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A mostrar mensagens de maio, 2022

Coleccionismo dissoluto

Aplico os pensamentos e as palavras de Cioran a quase tudo; só me falta começar a debitar diatribes cioranescas nas compras no mercado, mas é uma questão de tempo. Neste gesto, porém, que fique claro, assemelho-me mais àquelas velhas que recolhem os gatos que encontram no caminho ou amontoam tralhas em casa do que a uma estudiosa assertiva.

Estranho à transcendência

O claro-escuro holandês, com todo o seu mistério, é estranho à transcendência. É possível que a melancolia seja refractária ao absoluto. Emil Cioran, Lágrimas e Santos. (Podia aplicar este pensamento de Cioran aos filmes de Ozu. Em vez de  o   claro-escuro holandês ,  os planos geométricos de Ozu …)

O último plano de "O Gosto do Saké"

 
Na sua origem etimológica perspectiva deriva do latim perspicere entendido no sentido de "ver claramente", que é por sua vez a tradução do termo grego optiké cujo significado se define pela ciência em si.  O desejo do Desenho, Casa da Cerca, Centro de arte contemporânea, Almada, 1995.

Sonho

Instalaram uma prótese na perna esquerda do meu pai. O médico disse que era a única solução para ele conseguir recuperar alguma da mobilidade que perdeu nos últimos anos. Fui visitá-lo ao hospital. Contou-me que de noite tinha tido um sonho muito bonito. No sonho, corria e saltava como se fosse um miúdo outra vez.

Na parede da Capela do Senhor do Olho Vivo, na Rua Antero de Quental, substituíram a centenária caixa de esmolas em ferro por uma coisa de plástico branco. A fé do pároco na solidez do plástico e, sobretudo, na integridade do próximo é muito impressionante. Talvez a tão apregoada crise de fé da Igreja tenha sido manifestamente exagerada.

Linha A

Os livros de Dostoiévski tornaram-se mais políticos. “A Submissa” (a tradução é macia, mas continuo a embirrar com o título) é pura política do desespero . O metro não devia sair do subsolo.

A linha

Estação da Trindade, fim de tarde. A linha do metro divide os passageiros por classe. No Cais 1, os passageiros que regressam aos condomínios e hotéis da Boavista, Matosinhos, Maia e Vila do Conde: funcionários públicos, professores, estudantes altivos de economia, casais de «turistas seniores», arquitectos vestidos à moda, jovens empreendedores ao telefone. No Cais 2, os passageiros que vivem em Campanhã, Rio Tinto, Gondomar ou Fânzeres: trabalhadores do comércio e da restauração, empregadas domésticas, operários, crianças sozinhas vindas da escola, pensionistas e jogadores de cartas dos bancos de jardim.

Alívio rápido

Na estação de Faria Guimarães, um cartaz publicitário com a imagem de um medicamento. Da janela do metro, leio num relance: «Para o alívio rápido da alegria.» Leio com mais atenção: «Para o alívio rápido da alergia.» O metro retoma a marcha. Caracol fanhoso e tristonho.

Uma certa alma

Devia escrever um pequeno texto sobre O Gosto do Saké  mas, contando com os comentários laterais e as observações geométricas, ultrapassei os 7000 caracteres. Deixei-me levar; é demasiado para as minhas capacidades e hábitos (até parece que estou a pagar uma dívida com juros elevados).  O que vale é que no último parágrafo acho que derrotei aquela teoria do estilo transcendental em Ozu e isso merece uma boa comemoração.

Depois do fim dos contos de fadas

(...) Tendo em conta que vários escritores e personagens literárias tiveram profissões semelhantes, vamos chamar-lhe R. W.  (...) será que R. W. só conseguia escrever disfarçando que estava a escrever, enganando-se a si mesmo e à linguagem, a ponto de nem a linguagem nem ele já acreditarem que escrevia? (...) Com esta solução, talvez também R. W. estivesse a empurrar o sentido para longe, em vez de o tornar explícito. Talvez temesse ou desprezasse o sentido. Sentir-se-ia mais próximo das coisas sem sentido ou condenado a elas? Só sabemos que já não queria copiar nem passar coisas a limpo. R. W. não servia para o que os outros queriam — e «aquilo que os outros querem» é uma boa definição de «sentido».  (...) Walter Benjamin — chamemos-lhe W. B. — comparou as personagens de R. W. com as figuras dos contos de fadas, porém depois do fim dos contos de fadas: já passaram por todas as metamorfoses e todos os sofrimentos e percursos que tiveram de cumprir dentro da lógica dos contos de fadas,

Entretanto, vou-me divertindo

- (...) Sou católico, tirando o baptismo. - É muito simples - disse eu - trate de ser baptizado. O baptismo é um sacramento que qualquer um lhe pode ministrar: homem, mulher, judeu, protestante, budista, maometano. - Eu sei - disse Fernisoun -, mas só quero servir-me dele mais tarde. Entretanto, vou-me divertindo. - Ah! Ah! O efeito do baptismo é apagar todos os pecados. Como só se pode utilizá-lo uma única vez, você quer adiar o mais possível esse momento. - Aí está. Já não espero o Messias, mas apenas o Baptismo. Esta esperança dá-me toda a alegria que se pode ter. Vivo plenamente. Divirto-me soberbamente. Roubo, mato, esventro mulheres, violo sepulturas, mas irei para o paraíso pois espero o Baptismo e não será dito o kadisch na hora da minha morte. Guillaume Apollinaire, O Heresiarca e C.ª . Tradução de José Carlos Rodrigues.

Se tem cauda é o diabo

Depois de analisar profundamente a imagem, cheguei à conclusão que se trata de uma desgarrada. Eu e o Ventura, numa voz tão baixa que não se percebe nada.  Agradecimentos à  Linha de Sombra  por enquadramentos tão generosos.

Paredes instagramáveis para influenciadores do século XX

Film , de Samuel Beckett e Alan Schneider, e Un Chant D'Amour , de Jean Genet.

Deus está em casa e pode ouvir

Uma mulher e um miúdo pequeno estão sentados nas escadas da Igreja da Lapa, à espera do autocarro. O miúdo brinca com uma máscara cirúrgica. Nisto, um golpe de vento arranca-lhe a máscara da mão e atira-a para longe. O miúdo grita «ai, caralho, a minha máscara» e corre atrás dela. A mãe repreende-o num cerrado sotaque tripeiro: «Não digas asneiras à frente da igreja, grande morcão!»

Moradias Arpel

Casas geminadas na avenida da Boavista. Vistas de frente, têm a forma de um homem simétrico a levantar pesos. Metáfora ou distracção do arquitecto? Não vi o peixe que gorgoleja, mas as cadeiras  scoubidou estão lá dentro.

Os operários são poucos

Por mania, ou até mesmo tique, passo a vida a substituir palavras — no que escrevo e traduzo, em tudo que leio, sejam livros, textos diversos, anúncios. Na frase deste título , José Tolentino Mendonça devia ter dito operário  e não colaborador . Operário é uma palavra mais católica e também mais necessária.

Revelações japonesas

Como estava sozinha em casa, e para adiantar trabalho, ontem à noite resolvi rever "O Gosto do Saké" ( Sanma No Aji ). Não via um filme de Ozu desde que a minha mãe morreu há quase quatro anos. Agora percebo porquê, deve ter sido um desses mecanismos do instinto que nos defendem de emoções demasiado intensas.  A meio desisti, por excesso de tristeza e também porque percebi que, por mais que tenha escrutinado o filme no passado, não apanhei o principal: o casamento de Michiko é apenas um pretexto para outra coisa mais profunda e mais dolorosa, e está tudo lá (como as montanhas de Cézanne) — nós é que nem sempre estamos preparados para ver. 

Uma experiência

Montar um filme a partir das longas sequências de Jeanne Moreau a caminhar pelas ruas de Paris ( Ascenseur Pour l'Echafaud , de Louis Malle) e Milão ( La Notte , de Michelangelo Antonioni), e dar-lhe este título: O Porto segundo Jeanne Moreau .

Estudo geral das faculdades intelectuais

Ele é enterrado em Charenton com a presença de um padre e, quatro anos depois, quando o cemitério é mudado de lugar, um médico consegue acesso ao seu crânio para realizar estudos de frenologia (outro médico, Spurzheim, faz um modelo do crânio de Sade, que desaparece tempos depois...)

Canal Horeca

Paris: insectos comprimidos numa caixa. Ser um insecto célebre . Toda a glória é risível; aquele que a ela aspira deve realmente ter gosto pela decadência.  Foi a tentação da glória que arruinou o paraíso. Sempre que queremos sair do anonimato, esse símbolo da felicidade, cedemos às sugestões da serpente.  Nada pode estragar completamente alguém, excepto o sucesso. A “glória” é a pior forma de maldição que pode cair sobre um ser.  A glória cai sobre um autor no momento em que ele já não tem mais nada a dizer; consagra um cadáver.  A necessidade de glória vem de um sentimento de total insegurança que experimentamos em relação ao nosso próprio valor, de uma falta de confiança em nós mesmos. E quando hesito em reconhecer-me o menor mérito, desejo uma celebridade cósmica, e gostaria de ser conhecido por tudo o que vive, por um mosquito, por uma larva.  Falar sem ironia dos seus sucessos é sinal de grande indelicadeza (é ainda mais indelicado do que falar das suas riquezas, porque a riquez

O homem mais feliz do mundo

Ouço na rádio a notícia de que está em Portugal, para dar uma conferência, um tipo que é «considerado o homem mais feliz do mundo». Não me engano. O jornalista repetiu diversas vezes que o conferencista — não consegui reter o nome — é «considerado o homem mais feliz do mundo».  A concorrência feroz entre gurus, xamãs, feiticeiros, padres, é tão antiga como a humanidade. Mas antes era preciso provar a autoridade espiritual com milagres ou feitiços. Agora, basta afirmar que um tipo é «considerado» o homem mais feliz do mundo. E o pior é que as palavras não ganharam mais peso no domínio da fé. Pelo contrário. As palavras transformaram-se em cuspo.

Inadaptação

Passei duas horas maravilhosas com uma família russa. Estas pessoas mudaram tão pouco desde os seus grandes romances! É bela a sua inadaptação. Além disso, a adaptabilidade é sinal de falta de carácter e de vazio interior. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Influenciadores do século XX na esplanada

Poético por pura fisiologia

Ah! como gostaria de me limitar unicamente à sensação, a um mundo anterior ao conceito, às variações infinitesimais de uma impressão sentida que teria de exprimir em mil palavras espantosas e desconexas! Escrever diretamente sobre o sentido , converter-me em intérprete do corpo e da alma descoordenada! Transcrever apenas o que vejo, o que me toca, fazer o que faria um réptil se pusesse mãos à obra — um réptil não pois o réptil tem a lamentável reputação de intelectual, mas um insecto. Um livro que seria poético por pura fisiologia . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Uma impostura

Terei lido mal Os Irmãos Karamázov ? Li-o como se de uma blague se tratasse. Dostoiévski destrói o que até então considerávamos uma obra de arte com assertividade, dignamente. Parece-me, após a leitura, que qualquer romance, poema, quadro ou música que não se destrua, quer dizer, que não se construa como um jogo de massacre que o inclua entre as suas vítimas, é uma impostura. Jean Genet, a propósito dos Irmãos Karamázov.
Spartacus na sessão da tarde da rtp memória só pode ser um gesto político.  De um programador engenhoso ou do acaso histórico.

Juízo perfeito

— Não é para fazer sentido, é a fé. Fé, entendes? Fé é acreditar em algo em que ninguém no seu juízo perfeito acreditaria.   Podia ser um desabafo de Cioran nos seus Cadernos , mas é Archie Bunker a dar cabo da cabeça de Edith numa série de televisão.