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A mostrar mensagens de junho, 2018

As Afinidades Electivas

Vieira da Silva, Le bout du monde , 1986. Biblioteca de Antonio Candido. Porto

Isto está ruim para os cavalos

Almanaque de Outono , de Béla Tarr, começa com uma epígrafe sobre fundo negro: Mato-me e não vejo o carreiro; Perdemo-nos, sim! Tanto monta! Estou que nos leva o diabo, Faz-nos dar volta atrás volta. Trata-se de um excerto da segunda estrofe do poema Demónios , de Púchkin, que, de resto, também serviu de epígrafe ao romance com o mesmo título de Dostoiévski . Ora, o curioso é que o poema contém vários versos que parecem legendas de planos de O Cavalo de Turim , o filme-monumento que Tarr realizou quase 30 anos após o  Almanaque de Outono . Galopam nuvens, rodam nuvens (...) Preto é o céu, a noite breu. Lá vou, lá vou, por campo aberto, Guizos din-din a tilintar... Nem que não queira mete medo, Medo o descampado alvar! «Arre, cocheiro, anda!...» — «E forças? Isto está ruim para os cavalos; (...) No jogo túrbido da lua, Ajunta-se o bando horrendo, Díspar, vasto, redemoinha Como as folhas em Novembro… (...) Aleksandr Púchkin, O cavaleiro de bronze e outros poemas . Tradução de Nin

Reality Show

Se, num sonho louco, Béla Tarr decidisse fazer um reality show , o resultado talvez não andasse longe do Big Brother . Almanaque de Outono é uma espécie de Big Brother filmado por um fanático da filosofia e génio do cinema.

Haverá outro tema?

No fabuloso texto de Edward Bond,  Using Lulu , dedicado ao teatro de Frank Wedekind, e publicado no Manual de Leitura de Lulu , há digressões que podem ser lidas como comentários a Provisional Figures . De resto, são infindáveis as ligações que se podem estabelecer entre as duas peças. O tema é exactamente o mesmo. Haverá, na verdade, outro tema? O capitalismo – o Dinheiro Total – subordina tudo às necessidades do mercado. Isto transforma de forma profunda a sociedade. Na verdade, a sociedade ocidental é a primeira que não cria uma cultura – ela é apenas um sistema. Não vivemos para criar uma cultura – existimos para manter um sistema. E, ao mantê-lo, não promovemos a humanização, como sucederia caso criássemos uma cultura. O capitalismo desumaniza-nos, não porque não seja suscetível de persuasão moral, mas por razões de ordem estrutural. Ao dinheiro dá-se precedência sobre outros elementos da sociedade, e assim damos novos sentidos a nós mesmos e à sociedade. (...) Para se autopre

Com o tempo fui-me habituando

Um ascendente possível de Provisional Figures , de Marco Martins, é Tempos Modernos , de Chaplin. Em ambos os casos, mulheres e homens são trágica e tenazmente devorados pela grande máquina. Humanos e animais transformados em alimento para o sistema fabril de trabalho em série. Elos de uma engrenagem altamente organizada, que é preciso manter com a docilidade de escravos. Alguns dos «actores» de Provisional Figures são operários de uma «fábrica de perus», em Great Yarmouth, cidade costeira do sul de Inglaterra. O trabalho envolve gestos automáticos, executados de manhã à noite: matar os perus, depená-los, arrancar-lhes as vísceras, cortar as asas e as patas, separar os peitos, etc. Uma espécie de «dança macabra», vinte e quatro horas por dia, sem intervalos ou falhas. Equipámo-nos num corredor comprido que tinha uma porta com cortinas de plástico, onde havia um cheiro intenso a merda e sangue. Quando abri as cortinas — qual é o meu espanto quando vejo perus pendurados por todo o

Gógol, o ghost writer de Harms

OMELETA — Permita que lhe pergunte: com quem tenho a honra de falar? JEVÁKIN — Jevákin, tenente na reserva. E, por minha vez, permita-me a pergunta: com quem tenho a felicidade de conversar? OMELETA — Ivan Pávlovitch Omeleta, intendente. JEVÁKIN (que ouviu mal) — Sim, também já comi alguma coisa. Sabia que o caminho ia ser longo e fazia frio: então, comi arenque com pão. OMELETA — Não, o senhor percebeu mal: Omeleta é o meu apelido. JEVÁKIN (com uma vénia) — Ah, desculpe! Sou um pouco duro de ouvido. Pareceu-me que o senhor se referiu a uma omeleta que tinha comido. OMELETA — Pois, nada a fazer! Já quis pedir ao general que me autorizasse a mudança de nome para Estrelado, mas os meus amigos disseram que ia dar ao mesmo. JEVÁKIN — Acontece, sim senhor. Na nossa terceira esquadra, todos os oficiais e marujos tinham nomes esquisitíssimos: Lixeirov, Aldrabónov, Pútridov, o tenente. Um aspirante da marinha, e bastante bom aspirante, tinha por nome Buraco. O comandante, às vezes, gr

Ideia para uma tese

Identificar todos os pontos de contacto entre os dez intermináveis minutos da curta-metragem Hotel Magnezit , de Béla Tarr , e o romance breve (talvez exista um outro nome para isto) de Joseph Roth, Hotel Savoy . Também vieram ter comigo pessoas dos últimos andares, e a procissão nunca mais acabava. Percebi que nenhuma dessas pessoas estava voluntariamente no Hotel Savoy. Todos estavam amarrados por uma infelicidade, e para todos o Hotel Savoy constituía a infelicidade, e ninguém sabia distinguir bem entre o hotel e a infelicidade. Todos os azares aconteciam neste hotel e acreditavam piamente que a infelicidade se chamava Savoy. Joseph Roth, Hotel Savoy .

A single dot of ink

Just as egregious to many was the sacrilege concerning a single dot of ink. At the end of the last chapter featuring the protagonist Leopold Bloom, you find literature’s largest period — a giant black dot on the page — the size of which Joyce worried over, instructing his French printers to make the first edition’s big dot even “more visible.” The big dot ends a long, hilarious chapter that parodies the kind of crisp, cold tone associated with scientific discourse. The Q. and A. format is precise to the point of exasperation. By the end of the chapter and hundreds of questions — “In what directions did listener and narrator lie?” “In what posture?” — the pesky interrogator finally asks, “Where?” To which Joyce drops his big fat dot, as if to say: Just shut up. But of course, that’s just one interpretation. Some see the big dot as Earth, viewed from the heavenly throne of God, who is often understood to be the annoyingly precise narrator of this chapter. Some think it’s a black hole or

Quatro haicais de Bashô, traduzidos por Manuel Bandeira

Quatro horas soaram. Levantei-me nove vezes Para ver a lua. * Fecho a minha porta. Silencioso vou deitar-me Prazer de estar só... * A cigarra... Ouvi: Nada revela em seu canto Que ela vai morrer. * Quimonos secando Ao sol. Oh aquela manguinha Da criança morta! Manuel Bandeira, Selecta em Prosa e Verso.