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A mostrar mensagens com a etiqueta Vírus

Casa em chamas

Leio nos jornais que passou um ano desde o aparecimento dos primeiros infectados pelo coronavírus em Portugal. Entretanto, nos últimos dias, comentadores e analistas, de todas as classes e géneros, têm exigido do Governo um «plano de desconfinamento», para que «não se repitam os erros do passado».  Ocorre-me o final de O Sacrifício , de Tarkovski: a famosa cena da casa em chamas. Há um documentário curioso sobre a rodagem do filme chamado Sätta Ljus , de Kerstin Eriksdotter. Nesse documentário, acompanhamos a preparação e as filmagens de várias cenas, e dessa última em particular. Tarkovski e a equipa, que incluía um corpo de bombeiros e outros especialistas em incêndios, planearam tudo até ao mais ínfimo pormenor, mas houve um problema com a câmara. As imagens do rosto de Tarkovski, dominado pelo desespero, são impressionantes. Para ele, o filme só era concebível com aquela cena. O investimento era avultado. Prepararam tudo pela segunda vez. A casa ergueu-se de novo, no mesmo local. R

O mistério

Um manto de silêncio abateu-se sobre os supostos avanços na produção de uma vacina. Há semanas que não há notícias relevantes sobre o assunto. Mil laboratórios numa roda-viva. E, no entanto, o vírus continua sem revelar o seu segredo. O mistério recuperou o seu lugar no mundo. O mistério que nos perturba tão profundamente e que é tão humano como a crença no poder da ciência. É tudo tão velho e tão novo ao mesmo tempo.

Regras de etiquetas

Ultrapassou os influenciadores, a pandemia e a quarentena; ultrapassou até o venerável Ludwig Wittgenstein. Cioran ( ah, cet enfoiré ! ) alastra neste blogue como um vírus.

Loop

Uns confinam, outros desconfinam. Os que desconfinam agora, confinarão mais tarde. Os que confinam hoje, desconfinarão amanhã. O vírus parece que vai e volta, mas na verdade não vai a lado nenhum. É como se estivéssemos a assistir em loop àquela cena de Ecce Bombo em que Michele Apicella, o personagem de Nanni Moretti, se despede várias vezes dos amigos, mas nunca chega a sair do lugar.

Ponto de situação

O que se sabe, com segurança, sobre o vírus? Sabe-se que pode ser fatal, que em alguns casos provoca sintomas graves, noutros apenas ligeiros e, noutros ainda, não provoca sintomas nenhuns. Pode acontecer tudo, incluindo nada. Exactamente como numa história de Daniil Harms.

Fronteira

O CoVid-19 deslocou as políticas da fronteira que tinham lugar no território nacional ou no superterritório europeu em direcção ao nível do corpo individual. O corpo, o teu corpo individual, como espaço vivo e como trama de poder, como centro de produção e consumo de energia, converteu-se no novo território sobre o qual as agressivas políticas de fronteira que temos vindo a desenhar e a testar há vários anos se expressam agora sob a forma de barreira e de guerra contra o vírus. A nova fronteira necropolítica passou das costas marítimas da Grécia para a porta do domicílio privado. Lesbos começa agora na porta de tua casa. E a fronteira não pára de te cercar, de se aproximar cada vez mais do teu corpo. Calais explode agora na tua cara. A nova fronteira é a máscara facial. O ar que respiras deve ser só teu. A nova fronteira é a tua epiderme. A nova Lampedusa é a tua pele. Paul B. Preciado, no jornal Punkto.

Imagens

A imagem do vírus está por toda a parte: nas capas e nas páginas dos jornais, nos cenários virtuais dos noticiários televisivos, nos cartazes das lojas e dos supermercados. É representado como uma esfera estilizada coberta por uma espécie de espinhos. Faz lembrar as velhas almofadas de alfinetes usadas pelos alfaiates. Somos assim. Precisamos desesperadamente de imagens. Precisamos de ver «o rosto do inimigo». Como as representações do Mal na iconografia cristã. O diabo nas pinturas de Bosch.

Estado de excepção

Mas há outro motivo para o tremendo pânico. Novamente tem a ver com a digitalização. A digitalização elimina a realidade, a realidade é experimentada graças à resistência que oferece, e que também pode ser dolorosa. A digitalização, toda a cultura do “like”, suprime a negatividade da resistência. E na época pós-fática das fake news e dos deepfakes surge uma apatia à realidade. Dessa forma, é um vírus real e não um vírus de computador o que causa uma comoção. A realidade, a resistência, volta a fazer-se notar no formato de um vírus inimigo. A violenta e exagerada reacção de pânico ao vírus explica-se em função dessa comoção pela realidade. A reacção de pânico dos mercados financeiros à epidemia é, além disso, a expressão daquele pânico que é já inerente a eles. As convulsões extremas na economia mundial fazem com que essa seja muito vulnerável. Apesar da curva constantemente crescente do índice das Bolsas, a arriscada política monetária dos bancos emissores gerou nos últimos anos um p

o arco do qual se disparam flechas

À partida, quando olhamos para as palavras latinas «corōna» e «vīrus», diríamos que nada têm a ver uma com a outra: a primeira tem como sentido primário «grinalda», «coroa»; a segunda tem como sentido primário «veneno». No entanto, na utilização mais antiga que se conhece destas duas palavras, elas estão estranhamente ligadas por um denominador comum: o arco do qual se disparam flechas. “Corōna” e “vīrus” em tempo de coronavírus , de Frederico Lourenço ( via João Lisboa )

O vírus é a música

A progressão de um vírus implacável sobre fundo primaveril (folhas, flores, pássaros) Ah, isto é o que Jean Renoir dizia: "Por que raio é que, numa cena de amor em que o actor diz à actriz je t'aime a música também há-de dizer je t'aime ? Porque é que a música não diz estou-me nas tintas para ti?" O vírus é a música.

Pulverizador

Passamos os dias em casa, desconfiados, vigilantes, sem dormir. Andamos atrás do vírus pelas divisões da casa, apontando um pulverizador para o vazio como se fosse um revólver. Verificamos atrás das portas, por cima dos armários, entre os lençóis da cama. Prontos a disparar. Mas o vírus é mais rápido do que a própria sombra. É a própria sombra.

Papel higiénico

Há três dias que uma onda de pânico varre, sem parar, os supermercados. No nosso bairro, não há vegetais, carne, enlatados e papel higiénico. De papel higiénico, não resta a sombra de uma embalagem. As prateleiras vazias conduzem-me de novo, e por caprichosos caminhos, a Artaud. Onde cheira a merda cheira ao ser. O homem poderia muito bem não cagar, não abrir a bolsa anal, mas ele escolheu cagar tal como escolheria viver em vez de aceitar viver morto. Pois para não fazer caca precisaria de aceitar não ser, mas ele não quis optar por perder o ser, ou seja, morrer vivo. (...) Antonin Artaud, Para acabar de vez com o juízo de Deus e outros textos finais (1946-1948) . Tradução de Pedro Eiras.

Quarentena

Fechados em casa, de quarentena, passamos uma parte da noite a ver Beuys , que passou na televisão. Ruas cheias de gente, manifestações, ocupações, performances em espaços fechados, um debate com críticos de arte e académicos numa sala a abarrotar, toda a gente a fumar, a partilhar copos, Beuys alagado em suor. Em menos de uma semana, tudo isto parece ter-se transformado em arqueologia. Provas de um tempo longínquo. Foi ontem.

Vírus

Enquanto o Covid-19 alastra, espero a minha vez lendo histórias de outro vírus, ainda mais letal, em Berlim Alexanderplatz . Histórias do vírus que se espalha desde os anos 30 e que jamais desapareceu.