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A mostrar mensagens com a etiqueta Medeia

O saké tem um gosto amargo como um insecto

À primeira vista — quer dizer, enganadoramente — O  Gosto do Saké  ( Sanma no Aji ) é mais um filme japonês sobre o casamento, sobre as relações entre pais e filhos; pode-se até mesmo dizer que é uma espécie de compêndio ( monogatari ). Aceitemos a premissa.  A personagem principal chama-se Hirayama Shihei: viúvo, cinquenta e tal anos. Sabe-se que entrou para a Academia Naval Imperial Japonesa depois do liceu e foi oficial naval de carreira até 1945. Quando a guerra acabou e o Japão ficou de rastos, um amigo (talvez Kawai) arranjou-lhe emprego e ele conseguiu aguentar-se e vingar. Durante a acção do filme é director numa fábrica (faz parte da pequena burguesia urbana que vive mais ou menos desafogada e que Ozu gosta de filmar). Tem três filhos: Koichi, o mais velho, casou há pouco tempo e vive com a mulher num pequeno apartamento; Michiko e Kazuo ainda vivem com o pai. Mantém relações com alguns colegas do tempo do liceu com quem costuma comer, beber e jogar. Dois deles, ...

Campo e Contracampo

O auditório onde fomos apresentar  Medeia , de Jean Anouilh , fica no interior de um shopping no Cacém . Um daqueles centros comerciais encapsulados no tempo desde os anos 80. Na parte central, há uma espécie de "selva" com palmeiras e plantas exóticas, atravessado por um regato artificial onde vivem peixes de aquário com tamanhos monstruosos e dezenas de cágados e tartarugas. Foi aí que Miguel Gomes filmou alguns planos de Tabu : a sequência que marca a transição para a segunda parte do filme, “Paraíso”, a partir da qual se narra a história dos amantes Aurora e Gian-Luca Ventura. Ali parado, na esplanada onde se filmou a conversa entre o velho Gian-Luca, Pilar e Santa, percebe-se melhor a intenção de Miguel Gomes: tudo o que resta daquela grande história de amor, passada em tempos coloniais portugueses, é uma "selva" de plástico, dentro de um shopping no Cacém.

Uma estrada demasiado longa

AMA lança-se aos pés de Medeia Medeia, eu estou velha, eu não quero morrer! Segui-te, deixei tudo por ti. Mas a terra está ainda cheia de coisas boas (...). Esta versão de Medeia , da companhia Público Reservado, é pontuada por várias cortinas, reais ou metafóricas, que abrem e fecham cenas. Como um dedo invisível que virasse uma página e criasse um breve parêntese na história. Num desses momentos, a Ama é a única personagem em palco. Olha em frente, movendo um pau como se fosse um remo. Gestos lentos no início, mais velozes depois. Foi a Ama que criou Medeia, foi ela que a alimentou com o seu próprio leite, que a acompanhou na fuga com Jasão e os argonautas desde a Cólquida, testemunha silenciosa de todos os seus crimes. “Uma estrada demasiado longa.” Mas desta vez a Ama recusa acompanhá-la: não quer morrer. E à medida que Medeia atravessa o rio Aqueronte, aproximando-se do mundo dos mortos, a Ama rema em sentido contrário, esforçando-se por alcançar o mundo dos vivos. ...

Uma despedida

A peça abre com Creonte a preparar-se para mais um dia, aquele em que vai morrer. Os gestos são lentos, de velho. Creonte parece já não reconhecer a sua pele, os músculos, os dentes, os nervos. Já não é o guerreiro ágil e forte do passado. A sua história pesa toneladas sobre o corpo e a consciência. Há um momento, no entanto, em que a personagem ganha uma frescura e um brilho raros, e o tom muda. É um momento curto, mas que contém muitas das ideias essenciais desta Medeia , da companhia Público Reservado. Creonte abre uma janela (o objecto não existe no cenário; o espectador imagina-o), o braço direito erguido, os dedos envolvendo a fechadura. O gesto é o mesmo de uma mão que erguesse um punhal. Um raio de luz incide-lhe directamente no peito. Creonte reage com um movimento ambíguo, que tanto pode ser de dor como de prazer. A mão esquerda pousa no lugar onde a luz bate, como que protegendo o coração. Ele ainda não sabe que é o último raio de sol da sua vida, mas suspeita. Medeia é...

Pecado original

JASÃO volta-se para os homens.   Que um de vós faça guarda à volta do fogo até que não haja mais do que cinzas, até que os últimos ossos de Medeia estejam queimados. Os outros, venham. Regressemos ao palácio. É preciso viver, agora, assegurar a ordem, dar leis a Corinto e reconstruir sem ilusões um mundo à nossa medida para esperarmos morrer nele. Eis uma das marcas essenciais do texto de Jean Anouilh : a ironia. Ou melhor, um profundo pessimismo existencial, que só pode traduzir-se numa longa e permanente ironia. Que mundo podemos reconstruir a partir da “nossa medida”? Se a medida do mundo é a de Jasão - que não é mais nem menos humano que as restantes personagens, incluindo Medeia, obviamente - não será um mundo condenado desde a primeira hora? Acontece que é o único que existe. Não temos outro. E o que Anouilh diz, parece-me, é que estamos condenados a viver nele sem possibilidade de salvação, manchados pelo pecado original da nossa imperfeita condição. Um mundo onde in...

Fúria

A versão de Medeia , de Jean Anouilh, pela companhia Público Reservado, inclui a intervenção ao vivo de uma banda rock. É uma originalidade que não está no texto de Anouilh, mas que, na leitura de Eduarda Neves , funciona como uma tentativa de introduzir na peça uma espécie de coro grego. É uma hipótese curiosa. Aceitando essa hipótese, a banda rock é um coro “negativo”, quer dizer, não ajuda a “esclarecer” a história; pelo contrário, acentua e aprofunda o drama e a solidão de cada personagem. As intervenções do coro excluem e afastam ainda mais os personagens do mundo: “não há razão, não há luz, não há descanso.” Medeia , de Jean Anouilh, pela companhia Público Reservado.  Teatro do Campo Alegre, 4 a 7 de Outubro.

Já não gosto de sangue

MEDEIA coloca-se diante de Creonte   Creonte, tu estás velho. És rei há muito tempo. Já viste homens e escravos que cheguem. Já fizeste cozinhados ignóbeis. Olha-me bem nos olhos e examina-me. Eu sou Medeia. (...) Eu sou da tua raça. Da raça daqueles que julgam e que decidem sem voltar atrás e sem remorsos. Não estás a agir como rei, Creonte. Se queres dar a Jasão a tua filha, mata-me imediatamente com a velha e as crianças que dormem ali e com o cavalo. (...)  CREONTE Por que é que tu queres morrer?  MEDEIA  Por que é que tu queres que eu viva, agora? Nem tu, nem eu, nem Jasão têm interesse em que eu ainda esteja viva dentro de uma hora, sabe-lo bem.  CREONTE faz um gesto, diz de repente em surdina Já não gosto de sangue. (...) Vês, estou a ficar velho. Uma noite é demasiado para ti. É o tempo de dez dos teus crimes. Eu deveria recusar o teu pedido… Mas também eu matei muito, Medeia. E nas aldeias conquistadas onde entrava à cabeça dos meus so...

Preparação para Medeia: mulher cão

[ Medeia, de Jean Anouilh. Estreia 4 de Outubro, no Teatro do Campo Alegre. ]

Preparação para Medeia: o desejo

All human activity is prompted by desire. There is a wholly fallacious theory advanced by some earnest moralists to the effect that it is possible to resist desire in the interests of duty and moral principle. I say this is fallacious, not because no man ever acts from a sense of duty, but because duty has no hold on him unless he desires to be dutiful. If you wish to know what men will do, you must know not only, or principally, their material circumstances, but rather the whole system of their desires with their relative strengths. Bertrand Russell, discurso na Academia Nobel, 11 de Dezembro de 1950. [Medeia, de Jean Anouilh. Estreia 4 de Outubro, no Teatro do Campo Alegre.]

Preparação para Medeia: ela é a mosca dentro do frasco

No peitoril estava um frasco de vidro posto de bocal para baixo. Uma mosca, não se sabia como, fora parar dentro do frasco. Não havia maneira de ela sair, e a mosca andou lá dentro todo o dia. Dentro do frasco, batido pelo sol, pairava um calor lento, indiferente, impenetrável (...) Evgueni Zamiatine, Inundação. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra. [ Medeia, de Jean Anouilh. Estreia 4 de Outubro, no Teatro do Campo Alegre. ]

Preparação para Medeia: experiências de química

SENHOR ORLAS (suspira) : A vida é um abismo de contradições, Araminthe. Bem! Vou para o meu gabinete reflectir em tudo isto. Não posso acreditar que não haja uma solução em que o dever e a felicidade se conciliem. ARAMINTHE: Eu creio, senhor, que é essa a grande inquietação dos homens, desde que saíram das cavernas para tentar viver em sociedade. Inventaram o casamento para tentar conjugar ao mesmo tempo essas duas noções. SENHOR ORLAS: Apenas por um curto espaço de tempo, Araminthe. Acredite num homem que tentou essa aventura! O que se passa a seguir é como uma dessas experiências de química em que se deleita o nosso vizinho, senhor Voltaire. Ao princípio, a mistura brilha; depois, a felicidade, que é volátil, evapora-se e não fica na retorta senão o grosso calhau cinzento do dever. Jean Anouilh , Cecile ou a escola de pais. Tradução de Virgínia Mendes.