Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de janeiro, 2018

Dizer o quê?

O nascimento é uma questão? Uma questão com um trejeito, ou um brilho nos olhos. Eu prefiro o termo dor de barriga, uma grande irritação, uma actividade do mais severo e impiedoso que haja, sem pergunta nem resposta, um jogo da vermelhinha, uma necessidade. A necessidade de quê? A necessidade de dizer. Dizer o quê? O que quer que seja para ser dito. O que é que é para ser dito? Nada é para ser dito, tudo é para ser dito. É para ser dito. É dito. Algumas pessoas dizem-no melhor do que outras. Dizem o quê? O que é para ser dito. Porquê? Vou ignorar esta questão. Harold Pinter, Várias vozes. Tradução de Francisco Frazão.

Girondo-Bonomi-Parra

Capa da edição original de Espantapájaros (al alcance de todos) , de Oliverio Girondo, com desenho de José Bonomi , Buenos Aires, Proa, 1932   Desenho de Nicanor Parra , incluído em Artefactos , 1972.

No qual se vejam todos os nervos

A arte não pode ser outra coisa senão a reprodução objectiva de uma realidade psicológica, e esse fim não se alcança procurando mostrar apenas o que se considera revestido de certa dignidade. Um poema deve ser uma espécie de corte praticado na totalidade do ser humano, no qual se vejam todos os nervos, as fibras musculares e os ossos, as artérias e as veias, os pensamentos, as imagens e as sensações, etc., etc.  Nicanor Parra. Carta a Tomás Lago, Oxford, 1949.

O cotovelo dentro do prato

Mas os ritos religiosos não são os únicos. A sociedade impõe mil cerimónias que não passam igualmente de uma espécie de missa permanente que ela oferece a si própria. Um exemplo disso é a maneira de se comer em sociedade. Charlot jamais consegue usar os talheres de modo conveniente. Põe sempre o cotovelo dentro dos pratos, derruba a sopa sobre as calças, etc. O ápice é seguramente quando ele próprio é garçom de restaurante (em Charlot patinador , 1916, por exemplo).  Religioso ou não, o sagrado está presente em toda a vida social, não apenas no magistrado, no policial, no sacerdote, mas no ritual de alimentação, nas relações profissionais, nos transportes públicos. É por ele que a sociedade mantém sua coerência, como em um campo magnético. Inconscientemente, a cada minuto, nos posicionamos segundo suas linhas de força. Mas Charlot é feito de outro metal. Não apenas escapa à sua influência, mas a própria categoria do sagrado não existe para ele, sendo tão inconcebível quanto a rosa pa

A máquina

A máquina inimiga para Chaplin é sobretudo sinal de desumanização, na taylorização imposta pela indústria concorrencial, reduzindo o homem-operário a uma escravatura minuciosamente contabilizada, em tempos e gestos repetidos até à paranóia. O riso que tal situação desperta no espectador é horrivelmente condicionado pela sua própria experiência, de profissão em profissão - e se é a técnica que faz o homem, e não, em última análise, o meio social, o operário americano não se distingue, psicossocialmente, do operário soviético, em transes de Stakhanovismo... A frieza com que Tempos Modernos foi recebido nos Estados Unidos não foi, assim, diferente da suspeição que acompanhou o filme na Rússia, mesmo que a crítica oficiosa com algum mal-estar, procurasse distinguir as duas situações sociopolíticas, reduzindo a americana o destino da mensagem chapliniana. (...) A máquina constitui, na economia do filme, e na proporção da suas cenas, articuladas de gags em gags , a sua parte essencial: um

Quatro por quatro

Imaginemos um díptico. A face da esquerda está em branco. Na face direita podemos ver  A lei do mercado , de Stéphane Brizé. Se, num exercício, tivesse de preencher a face em branco e completar o díptico, escolheria Chronique d'un été , de Jean Rouch e Edgar Morin. Uma das histórias mais impressionantes de Chronique d'un été é a de Angelo, o operário da Renault que diz trabalhar vinte e quatro horas por dia: acorda às cinco da manhã, segue de transporte até à fábrica, cumpre uma jornada de nove horas de trabalho, regressa a casa, come e dorme para recuperar energias, e começa tudo de novo às cinco da manhã do dia seguinte. Um dia após o outro, sem pausas. Dormir, diz ele, faz parte do trabalho. O que mudou entre a história de Angelo e a de Thierry, o personagem de Brizé, que trabalha como segurança num supermercado dos nossos dias para «ganhar a vida»? Em  A lei do mercado , há uma sequência em que Thierry e a mulher estão a aprender a dançar rock, naquele que é o único mo

Contra a angústia da folha em branco

Um dos contos mais famosos de Virgilio Piñera narra a história de um homem que se alimenta literalmente de crianças pequenas, «de poucos meses». Uma espécie de apreciador swiftiano das qualidades gastronómicas da carne de criança. Ora, para alimentar este peculiar capricho gastronómico, o narrador envolve-se em cenas de caça, rigorosamente planeadas e sem margem para erro. O conto intitula-se Algumas crianças e o enredo detém-se num episódio de caça que corre mal, o primeiro e único percalço numa longa carreira de caçadas e repastos bem sucedidos. O homem fica encurralado no interior de um elevador com uma das suas vítimas, em copioso pranto, e na companhia de um pachorrento São Bernardo. No exterior, a mãe, vizinhos e autoridades prepararam-se para capturar o criminoso. O narrador não tem maneira de escapar, é o fim da história. Encurralado, sem recursos, Piñera lança mão de uma outra saída, a saída sobrenatural, o truque de magia: «abri a boca ao São Bernardo e, sem perder um segu