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Barrela

Ganhei o hábito de limpar ao máximo os textos que escrevo ou traduzo de palavras desnecessárias. Levo isso a um extremo tal que já me parece um vício e desconfio que um dia ainda vou acabar com as páginas todas em branco, imaculadas.

O mundo que vá para o inferno

Lutei dias e dias com a frase mais forte d’ O Camião . « Que le monde aille à sa perte » só surge quatro vezes (uma delas com todas as palavras encadeadas por hífens, outra com «o mundo» substituído pelo pronome), mas arrasa tudo. Escrevi uma série de frases possíveis, mudando o verbo ou o complemento oblíquo; cocei o queixo, inclinei a cabeça; fui ver se estava a chover. Nada. Conseguia segurar a força, mas faltava o ritmo — um golpe seco de espada. Depois lembrei-me que a Marguerite Duras gostava muito de Capri, c’est fini (a mais bela canção de amor, dizia ela). E partir daí foi mais fácil, uma canção leva a outra.
Rever a tradução dos Cadernos de Cioran é das actividades mais obsessivas que já experimentei. Mesmo que em parte a culpa seja do ritmo repetitivo do texto, deixar-me levar por essas variações crescentes já é problema, ou defeito, meu. Trabalho como um carpinteiro maluco que não se cansa de aplainar a madeira porque quer que ela fique simultaneamente muito suave e muito rude.

A escada

24 juin   Variations Goldberg … Après ça, il faut tirer l’échelle.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  A expressão francesa significa que se atingiu o máximo, não se consegue fazer melhor. Podemos meter o dicionário no bolso e ir por aí com segurança: «… Depois disto, não se fará melhor». Ou então, realçar uma certa renúncia que está implícita (e é bem cara a Cioran) e contrapor, com alguma malícia, uma expressão do tipo: «… Depois disto, mais vale arrumar as botas».  Mas, na verdade, continuo a pensar na escada e também (e acima de tudo) no gesto de a deitar fora  ( com extrema secura ): «... Depois disto, deitar fora a escada».
Cheguei ao fim de 1971, só falta um ano para o fim, trinta e tal páginas.  31 dez. 1971 Esta noite, pesadelo grandioso, desproporcional, vertiginoso.  Acordei a chamar pela minha mãe...  Quanto a dizer em que consistiu esse pesadelo, sinto-me incapaz.  1º Janeiro de 1972  Tristeza constante que me parece inútil analisar. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Um recadinho amoroso

Conheci escritores obtusos e até mesmo estúpidos; todos os tradutores que conheci eram, sem excepção, inteligentes e muitas vezes mais interessantes do que os autores que traduziam. (Há mais reflexão na tradução do que na «criação».) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (outubro de 1971)

Saltarinheiro

14 de outubro (1970) A. A. envia-me o Diário de Vlasiu onde se fala muito de mim tal como era em 1938-39.  Esse eu de que Vlasiu fala, por mais que tente, não o consigo reconhecer: escapa-me, tem a consistência de um espectro. É verdade que não se percebe lá muito bem como é que nos podemos reconhecer quando somos evocados por um saltarinheiro, por um escroque ao mesmo tempo bilioso e cheio de encanto, um labrego manhoso e cabotino como não há outro.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972   Traduzir os Cadernos  obriga-me, constantemente, a procurar uma data de insultos em português. Não são uns insultos quaisquer, têm de ser potentes e encantores ao mesmo tempo (mais ou menos:  pulverizar, mas com dedicação ).  Para além da alegria que me dá no momento, fico preparada para eventuais reclamações, guerrilhas e discussões. E também deve dar pontos no curriculum vitae .

Afinidades

Junto aos moralistas franceses do século XVIII — era aí que, em parte, Cioran sentia pertencer.  Por duas vezes, regista nos Cadernos que os espíritos de que se sente mais próximo são Job e Chamfort. Numa das formulações escreve mesmo:  sou um aluno de Job e Chamfort . Pela forma como estrutura o pensamento, pela delizadeza do seu francês, e principalmente por mais qualquer coisa que não se deixa definir, é uma afirmação verdadeira.  No entanto, se tivesse que descrever as suas afinidades com as minhas próprias palavras, correndo o risco de parecer que estava a apresentar um namorado recente, diria que Cioran está entre Bach e Francis Bacon (o pintor).

Les fruits secs de la vie

Voltei ao Cioran. Ao traduzir uma anotação dos Cadernos de finais de 1967, encontrei um insulto esquisito: fruits secs — assim mesmo no plural e com um sentido que não está registado nos verbetes dos dicionários. Depois de pesquisar, percebi que era um insulto do século XIX (Cioran tem esta capacidade maravilhosa de agarrar o que há de mais vivo numa língua, venham as palavras do passado ou do futuro). Historicamente, a expressão é muito rica e esteve prestes a sair da redoma do francês, bastava que Flaubert não a tivesse descartado para título do que viria a ser A Educação Sentimental . No entanto — e apesar de não faltarem por aí frutos secos —,  duvido que no nosso tempo pudesse surgir um insulto deste tipo, nem sequer em França. Seria necessário, pelo menos, exagerar um pouco o atributo para instaurar alguma estranheza:  murcho , ressequido ou até mesmo mirrado .  Quanto à tradução, podemos fazê-la à letra explicando numa nota de rodapé o sentido figurado: não se trata de um fru

Uma família em Bruxelas

Além disso vejo ainda um grande apartamento quase vazio em Bruxelas. Só com uma mulher geralmente de roupão. Uma mulher que acaba de perder o marido. (...) Para traduzir o livro de Chantal Akerman, mudei de método. Traduzi tudo de uma ponta à outra (não são muitas páginas) e depois fui trabalhando esse rascunho em blocos, alguns fáceis, outros muito complicados. Por fim, a parte mais difícil: garantir musicalidade, um ritmo de cantilena porque o texto é quase um monólogo e deve ser dito e ouvido. Lembrei-me de Graça Lobo a dizer a Molly Bloom ou da criada Zerlina tão extrema e foi desse modo teatral que me aproximei de Natalia Akerman — pela voz.  Ando nisto desde finais de janeiro: ponho e tiro palavras, mudo-as de lugar, substituo, volto a substituir.  Às vezes dou por mim a falar com as palavras simples e as repetições de Natalia e rio-me; mas à semelhança do livro, há um lado terrível que fica na sombra (a mãe de Chantal é mestre do fora de campo) e tenho medo de sonhar com Natalia

Palavras familiares

Estou a traduzir um texto da Chantal Akerman em que ela usa palavras da mãe. Ela é boa a usar as palavras da mãe, consegue agarrar a voz e os medos e a escuridão e o amor que essas palavras encerram. Para fazer o meu trabalho de intermediária, tive de convocar as palavras da minha mãe e da minha avó e, mais uma vez, dei-me conta do enorme património que me deixaram: palavras muito simples, imperfeitas, quase esbotenadas, mas com uma potência desarmante.  Quando usamos as palavras dos mortos acontece uma coisa curiosa, é como se nos encontrássemos a meio do caminho, eles um pouco vivos e nós um pouco mortos.

1.000 francos por mês

Uma das características essenciais do trabalho de Cioran é a precariedade. Primeiro existencial, pois apercebeu-se desde o princípio da extrema fragilidade e incerteza da vida. Mas também e sempre material: viveu muitos anos em hotéis baratos, comeu na cantina da Sorbonne enquanto o deixaram, e pouco tinha de seu. Aliás, não gostava sequer da ideia da posse ( A posse faz-me sofrer mais do que a miséri a) e não tinha jeito para se sustentar.  Numa anotação feita nos últimos meses de 1967 nos seus Cadernos , Cioran escreveu que quando um velho amigo lhe perguntou quanto é que ganhava por mês teve vergonha de dizer a verdade —  teria causado mal estar . Por isso mentiu e disse que ganhava mais ou menos 1.000 francos. Pareceu pouco ao amigo. —  Ah, se ele soubesse!

Píca-ro

Em vez de escrever, digo mal de todos os que escrevem. Um falhado é isto. Lembro-me daquele pintor, numa aldeia de Perche, que borrava as paredes dos restaurantes (paisagens horríveis com um lago, etc.) e dizia mal de todos os seus colegas, a começar por Picasso a quem chamava «Píca-ro»! O azedume só é aceitável ao nível especulativo, no estado de pura abstração: fel decantado . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 É muito raro, mas às vezes as traduções correm tremendamente bem: precisamos de uma palavra que encaixe (é disso que se trata: encaixar as palavras nos sítios certos, agradar à semântica e à fonética, fazer tudo com justeza e sem nos estatelarmos no chão) e encontrámos uma que se ajusta como na língua original. Neste caso foi “Píca-ro” lançado contra Picasso. Se estivesse na Graciosa, atirava uns foguetes ao ar.

Gandula

Traduzir deixa-nos uma série de manias. Agora, quando estou a ler uma tradução, qualquer uma, tendo a substituir, alterar a ordem e até a riscar algumas palavras que me parecem a mais.  Como acontece com os vícios, isto já alastrou para os livros escritos em português. Transformei-me numa apanha-bolas (tem qualquer coisa a ver com Godard, mas já não me lembro o quê). No Brasil diz-se gandula .

Metáfora coerente

O tecto do quarto onde guardo os livros ruiu. Olho para o buraco e vejo aquilo a que Cioran chama metáfora coerente . Mais um caso de tradução activa .  

Fi!

É o registo mais reduzido dos Cadernos : uma palavra de duas letras, um ponto de exclamação, um som sibilante.  Sabendo como Cioran aprecia o laconismo e o assombro pré-verbal das interjeições [em junho de 1971 escreveu:  Decidi reunir as reflexões dispersas nestes trinta e dois cadernos. Só daqui a dois ou três meses é que verei se podem dar origem a um livro (cujo título poderá ser «Interjeições» ou então «O Erro de Nascer»). ], atrevo-me a afirmar que este Fi! descreve de forma desconcertante mas profunda toda a sua obra.  Como se trata de uma interjeição de irritação, tem imensas possibilidades de tradução e se nenhuma agradar também se pode inventar um som agreste que se ajuste aos modos exaltados do filósofo.  Alguns exemplos:  Se quiser encostar Cioran ao Pedro Costa e ao Rui Chafes (— e porque não? ficam tão bem os três abrigados na letra C ): Fora!  — E está tudo dito.  Também posso levar a interjeição para o lado dos russos (via Filipe e Nina Guerra, se não me engano), prese
Simone Boué : (…) Anos mais tarde, Sanda Stolojan começou a traduzir Lágrimas e Santos  e vinha com muita frequência cá a casa, trazia o seu texto. Cioran exigia que eu estivesse presente, e eu, eu estava muito infeliz porque embora normalmente Cioran fosse simpático, afável, cortês, quando se tratava da escrita, de um texto, já não tinha essa gentileza. Dizia: é preciso cortar, isto não presta. Lembro-me de  Sanda a chegar, entrava e perguntava: «que mais vai cortar hoje»? Parece que a versão francesa de Lágrimas e Santos representa cerca de um terço do texto romeno. Sanda escreveu um prefácio para se defender, e Cioran decidiu reescrever algumas páginas, de modo a não termos a impressão de ler um texto traduzido do romeno; é principalmente o escritor francês que encontramos nesta versão. Recentemente, li a tradução em inglês e fiquei impressionada, o inglês presta-se mais à tradução do romeno, é menos rígido, e depois há essa profusão, esse lado barroco do estilo de Cioran em romeno

Dia de todos os santos

Como Sanda Stolojan explica no prefácio, as lágrimas são uma presença constante na escrita de Cioran. Mais do que um fluido fisiológico, respondem a uma dor profunda e antiga — remontam a muito antes do seu nascimento nos Cárpatos, atrevo-me até a dizer que surgiram com o pecado original. Cioran transporta esse mal-estar primordial e essas lágrimas obsessivas como um fardo histórico mas também como alento (?) para pensar o desespero da condição humana. Em relação aos santos, importa fazer o mesmo exercício de abstracção e recuo: se as lágrimas são a consequência de uma tristeza constante colada à pele, os santos vêm de um sentimento religioso vigoroso mas sem destino; integram no seu âmago simultaneamente um desejo intenso (ou uma saudade?) de ligação a qualquer coisa, como é da sua natureza, e uma solidão sem saída — que desatino! Apesar do que escreve a tradutora e também o filósofo (quando se refere a Lágrimas e Santos, Cioran gosta de sublinhar que as lágrimas ocupam um e