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‎مشق شب

Logo no início, quando filma os miúdos na rua a caminho da escola, Kiarostami diz a alguém que meteu conversa que o que está a fazer não é bem um filme, é mais um estudo ou uma pesquisa.  Trabalhos de Casa não segue as convenções, é verdade, mas é cinema — totalmente . Kiarostami começa por nos mostrar as técnicas básicas do ofício: iluminação, colocação da câmara, montagem campo-contracampo ( ternamente ). É na cena do pátio, porém, que nos damos conta da força do seu olhar cinematográfico: os rapazinhos são obrigados a entoar cânticos religiosos, mas querem é brincar e aquele ritual transforma-se numa gritaria; a determinada altura, Kiarostami corta o som e então, no silêncio forçado, percebemos o que se passa naquelas escolas ( tragicamente ).

A Árvore

Aconteceu há mais de dez anos. Estávamos em Castelo Branco à procura do caminho para Belgais. Perguntámos num café à beira da estrada. O dono disse que era fácil: — Seguem em frente, vão encontrar uma árvore , viram à direita. Metemo-nos no carro. Havia muitas árvores a rodear a estrada. Continuamos a andar. De repente, reconhecemos a árvore . Sempre pensei que isto era uma cena perdida de um filme de Kiarostami que me tinha calhado em sorte. Afinal, também pode ser uma parábola apócrifa de Wittgenstein (reconhecemos a árvore porque estava em itálico).

Final aberto

A confeitaria ao lado de minha casa onde compro pão todas as manhãs, fechou. É uma daquelas confeitarias que estão abertas aos domingos e feriados, incluindo os dias de Natal e Ano Novo. É a primeira vez, em dez anos, que vejo aquela porta fechada à luz do dia. Não há um aviso, uma explicação. O que terá acontecido? Parece um filme com final aberto. Talvez um Kiarostami.

Algures a meio

Em O Sabor da Cereja , de Kiarostami, há um personagem que procura desesperadamente alguém que o ajude a morrer, numa espécie de suicídio assistido. Em 3 Rostos , de Panahi, há um personagem que procura desesperadamente alguém que o ajude a viver, simulando para isso um suicídio. Ambos os caminhos são estreitos. Só passa um personagem de cada vez. Um desce a encosta escarpada, o outro sobe. E algures a meio, no coração misterioso do mundo, o destino dos dois funde-se, como no conto do Virgilio Piñera.

Close-up

Kiarostami filma Dante

Fomos rever, após tantos anos, O Sabor da Cereja . Um aspecto que agora me parece estranhamente óbvio é a relação com A Divina Comédia , de Dante, e em particular com a primeira parte,  Inferno . É impossível não comparar a topografia de O Sabor da Cereja com os negros vórtices dos nove círculos infernais. Os longos planos de Badii percorrendo os estradões sinuosos, secos e empoeirados dos subúrbios miseráveis de Teerão, lembram a viagem de Dante pelo Inferno. Os mesmos personagens perdidos e condenados a uma vida de eterno martírio, as máquinas a revolverem constantemente a terra como demónios cegos e obstinados, os caminhos intermináveis abertos sobre abismos, exactamente como no cone invertido do inferno dantesco. O próprio projecto de suicídio de Badii, que inclui um buraco aberto junto à base de uma cerejeira e a ajuda de alguém que o cubra com “vinte pás de terra”, remete para Dante. No primeiro grande diálogo do filme, Badii tenta convencer um jovem recruta a ajudá-lo, dizendo-