filmes de Huillet e Straub é cortar-lhes o diálogo, apresentá-los como obras cinematográficas desgarradas ou, pior ainda, como  objectos artísticos . Esse isolamento não é mais do que um caminho de redução, esquecimento e morte. Pela minha parte, faço tudo o que posso para os aproximar do ar livre, dos outros, dos meus pequenos gestos diários (ajudam-me tanto a ver a ouvir e a descobrir no fundo de tudo uma certa  alegria   enterrada ). No sábado levei Karl Rossmann ao Nimas para falar de O sangue .  Amanhã, levo o método de Trop tôt, trop tard para encostar a D’est,  de Chantal Akerman .

All these are dangerous

Na minha vida, os filmes de Pedro Costa estão ligados a acidentes. On suicide  é tão tremendo que até tenho medo do que possa acontecer. In such a country and at such a time There should be no melancholy evenings. Even high bridges over the rivers And the hours between the night and morning And the long long wintertime. All these are dangerous. For in view of all the misery People just throw their unbearable lives away.
Apesar de não saber nada do filme, desconfio que o sítio apropriado para ver As Filhas do Fogo é o teatro de marionetas de Awaji, do livro de Tanizaki.

Wild thing,

Paulo Nozolino, Pedro Costa e Rui Chafes no Centro Pompidou em 2022 parece o anúncio de um concerto. Precisavam de uma vocalista. Talvez a Flannery O’Connor — vestida de couro preto.

Ferro-velho

Esta noite sonhei que fui ao cinema ver um filme de Pedro Costa. Como é habitual nos sonhos, era tudo pouco credível e montado às três pancadas: cheguei atrasada à sessão, sentei-me na última fila, a sala parecia um armazém abandonado (influência de Desnos?) com sofás desconchavados em vez de cadeiras, discuti com um tipo qualquer já não sei porquê.  Só me lembro vagamente de um ou dois planos do filme (por precaução, o sonho eclipsou o resto), mas pela quantidade de luz aquilo não parecia nada um trabalho de Pedro Costa. A única coisa real — quer dizer: que transmite alguma linha de pensamento material — aconteceu no fim. Quando dei por mim estava a conversar com Pedro Costa; não dissemos nada sobre o filme nem sobre cinema, falámos sobre ferro-velho.

Los Angeles

As notícias sobre a candidatura de Vitalina Varela  a Melhor Filme Internacional nos Prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas são inexactas. Falam em corrida aos Oscars quando os filmes de Pedro Costa seguem sempre uma marcha lenta e pesada. Nada dizem sobre a capacidade de Vitalina Varela transformar a má sorte de chegar tarde numa característica de força e espanto. E deixam para o último parágrafo a data da cerimónia: 25 de abril de 2021.

É dia

(Três semanas depois) As fotografias que acompanham o texto da Joana Gorjão Henriques no ípsilon foram muito bem escolhidas. Richard Dumas apanhou Pedro Costa a uma certa distância, de corpo inteiro, quase de perfil, entre uma porta e uma janela. Parece uma fotografia de trabalho — não, é mais do que isso, é um documento como os retratos de August Sander (um novo sentido para Die letzten Menschen ). Para além da fotografia antiga que aparece no filme (dezassete anos, vestida de noiva, sozinha porque casou por procuração, com os olhos quase cerrados), Vitalina surge duas vezes. A primeira fotografia foi tirada por Pedro Costa e ocupa cinco colunas. Há mais luz, mas a forma de enquadrar é semelhante à do filme. Vitalina encosta a cabeça a uma portada; o olhar dela é muito ambíguo, continua preso não se sabe a quê (é sobre isto que não sabemos que Pedro Costa constrói os filmes) — a imagem tem qualquer coisa de naufrágio. Na página sete, na fotografia a preto e branco de Marta M

Tem outro nome

A influência de Ozu nos filmes de Pedro Costa não é só cinematográfica. Há o plano da chuva a cair nas telhas (Griffith  remix ). Os objectos vulgares filmados com a gravidade do ouro, incenso e mirra. As relações entre pais e filhos, reais ou inventadas. O modo como os corpos se movimentam nos quartos. Todas essas disposições unem os dois cineastas desde Vanda. Com o tempo, porém, apercebo-me que a ligação a Ozu é mais íntima, é antes do que se vê (também no cinema, nem tudo passa pelos olhos). Está relacionada, talvez, com o hábito japonês de descalçar os sapatos à porta? Não é só Vitalina descendo as escadas do avião com os pés nus, não é só neste filme. À semelhança das personagens discretas de Ozu, Pedro Costa entra sempre descalço na casa de cada um. Isso não se aprende numa escola de cinema, nem sequer no confronto com a matéria cinematográfica. Tem outro nome.

Não haverá nunca uma porta. Já estás dentro.

A arquitectura de “Vitalina Varela” é sem arquitectos; oscila entra Jorge Luis Borges e brutalismo orgânico (ver edifício da igreja).

Nem te espera no negro crepúsculo uma fera

Antestreia de "Vitalina Varela" de Pedro Costa, com a presença do realizador e seguida de debate com o público, moderado por Daniel Ribas. Hoje, às 19:00, no cinema Trindade.

É veneno!

Os filmes do Pedro Costa dão luta, podemos andar dias, meses, anos, a remoer em certos planos ou até mesmo em pormenores; uma palavra gritada, uma cruz que se apanha do chão. É tudo muito lúgubre, muito rico, muito condensado, muito misterioso. Trabalhamos sobre possibilidades ambíguas. Tentamos construir hipóteses de caminho. Com sorte, descobrimos que o céu é debaixo da terra. Quando Vitalina sobe ao telhado, lembra as mulheres dos filmes Ford — Maureen O’Hara com os cabelos e têmpera do fogo. Essa é a primeira impressão. O reconhecimento de uma ligação dá algum consolo, mas depressa se esvai a segurança. O que o plano tem de vigoroso não é cinéfilo nem alivia. É no sentido contrário, por isso é preciso continuar a procurar mais fundo a origem da inquietação. Talvez a tensão extraordinária dessa imagem venha do método de trabalho, do modo como a câmara responde a Vitalina. Como se todas as questões técnicas — ângulo, enquadramento, luz, sombra, vento — representassem o mesmo des

É de ferro teu destino

Vitalina Varela, 55 anos, cabo-verdiana, chega a Portugal três dias depois do funeral do marido. Há mais de 25 anos que Vitalina esperava o seu bilhete de avião.

Revelação

Era uma da tarde quando saí da sessão clandestina de Vitalina Varela em enorme sobressalto. Senti o sol, o calor e os turistas como uma afronta. Refugiei-me na Igreja de São Roque. As revelações também acontecem aos ateus: sentada e de olhos fechados, percebi os verdadeiros perigos que os filmes de Pedro Costa enfrentam: o amor apostólico, a estetização danosa.
“uma força da natureza, do passado e do presente e também do nosso futuro” Nas fotografias divulgadas pelo Festival de Locarno , Pedro Costa e Vitalina Varela simbolizam mais os leopardos do que as estatuetas.
A água corre funda o homem não lhe chega Talvez a sensação mais forte e duradoura seja a estranheza: não se entra em "Cavalo Dinheiro" com passos conhecidos, neste filme tudo é tensão e distância, tudo é o contrário da revelação — uma impressão que cresce na sombra, excita e assusta, um arrepio. A água corre funda. Talvez isso venha da natureza dual de "Cavalo Dinheiro", aqui já não há um autor no sentido reverencial do termo. O filme é tanto de Pedro Costa como de Ventura, assistimos ao culminar da aventura arqueológica que começou em "A Casa de Lava": a análise dos vestígios materiais, mas também coisas tão abstractas como as manchas de humidade numa parede. Pedro Costa executa um trabalho intenso e meticuloso (verdadeiro ofício): a colocação exacta e gentil da câmara; o tempo dilatado e justo; as paredes portas e janelas assinalando um espaço real e perturbado (como se o real tivesse pernas e braços); um som que oprime (nos quartos) e liberta (o