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Consumições

No primeiro diálogo entre Adelino e Júlia — ela está a apanhar agulhas dos pinheiros com a filha mais velha junto à praia do Furadouro, mas parece que estão no Japão antigo a contas com as eternas agruras da vida —, as palavras saem como lava de um vulcão. A determinada altura, Júlia atira: não quero andar mais na boca do povo … bastam as consumições que já tenho . Consumições era uma palavra da minha avó e, talvez, dessa linhagem de mulheres pobres que se desunhavam para pôr alguma comida na mesa, vestir e criar os filhos, aturar os maridos, tratar da casa e dos velhos. Um trabalho colossal e invisível. Apesar das condições de vida terem melhorado um pouco depois do 25 de abril, a minha avó nunca deixou de se afligir com os desaires iminentes, com o medo das doenças ou de ficar numa situação  desprevenida , com qualquer coisa incerta. As consumições não a largavam — uma memória cravada de dor e tristeza, como se Júlia continuasse a acartar areia ou agulhas dentro de si.

Nós não sabemos, nós somos uns bichos.

Ontem, ao ouvir os diálogos de Mudar de Vida  com mais atenção (principalmente as conversas em surdina entre Adelino e Júlia/Albertina), consegui perceber o minucioso trabalho de António Reis na construção das frases . ( Nada em excesso, nada que falte .) As palavras do filme foram submetidas a um rigor extremo. No fim, cada uma conquistou o direito a ser dita e juntas transformaram-se numa força colectiva — como as flores silvestres que nascem pelo campo em abril. O mesmo milagre. 

O Porto já não são tripas

Há uns seis ou sete anos, quando o vendaval do turismo e da gentrificação se abateu definitivamente sobre o Porto, surgiram um pouco por toda a parte, em grafítis e autocolantes, os slogans «O Porto já não são tripas», «Make Porto Podre again» ou «Porto Morto». Lembrei-me disto ontem, ao ver Vanitas , de Paulo Rocha, no Batalha. O filme é de 2004. Poucas vezes alguém mergulhou tão fundo na carne da cidade, na nossa carne, até às tripas. O Porto barroco, da morte e da terra molhada, dos fogos de Junho, do granito que nesse tempo transformava o dia em noite, do rio escuro, meio água meio lama. Esse Porto podre pertence já a outro mundo. Os próprios slogans perderam a força de um manifesto político e soam agora como um lamento, um canto fúnebre. Não apenas pela cidade soterrada sob os plásticos coloridos do turismo, mas por um Porto que já só existe na memória, no pó dos livros ou em certos filmes, como Vanitas .

Falam com grande gravidade e, apenas, o estritamente necessário.

João César Monteiro: Os diálogos que escreveste para o Mudar de Vida do Paulo Rocha também são resultantes de uma investigação prévia? António Reis: Nesse caso, a natureza dos diálogos deve-se primeiro, a um espírito muito conciso que tenho na poesia: o seu aspecto descarnado é também peculiar à região dos vareiros da Afurada, que eu conhecia. Havia uma certa afinidade com a maneira de falar da região porque eles falam com grande gravidade e, apenas, o estritamente necessário. Para além disso, o Paulo Rocha ia tratar um tema que eu estudara na adolescência, e isso foi determinante. Praticamente, vi sempre o diálogo na boca das pessoas. Por isso, tem muitos silêncios, muitos  staccatos , uma pontuação cinematográfica. Na verdade, julgo que criei um diálogo para cinema. Com esta sorte também: é que, na expressão poética eu era muito económico e conhecedor dos vícios em que se incorreu ao utilizar o diálogo como suporte de muitos filmes e estava, por ...