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Prova de pertença

(...) o ladino é uma língua interrompida na Turquia. É uma língua não ensinada na escola, que ficou circunscrita ao doméstico e muito às mulheres. Com a aprendizagem obrigatória da língua turca pelos judeus, na primeira metade do século XX, o ladino foi desaparecendo. (...) O ladino é uma língua que tem nela desenhado o mapa dos sítios por onde estes judeus passaram nos seus sucessivos exílios. “Mistura espanhol, português, italiano, grego, turco. É uma língua muito humanista”, diz o vice-presidente da comunidade de judeus na Turquia, Moris Levi. “Para nós, esta língua representa psicologicamente a ideia de casa.” 

Obrigada, senhor Cohen.

“Bela do Senhor” começa nas últimas páginas do “Trincapregos” aliás, “Trincapregos” já vinha de “Solal” assim como “Bela do Senhor” se prolonga em “Os Valorosos”. É uma tetralogia que partilha sítios, personagens, ideias e frases; ler os quatro de seguida é como apanhar uma grande bebedeira. A questão principal do livro talvez seja, de facto, a relação amorosa entre Ariane Cassandra Corisande d’ Auble, por casamento Daume, e Solal dos Solal. Mas reduzir “Bela do Senhor” a uma história de paixão é preguiça e muito errado. Trata-se de uma obra compósita, dinâmica e oh, maravilha! extremamente literária onde as palavras galopam e sucumbem (agradecimentos também aos tradutores que aguentam a agitação constante  e, de novo, ao editor corajoso ). De forma impressionante, Albert Cohen retrata o crescimento do nazismo numa Europa complacente, ataca a burocracia e as rotinas sem sentido e sem responsabilidade da Sociedade das Nações, critica os homens lambe-botas e ambiciosos como Adrie...

no fim de contas, e no mais profundo,

“Reflexões sobre Bach ou sobre Kafka são sinais indicadores dessa pertença. De onde as conversas elevadas dos começos de um amor. Ele disse que gostava de Kafka. Então, a idiota fica extasiada. Ela crê que é por ele ser intelectualmente bem. Na realidade, é porque ele está socialmente bem. Falar de Kafka, de Proust, de Bach, é a mesma coisa que as boas maneiras à mesa, que partir o pão com a mão e não com a faca, que comer com a boca fechada. Honestidade, lealdade, generosidade, amor da natureza são também sinais de pertença social. Os privilegiados têm massa: porque não seriam eles honestos ou generosos? São protegidos desde o berço até à morte, a sociedade é suave com eles: porque haveriam de ser dissimulados ou mentirosos? Quanto ao amor pela natureza, ele não abunda nos bairros da lata. Para isso é preciso ter rendimentos. E a distinção, o que é senão as maneiras e o vocabulário em uso na classe dos poderosos? Se eu digo fulano e a sua dama, sou vulgar. Esta expressão, distinta há ...

Adagas, fitas, rosas e espadas.

Tringapregos dá nome ao livro e compreende-se porquê — é uma personagem de alto gabarito. Grandioso. Tem tudo em demasia e tudo em falta. Porém, apesar do paleio imponente, das alcunhas cómicas e dos trajes ridículos (ah, a maravilha de imaginá-los), Trincapregos é apenas um dos “Valorosos” — um grupo de judeus da ilha grega de Cefalónia, os cinco primos Solal, homens desenfreados, sentimentalões, farsolas, pícaros, chanfrados e muito mais (...) judeus do sol e do bom humor eloquente e cavalheiresco, nós judeus do Mar e das maneiras elegantes, descendentes dos judeus de Espanha a cavalo, que andaram vestidos de seda e usaram adagas, fitas, rosas e espadas (...). O livro cresce em redor das peripécias destas personagens extravagantes. Através de aventuras calhadas para o torto, Albert Cohen capta o lado mais solar da existência — uma vida cheia de cores, de cheiros, de comida, de corpo, efervescente, zombeteira, imperfeita, desgraçada, de excesso, mais dionisíaca que o próprio Dionísi...

Uma assustadora retenção

— Tens razão, reconheceu Trincapregos fazendo estalar as mãos imensa. Se eu não mentisse, que me restaria? Mas os romancistas mentem mais fundo do que eu. Todos eles fazem maus livros, que fazem crer às donzelas que o amor é um viveiro do paraíso e às mulheres que o casamento é um esgoto! Mentirosos, verdadeiros mentirosos e envenenadores, todos esses distintos escritores que mostram as suas poéticas heroínas bebendo e comendo de uma maneira encantadora e trincando com um ar obstinado algumas grainhas de uva. Muito bem, meus senhores, permitam-me que me espante de que nunca nos falem das consequências dessas trincadelas obstinadas. Sim, meus senhores, desde Homero até Tolstoi, os jovens heróis e heroínas sofrem, sobretudo quando são belos, de uma assustadora retenção. Não podem mais. Por exemplo, há mais de trinta anos que uma tal menina Natacha Rostova anda a beber sem que o autor a autorize a retirar-se nem por um instante! Todos os amantes e todas as amantes de Shakespeare, de Racin...

Debaixo do fogão

(...) A seguir Saltiel falou da perspicácia de um tal professor Freud. — Há alguém que roubou e que nega. Bem, levam-no a este médico professor, que olha para ele e diz: «A carteira está debaixo do fogão!» Trincapregos, de Albert Cohen, tradução de Pedro Tamen, Contexto, outubro de 1999, páginas 108 e 109.

Uma pessoa instruída

E logo a seguir disse aos seus correligionários que aquela pequena nuvem, lá em cima, lhe recordava o ilustre dramaturgo inglês Shakespeare. Depois apontou para uma poça de água e afirmou com desembaraço aos velhos pasmados que ela “continha o ambiente de certos romances de Georges Sand”. — Instruído, baliu o centenário, sacudindo debilmente a sua mão enrugada. — Deus to guarde, ó Abraão, disseram os outros, maravilhados. E Jónatas continuou a brilhar, a mostrar como estava armado para a vida com os dons do espírito, para a imensa glória do seu gordo e inchado pai, que o olhava com frágil meiguice de apaixonada, e sorria nesciamente, enfeitiçado por aquele quase-Messias que pusera neste mundo. Trincapregos, de Albert Cohen, tradução de Pedro Tamen, Contexto, outubro de 1999, página 50.

Particular orgulho

Mas o filho, João Brito, também editor, diz que teve um particular orgulho em ter publicado o monumental “Bela do Senhor”, de Albert Cohen, com tradução de António Pescada, e o desgosto de o ver fracassar. Há livros que são como ervas espontâneas, existem por si próprios, são necessários e é isso que importa, encontram sempre uma brecha, uma saída, o êxito. A “Bela do Senhor” não fracassou nem poderá nunca fracassar. Há quanto tempo foi? 20, 25 anos? Estava de férias em São Pedro de Moel e andava a ler “Bela do Senhor” (antes ou depois do “Trincapregos”?) Nessa altura nem sequer tinha carro, levei-o na mochila, na camioneta, nos braços, para a praia e para a esplanada de um café velho junto às rochas, sobranceiro ao areal. O livro dava nas vistas pela espessura (900 páginas) e pela capa amarela. Lembro-me de uma rapariga dizer ao namorado, alto e com enjoo, “Ei, já viste aquele calhamaço!?” Ela não fazia ideia da minha monumental sorte.