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Episódio psicótico breve

Não sei o que aconteceu, perdi-me na sessão e vi — com extrema definição — tantas ligações em Ana .  Tati no número do circo (duas vezes); Dreyer quando Ana está junto à cama de Alexandre doente e o pároco de Ambricourt na sua deambulação final; Paradjanov nos tapetes, nos pimentos (contrabandeados de Espanha), e na cena dos pássaros; Staroye i Novoye nos campos;  Las Hurdes em certas cerimónias; John Ford na entrega dos ovos junto à cancela e no plano de Octávio encostado ao umbral da porta da igreja de Algosinho e, já fora, qualquer coisa de Straub e Huillet nos homens a comer morangos; Renoir na cena do banho no riacho — e de tal forma que julguei que os gansos também eram de Le Déjeuner sur l'Herbe ...  (Peregrinação Exemplar) O filme de António Reis e Margarida Cordeiro também é uma aula (ou uma história?) do cinema. Devia ser projectado regularmente por todo o país e nós íamos pelos campos a Bragança ou a Moura ou a Aljustrel ou a onde calhasse só para o ver ( juste pou

A hipótese da falha tectónica

Talvez a grande força do cinema não esteja em saber contar uma história, como tantos reinvindicam, mas em conseguir instaurar uma fractura estrutural catastrófica. Afastar-se do território manso das narrativas e caminhar para zonas mais insólitas nem é tanto uma coisa do futuro mas de um passado muito antigo e esquecido. (E é por isso que alguns filmes parecem obras de bruxas.)
Já não vale a pena fazermos o cinema da esperança socialista. Da esperança capitalista. Já não vale a pena fazermos o cinema de uma justiça por vir, social, fiscal ou outra. O cinema do trabalho. Do mérito. O cinema das mulheres. Dos jovens. Dos portugueses. Dos malianos. Dos intelectuais. Dos senegaleses.  Já não vale a pena fazermos o cinema do medo. Da revolução. Da ditadura do proletariado. Da liberdade. Dos vossos fantasmas. Do amor. Já não vale a pena.  Já não vale a pena fazermos o cinema do cinema.  Já em nada acreditamos. Acreditamos. Que alegria: acreditamos: em nada.  Já em nada acreditamos. Já não vale a pena fazermos o vosso cinema. Já não vale a pena. Temos de fazer o cinema do conhecimento disso: de não valer a pena.  Que o cinema vá para o inferno, é o único cinema.  Que o mundo vá para o inferno, que vá para o inferno, é a única política. O Camião.  Textos de Apresentação. Primeiro Projecto.  Marguerite Duras (tradução revista).

Aki Kaurismäki e os cães

1. Chateado porque não aparece no diagrama do cinema transcendental de Paul Schrader (em contrapartida Andy Warhol está no eixo horizontal à direita e à esquerda).  2. Prepara-se para abandonar o livro e ler aquela revista (?) sobre a Bica Portuguesa.  Os cães, vê-se pelo olhar, são verdadeiros modelos bressonianos. Ela chama-se Alma (diz na plaquinha).

Os assalariados vão ao cinema

Ontem depois da sessão de Kommunisten , fui levar o Rui a casa. Quando estávamos a chegar a Antero de Quental, comentámos que antes do cinema tínhamos arrumado a casa e feito sopa: o jantar já estava guiado. E aí percebi claramente que Jean-Marie Straub fez o filme para nós, pobres assalariados — para podermos lavar os olhos no pouco tempo que nos sobra.

O mar a agitar-se na tela

De repente, lembro-me do primeiro filme que vi (em 1919?) em Sibiu, no cinema «Appollo». Se não me engano, o filme chamava-se A Dama do Mar ( Doamna Mării ) (??) Recordo-me da perturbação que senti ao ver o mar a agitar-se na tela. Essa sensação, nunca a devia ter esquecido; e, no entanto, só me ocorreu hoje, quarenta e cinco anos depois! Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  (fevereiro de 1966)
Os cartazes de Cidade Rabat ao longo da linha do metro abrem uma brecha na realidade. Às vezes, o cinema começa antes do cinema.

Selfie X

Quando começo a escrever sobre filmes, pareço polícia ou detective. Desconfio de tudo (eu incluída, pois claro); tento desvendar um crime ou, pelo menos, o mistério.

Utopia

(...) Apesar de não ser considerado um dissidente, Boris Barnet situava-se claramente fora do cinema soviético instituído. Os seus filmes eram demasiado inclassificáveis e, digamos, de uma natureza mais dionisíaca do que real socialista. Foi o que aconteceu com À Beira do Mar Azul , realizado em 1936. Ninguém compreendeu o filme, atacaram o argumento simples, fútil, emocional, uma realização demasiado feérica e pouco credível. Mas de que serve uma história num filme, se todo ele é ritmo? De que serve uma imagem frouxa da realidade, se temos à nossa frente um confronto íntimo com os homens, os seus sentimentos, a sua gravidade e a sua leveza, o maravilhoso desequilíbrio humano? A beleza e graça que passam pelos corpos e pelos planos (a «alegria física dos encontros», de que fala Bernard Eisenschitz ), deixou indiferente a crítica. E, no entanto, agora à distância, percebemos bem que esta pequena aventura numa ilha perdida ao Sul do Cáspio, em que os heróis afogam-se e renascem, chegam e

Número zero

O livro é mais dos flops do que meu : eles é que tiveram, têm, a perseverança (uma espécie de fé?); o trabalho de desbastar os textos e dar-lhes um aspecto belo entre monólito e túnel (ainda por cima, o Luís caprichou num “C” que parece quase um zero — e o que eu gosto da palavra quase e do número zero ).  O último texto foi escrito há oito anos, mas parece-me que foi há oitenta tão distante me encontro dessa c. que se entusiasmava mais do que necessário com os filmes. É uma espécie de livro póstumo, mas também é verdade, como me explicou a Alexandra , que todos os livros são póstumos. Voilá, c' est fini — o negro fica-lhe bem. 

Masterclass de storytelling

Bárbara passou outra vez na televisão. Gravei. Vale a pena rever os filmes de Christian Petzold; o olhar vai-se desviando da história e encontramos imagens que pouco nos dizem sobre o que está a acontecer, mas que ficam a ressoar na cabeça para sempre. Por exemplo, as cenas na banheira: o pneu da bicicleta e o dinheiro embrulhado à prova de água. Ou no hotel, as raparigas com as pernas ao alto. Quando se deita fora o storytelling , o que fica é cinema. Se não me engano, no Party , de Manoel de Oliveira, Michel Piccoli diz qualquer coisa do género?

Beringelas, músculos, comboios.

Para além dos filmes, Christian Petzold é bom, mesmo muito bom, nas entrevistas. Quando fala sobre cinema, claro: I have a working structure that I’ve used since making The State I Am In (2000). The actors all come to set at 8 a.m. without any makeup, just their costumes. And the only people who are there are them, me, and someone with coffee. We start to rehearse what we want to accomplish on this day, and it takes us three or four hours to find the choreography of it. It takes some time, and the producers want to commit suicide because nothing happens. But we find the choreography, and then we get the cinematographer and the sound and lighting departments, and we show them what we’ve done. When the actors go into makeup, the cinematographer, the editor, and I talk about how we can film this, and it doesn’t take more than a half-hour to make a storyboard. We write it down and then Hans [Fromm] does the lighting and the actors come back. We do one take, and then at four o’clock we c

Filmes

Destino engraçado, o dos filmes. Não ficam na estante, como os livros; nem na parede, como os quadros; nem nos discos, como a música. Ficam na lembrança, apenas. Será por isso, talvez, que nos deixam, alguns, tanta saudade. É que marcam melhor certas fases da vida, certos sentimentos, certas lutas; e se os revemos assim, no muro de um cineminha de subúrbio, eles nos são restituídos de um modo particularmente intenso. Deu-se tantas vezes isso comigo. Nunca me pude esquecer de um cartaz velho da Dama das camélias , visto, uma madrugada, numa cidadezinha de Minas. Eu estava no trem e não foi senão um momento. Mas deu para me emocionar o resto da viagem e me perturbar umas férias inteiras, lembrando coisas boas...  Vinicius de Moraes, Cinema .

Três gaivotas

Gosto de me sentar no degrau da varanda a observar as crias de gaivota que nasceram e vivem no telhado em frente à minha casa. Não se parece nada com os documentários da televisão. Um plano de conjunto, fixo, ligeiramente inclinado, com muitos tempos mortos. Não há trama nem música nem comentários sentimentais. É quase cinema.

Celeste Ng x Rachel Kushner

Portei-me bem e não abandonei o livro. No fim, continuo a achar que “Pequenos fogos em todo o lado” podia ser a consequência satisfatória de um curso de escrita criativa e nada mais do que isso. Nota-se demasiado o esforço de composição, quer da trama quer das personagens e, apesar do título promissor, os fogos são tão pequenos que se apagam com um sopro, não é preciso chamar os bombeiros, nem fazem tábua rasa de nada. A aflição do livro é meramente ilustrativa, como se costuma dizer na publicidade. Cheia de ligeireza, apetece-me classificar Celeste Ng como uma promissora pré-argumentista — e é um pau. Claro que a minha opinião é mais severa porque li há uns meses “Os lança-chamas”, de Rachel Kushner, acabei por estabelecer um paralelo entre os dois livros e Kushner ganhou o round. Durante a leitura d’ “Os lança-chamas” fui aderindo a tudo: às personagens, à montagem, à variedade de histórias sobrepostas, ao fulgor, ao ritmo polifónico, à mistura entre documentário e ficção. Carreg