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A mostrar mensagens com a etiqueta Manoel de Oliveira

Exercício de geometria

Traçar um arco que começa com A Caça , de Oliveira, e acaba com Adeus a Matiora , de Shepitko-Klimov. Primeiro, o homem da mão amputada a afundar-se no pântano e a gritar desesperadamente pela mão de um companheiro (ou será pela sua?). Depois, a cena final no barco, na qual Pinegin e Petrukha gritam por Matiora (ou será pela mãe?), que vai desaparecer sob as águas da barragem.

Masterclass de storytelling

Bárbara passou outra vez na televisão. Gravei. Vale a pena rever os filmes de Christian Petzold; o olhar vai-se desviando da história e encontramos imagens que pouco nos dizem sobre o que está a acontecer, mas que ficam a ressoar na cabeça para sempre. Por exemplo, as cenas na banheira: o pneu da bicicleta e o dinheiro embrulhado à prova de água. Ou no hotel, as raparigas com as pernas ao alto. Quando se deita fora o storytelling , o que fica é cinema. Se não me engano, no Party , de Manoel de Oliveira, Michel Piccoli diz qualquer coisa do género?

Coisas que saem ao escrever

(...) o Manoel confessou um dia ter ficado intrigado com a afirmação de Fanny — a alma é um vício; isso não deixava de o inquietar, e por mais voltas que desse, e perguntas que fizesse, não conseguia obter um significado plausível! Um dia, perguntou mesmo a minha Mãe o significado de tal afirmação, mas a resposta foi simplesmente: não sei, foi coisa que me saiu ao escrever!

Folha em branco

Numa entrevista ao Jornal de Notícias , Regina Guimarães diz que não sente a angústia da folha em branco. Escreve em qualquer parte e em qualquer circunstância. Sou mais como Alfreda, do Espelho Mágico : passo os dias à espera de um milagre que nunca acontece.

Mon Cas

Ando às voltas com Mon Cas , de Manoel de Oliveira. Em especial, a última parte do filme, que adapta o Livro de Jó . Tenho muitas perguntas. Em tempos, Oliveira explicou a escolha deste texto bíblico da seguinte forma: O substracto comum é o homem. É a humanidade. A existência do ser perante os homens e perante Deus. É a posição... a posição do homem, de um lado e de outro.  (...) E a figura de Job é como se fosse a figura da própria Humanidade, da humanidade pecadora, castigada por Deus e que tem que expiar o seu pecado. (Manoel de Oliveira - Cem Anos, p. 114.) A explicação não me satisfaz. Há qualquer coisa muito mais pessoal. Jó não será uma máscara de Manoel de Oliveira? As provações de Jó não serão uma representação dos seus filmes? A escolha do texto não será uma declaração de fé do cineasta em si próprio, no seu trabalho? Uma fé inabalável no cinema, no poder criador da arte? Uma fé à prova de todas as contrariedades? Depois disso, Jó viveu ainda cento e quarenta anos,

Je rentre à la maison

Na montra da loja de molduras da Rua Antero de Quental, descubro uma pequena reprodução de “The Singing Butler”. Detenho-me a olhar e sinto-me um Michel Piccoli de imitação, longe dos boulevards de Paris e com umas sapatilhas baratas.

A crónica não diz se ele disse ai!

Nada acrescento ao que dizem os cronistas. A crónica diz: ele perde a mão, cortam-lhe a outra mão, segura o estandarte com a boca. É capturado. A crónica não diz se ele disse ai!, se sofreu, se chorou. Não fornece anotação emocional. Então eu também não a ponho, porque não está lá. Todos os actos históricos no filme vêm das palavras dos cronistas. Manoel de Oliveira, a propósito de Non, ou a vã glória de mandar.

Deixar-se cair

O mais conhecido é o motivo a que Freud chamou Niederkommenlassen , "deixar[-se] cair", com todas as suas conotações de queda suicidária melancólica - uma pessoa que se agarra desesperadamente à mão de outra. Slavoj Žižek,  Lacrimae Rerum . Tradução de Luís Leitão. Manoel de Oliveira, A Caça , 1964.

Os vícios dos ricos

Manoel de Oliveira dizia muitas vezes que também os ricos têm alma. Lembro-me disso, não porque duvide do fundamento da existência, mas para equilibrar um pensamento menos polido de que me apercebo sempre que ando na linha 202: os ricos precisam de alguém que lhes limpe o cu.

Um Fausto

Dois homens, pai e filho, ambos velhos. Outrora, grandes glórias da ciência e da academia. O pai, de noventa anos, praticamente esquecido pela sociedade, o filho, de setenta, a caminho disso. O pai lamenta-se de não ter morrido antes de cair na implacável espiral de decadência provocada pela velhice. O filho ainda acredita que é capaz de lutar contra ela. O pai aconselha o filho a matar-se enquanto há tempo, enquanto se não transforma num “semimorto” e não começa dentro dele o processo de nascimento do “monstrozinho”. O filho ainda pode aspirar à imortalidade, diz o pai: só alguém que morre no momento certo, no auge da glória pública, pode viver para sempre. “Mata-te”, repete ele ao filho, apontando-lhe a bengala (mais simbólica do que concreta). O filho, por sua vez, diz sentir-se bem, “completamente vivo”, com ânimo para aproveitar a vida e a fama, e afastar o terror da decrepitude e decadência. O pai insiste para que o filho se suicide com uma ampola de cianeto. O filho, calma e pac