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Um turista mexeu

Notícia no jornal: «O relógio da Torre dos Clérigos, no Porto, está atrasado 40 minutos desde segunda-feira, após um turista ter mexido num dos seus veios mecânicos.»  De repente, um turista trapalhão lança toda a cidade num salto mirabolante pelo abismo do tempo. Um pequeno gesto involuntário e o Porto passa a ser o único lugar do mundo que avança segundo uma escala temporal diferente. 40 minutos, 40 horas, quem sabe 40 anos fora do tempo. Ou simplesmente — outra hipótese — o turista não resistiu ao apelo erótico do veio mecânico do relógio dos Clérigos e tocou-lhe. Com a ponta dos dedos, com a mão toda, talvez.

Intervalo espaço-tempo

 
Esta tarde, depois de uma pequena sesta, veio-me à cabeça o nome de Dita Parlo , uma estrela dos anos trinta. Como sou velho! exclamei. Há... quarenta e cinco anos, adorava cinema. Esta atriz, quem ainda se lembra dela? É este tipo de detalhe, muito mais do que uma reflexão filosófica, que nos revela a aterradora realidade e irrealidade do tempo.  Emil Cioran, Cadernos, 30 de março de 1972.

A mão de Alexandre

A aproximação da morte faz com que as grandezas terrenas nos inspirem comiseração – até o ambicioso ela desengana. Dizem que, sentindo-se morrer, Alexandre, que em vida a si mesmo oferecia hecatombes de povos inteiros, que abalava com hostes de soldados para dar caça aos ceptros e às coroas, ordenou que o sepultassem com a mão fora da cova, a fim de que cada pessoa ao passar pudesse, ao ver aquela mão vazia, calcular o que lhe restava das suas conquistas e o que se leva para o túmulo dos tesouros deste mundo. Lição perdida! Nadir e Gengis Khan não passaram por lá. Um único conquistador, aquele que troça de todos os outros, apenas o Tempo pôde vê-la e não a respeitou. Ao ceifar Babel e outras ervas daninhas do género, pisou a mão de Alexandre. Jules Lefèvre-Deumier, Embriagai-vos | Antologia de poemas em prosa de autores franceses . Tradução de Regina Guimarães. Em co-edição até 11 de Outubro. Para ser co-editor é só seguir o link.

Terra

Três dias na casa onde nasceu e cresceu o meu pai. Uma velha casa de camponeses pobres, enterrada no termo de um caminho estreito. Nas cortes onde estavam os animais é agora a cozinha. E onde era a cozinha são hoje os quartos. De resto, tudo continua igual. O meu pai parece nunca ter saído daqui. Sessenta anos fora: poeira e vento que passou a correr. A «aldeia», a «terra». Como um sinal na pele que se não consegue tirar. Por mais que olhe para este mundo antigo, nunca terei olhos para o ver.

Presente perpétuo

Existe desde 1996 uma «Fundação do longo agora» (The Long Now Foundation), cujos promotores são personalidades conhecidas da contra-cultura americana e do high-tech . O seu projecto-farol, que não passa ainda de um work in progress , é um relógio gigantesco concebido para durar dez mil anos. O ponteiro maior avançará uma vez por ano, o pequeno uma vez de cem em cem anos e o cuco cantará a cada milénio... Prevê-se instalá-lo no Texas, na propriedade de Jeff Bezos, o patrão da Amazon e um dos financiadores do projecto, e torná-la num local de peregrinação, onde cada um será convidado a meditar a longo prazo. Que uma tal iniciativa parta daqueles que são os principais arautos e beneficiários do presentismo tecnológico é também um sinal. Será que têm remorsos e procuram redimir-se construindo um santuário a Chronos, o mesmo deus que ajudaram a destituir, com vista a reanimar o seu culto? Ou para se assegurarem de que está bem morto? François Hartog.

- E agora?

Lembro-me daquele plano de um dos filmes mais misteriosos de Herzog. O carro a rodar em círculos, sem parar e sem ninguém ao volante. Como um estranho relógio a marcar as horas de um outro mundo. De um outro mundo ou deste mundo?