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Só sou feliz quando encontro uma «fórmula».

Arranjei mais uma possibilidade para traduzir cafard : tristeza constante.  Agrada-me por si mesma, pelo seu ar de fórmula clínica, e também porque estabelece diálogo (ainda que do contra) com a dúvida, medo e desespero de Espinosa.  Agora vou ter de rever de novo o Caderno da Talamanca . E ando nisto.

Fado da tristeza

Assim como já pensei traduzir mauvais demiurge por um adjectivo diferente a cada investida, aumentando com este subterfúgio o alcance negativo do demiurgo, também arranjei um truque semelhante para contornar a frustração de não encontrar uma palavra portuguesa que faça justiça ao  cafard francês. Basta juntar à nossa tristeza rasteira uma qualificação que a projecte mais para baixo — como se estivesse continuamente a cair num poço. A lista é infindável: negra, abismal, medonha, funesta, canalha, desgraçada, sinistra, fatal, cruel, lutuosa, sombria, soturna, malfadada, lúgubre, desditosa, inconstante, etc.  As melhores duplas são as que podemos imaginar na letra de um fado antigo. Demiurgo ( 1 , 2 e 3 ) | Cafard ( 1 , 2 e 3 )

Estar com a mosca

Fui vaguear para as ruas dos duques. Ao passar à porta do café Asa de Mosca, lembrei-me da pretensão recente de traduzir  avoir le cafard por estar com a mosca; não deu em nada porque a expressão já está tomada. É pena. Mesmo assim, se tivesse de me encontrar com Cioran aqui no Porto, era no Asa de Mosca. Depois podíamos ir ao Prado do Repouso — ele era capaz de apreciar o nome e ainda alguns arroubos arquitectónicos que por lá se vêem. Quando saí do cemitério comprei vinho (os tais de altitude ) e flores.

Deixa a tristeza sair

Não há em português uma expressão com a força de avoir le cafard  e não se percebe porquê — tristeza não nos falta. Podemos traduzir por estar triste, tristonho, destroçado, sorumbático, macambúzio, ou até mesmo “em baixo” — mas falta qualquer coisa. Um substantivo vulgar (como a barata francesa) ou um adjectivo musical (como o azul inglês), uma palavra sem grande reputação mas que sozinha consiga mostrar o buraco em que caímos e que estimule a matéria semântica (ganhar musgo).  Qual? Talvez “na fossa”? Tem uma força sensorial formidável, é certo, e Cioran até era capaz de gostar da imagem, mas não encaixa nos seus aforismos (lamentável desencontro geográfico). Fica para a próxima.

Cioran a le cafard. Toujours.

Timon: Hé regarde il a le cafard !  Pumbaa: Mais y a pas de cafard dans le désert. Há palavras francesas muito importantes para compreender os pensamentos de Cioran, são uma espécie de didascálias: instruções dadas pelos poetas aos actores — precisamente. Dégoût é uma delas; não tanto na tradução literal desgosto,  que em português é demasiado passiva, mas nos termos mais exuberantes e teatrais: repugnância , aversão ou nojo . Em primeiro lugar, porém, sem qualquer dúvida, está cafard . Com todos os sentidos que a palavra foi ganhando e perdendo ao longo dos anos: a influência árabe kafir para descrever uma pessoa descrente ou um renegado, a obscuridade atribuída por Baudelaire (um dos poetas de Cioran) e, acima de tudo, o seu carácter boémio de vão de escada (condição essencial). Se há palavra que condensa tudo o que Cioran escreveu, essa palavra é cafard . E, ao contrário do que diz o tradutor francês do “Rei Leão”, também há baratas no deserto .