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Mensagens

A mostrar mensagens de maio, 2017

Ideia para uma investigação

Estudar as semelhanças entre a repórter Alice Schalek, personagem de Karl Kraus, e Madame Valiche, personagem de Jean Cocteau. Madame Valiche, participante secundária da louca jornada de  Tomás, o Impostor , parece uma cópia menos sofisticada da incontornável Schalek, de Os últimos dias da humanidade .  Ou Alice Schalek é uma versão mais complexa de Madame Valiche. Onde acaba uma e começa a outra? Alice Schalek, como outras personagens de Karl Kraus, é inspirada numa figura real . Madame Valiche, por sua vez, não se inspira em nenhuma personalidade conhecida, ou seja, é inspirada em muitas. Kraus começou a escrever a sua obra-prima em 1915 e publicou-a em livro em 1922. Cocteau lançou Tomás, o Impostor , em 1923. O primeiro parágrafo de Tomás, o Impostor parece o resumo possível de Os últimos dias da humanidade :  A guerra principiou na maior desordem. Esta desordem nunca cessou, do princípio ao fim. Uma guerra breve teria podido amadurecer e, por assim dizer, cair da árvor

História natural

Por estas fontes somos informados de que o abutre era o símbolo da maternidade porque se julgava existirem apenas abutres fêmeas e nenhum macho nesta espécie de aves. (...) Mas como se daria então a fecundação dos abutres se só existiam fêmeas? Numa certa passagem de Horapollo é dada uma boa explicação: numa determinada altura do ano estas aves mantêm-se imóveis no ar, abrem a vagina e são fecundadas pelo vento. (...) O erudito e editor e comentador de Horapollo assinala a propósito do já citado texto: «De resto, os Pais da Igreja apoderaram-se avidamente desta lenda sobre os abutres, a fim de refutar, com este argumento retirado da história natural, aqueles que negavam o parto da Virgem; é por isso que, quase todos eles, fazem menção deste assunto.» (...) Se, segundo as melhores fontes da antiguidade, os abutres estavam reduzidos a deixar-se fecundar pelo vento, porque é que algo de semelhante não poderia também acontecer a uma mulher? Sigmund Freud, Uma recordação de infância de Le

Aquilo somos nós

“ Eu não sou o teu negro é uma peça importante para se perceber um pouco melhor o que raio se passa, o que raio ainda se passa, na América destes dias”, escreve Luís Miguel Oliveira, no Público de hoje . Na verdade, creio que é mais do que isso. O filme de Raoul Peck sobre James Baldwin ajuda a perceber o que raio se passa na nossa cabeça desde o princípio dos tempos. O que raio se passa na América, mas também na Europa, na Ásia, em qualquer parte do mundo. O que raio se passa connosco. Que raio de estranho poder é este que o nosso lado mais sombrio e sinistro exerce sobre nós. “O que Baldwin fez”, diz Raoul Peck, “foi colocar um espelho à nossa frente”. Imagino um espelho cheio de pó. Um pó acumulado durante anos, durante séculos. O que Raoul Peck faz, através do pensamento claro e simples de James Baldwin, é retirar esse pó, camada após camada, até conseguirmos ver a nossa imagem reflectida no espelho. E a imagem é horrível. Aquilo somos nós.

Shakespeare já lá tinha estado

Enquanto poeta em prosa do pós-shakespeariano, Freud navega na esteira de Shakespeare; e a ansiedade da influência não tem sofredor mais distinto do nosso tempo do que o fundador da psicanálise, que descobria sempre que Shakespeare já lá tinha estado antes dele, e muito frequentemente não conseguia aguentar o confronto com esta verdade humilhante. Harold Bloom, O cânone ocidental . Tradução de Manuel Frias Martins.

Pássaro fluido

Se Derrida compara o poema a um ouriço , João Cabral de Melo Neto designa-o por “pássaro fluido” . O ouriço, bicho que habita em buracos ou entre as sombras, sob ervas e ramos, e que ao mínimo sinal de perigo se enrola numa bola de espinhos, não podia estar mais distante de um pássaro, bicho com asas, veloz, esquivo e capaz de voar. E, no entanto, Derrida e Melo Neto não podiam estar mais próximos de um nome possível para o poema. Uma coisa viva parecida com outra e o seu contrário. Meio pássaro, meio ouriço. Como o mundo.

Homem parado a grande velocidade

Num dos quatro ecrãs , há um homem que segura um ramo de árvore em cada mão. O homem agita furiosamente os ramos. As mãos estão ocultas na sombra. O corpo permanece, tanto quanto possível, imóvel. Folhas e galhos batem-lhe nos cabelos, que parecem varridos por um vento terrível. Os olhos fixam-se num ponto longínquo, atrás da câmara. A expressão do personagem é de angústia, uma angústia absoluta. A luz é de um vermelho febril e sanguíneo. Tudo estremece num completo alvoroço. Está tudo em movimento. O homem parece deslocar-se a uma velocidade vertiginosa e, no entanto, está parado, preso no interior de qualquer coisa que não se vê, mas que adivinhamos, sem saber explicar.

O ouriço

Em Che cos’è la poesia? , Jacques Derrida compara o poema a um ouriço enrolado em bola, no meio de uma auto-estrada. “Desejaríamos pegá-lo nas mãos, conhecê-lo e compreendê-lo, guardá-lo para nós, junto de nós.” Salvar o ouriço é expormo-nos igualmente ao perigo. “Daí a profecia: traduz-me, vela-me, guarda-me um pouco mais, salva-te, deixemos a auto-estrada.” Mais à frente, Derrida escreve: “Não há poema sem acidente, não há poema que não se abra como uma ferida, mas que não abra ferida também.” De um acidente, podemos sair com vida ou sem ela. Mas, de uma maneira ou de outra, o impacto é inevitável e ficarão sempre marcas e cicatrizes.