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No grau ínfimo da intenção literária

Talvez um dia mais tarde sintamos que aquela parte da nossa literatura, que surgiu no grau ínfimo da intenção literária, seja a mais intensa: todos esses relatos, cartas, diários, que se geraram nas grandes batidas, nos cercos, nos açougues do nosso mundo. Ernst Jünger, O Passo da Floresta . Tradução de Maria Filomena Molder.

En vert et contre tout

Apesar de Jean-Pierre Léaud dizer que passa as tardes no Flore a ler ,  só o vemos com “À procura do tempo perdido”  — e o filme  tem três horas e quarenta minutos! O livro (com dedicatória) que ele tenta oferecer a Gilberte é “Os desastres de Sofia” (curiosa, mas não inédita, a ligação de Proust à Condessa de Ségur).  Em casa de Marie, quase escondido, o Cahier Michaux , das Editions de L’Herne .  Em casa do amigo, um livro sobre as SS.  Há mais algumas citações esparsas (Bernanos, Borges, Céline? et al .) O resto é a perfeição e diversidade literária do texto de Eustache: muitos aforismos, críticas de todos os tipos, pequenas narrações, confissões, diálogos, monólogos,  anedotas , etc. Contra todos.

O coração contrai-se

Qualquer trabalho usa o instrumento, polir lentes estraga os olhos, extrair carvão, os pulmões, etc. E quando nos dedicamos à literatura o coração contrai-se. Uma coisa vale a outra. Será preciso embalsamar as nossas forças para as enterrar vivas connosco? De modo nenhum. Nós devemos servir-nos delas. Uma vez mortas, cumpriram o seu dever. "A vida não vale nada se a estimarmos." Ela já está morta se não estivermos sempre dispostos a sacrificá-la. Heinrich von Kleist, carta de 20 de Julho de 1805, dirigida a Maria von Kleist (sua prima). Citada por Maria Filomena Molder, na folha de sala de O Duelo .

Mas publicaram Safo?

Ouvi dizer que Mandelstam respondeu nestes termos irónicos a um jovem escritor que se lhe queixava [de não ser publicado]: «Mas publicaram Safo? E as obras de Cristo foram impressas?» Entre aqueles que não são publicados, há os que verdadeiramente não o merecem ser. Certos livros «não passam», e ainda bem. Na literatura dissidente há muitas vezes (por muito penoso que nos seja admiti-lo) mais dissidência que literatura. Tudo isto não divide apenas a literatura enquanto tal, mas igualmente as forças criativas e espirituais de que decorre. Predrag Matvejevitch, Epistolário Russo . Tradução de Pedro Tamen.

Seguir caminho

Acho que foi com a literatura que aprendi este truque: transformar um acontecimento grandioso, de consequências devastadoras, numa coisa de nada. Um papelzinho que amachucamos e metemos no bolso. Seguir caminho.

Silogismo truncado

Ontem foi avistado um abutre numa estação de metro em Matosinhos . Lembrei-me logo do bom humor de Kafka . Se calhar não é só falta de jeito, se calhar a literatura actual é um bocado murcha apenas porque a realidade é demasiado exuberante.

Outro que tal

Por mais mais voltas que dê, não consigo descrever Franz Polzer. Posso arrumá-lo na secção pobres diabos , sim, mas tem de ficar num quarto incomunicável porque essa categoria não permite nem diálogo nem irmandade. Tudo o que pode ser dito sobre Polzer, está escrito n’ Os Mutilados — o resto são interpretações de segunda, discursos frágeis, variações menores. O grande passo da literatura é a capacidade de transformar palavras e personagens, coisas intangíveis por natureza, em objectos únicos. Uma obra literária é como uma árvore ou uma pedra — guarda o mesmo mistério. Não se deixa apanhar.

O princípio da troca de Locard

Aborrece-me esta exaltação tão magnânima sobre a morte de Agustina Bessa-Luís. Geralmente isto significa que vai haver muito falatório e pouca leitura. Transformar um escritor em herói da pátria é sempre má ideia. Por outro lado, é muito cómico descobrir os tiques mais enfáticos da circunstância: os especialistas que se põem nas pontas dos pés tipo “eu é que sou o presidente da junta”; os que estão prestes, prestes, a dizer “Agustina Bessa-Luís sou eu”; e ainda os mais sofisticados que aplicam cientificamente o princípio da troca de Locard com o mindinho: através do contacto entre dois items, irá haver uma permuta .

Sapos & homens

O Princípio da Singeleza não se aplica a Bufo & Spallanzani. Neste romance tudo é fim, aparato e fausto. O ritmo rápido e engatilhado das sequências é uma pista falsa. Aliás, creio que Guedes, o tira, só existe com aquelas qualidades tão planas para contrastar com o multiforme Gustavo Flávio (em francês, Gustave Flaubert). Narrador e narração são exuberantes, no sentido dos pássaros que ganham cores e dimensões exageradas para as suas conquistas sexuais (ver Ronald Fisher). A questão do género policial também é um artifício, o homicídio de Delfina Delamare (em francês, Delphine Delamare) não passa de um macguffin. Conclusão: Bufo & Spallanzani não é bem um livro, mas uma aula de literatura — convém chegar prevenido. Só recebe quem dá. ——— “É apenas uma história de sapos & homens. Nada a ver com a simbologia de Of mice and men . Na orelha do livro o editor dirá alguma coisa para ilustrar e motivar o leitor. Na França, pois o livro será editado em outros países, como te...

Perícia com facas e parafusos

Percebe-se que a literatura era (completamente pretérito imperfeito) um ofício duro ao ler “O que Maisie sabia”. Henry James maneja as palavras como um cozinheiro japonês maneja facas. É preciso ajustar a nossa respiração ao ritmo da frase: longa, sinuosa, enigmática. Claro que só é possível compreender isso porque o tradutor (Daniel Jonas) também sabe lidar com facas. O livro é um romance (de formação, apetece acrescentar), mas também o testemunho de uma prática que caiu em desuso.

Mal-estar

Eugène Ionesco queixa-se várias vezes, em A Busca Intermitente , da sua obstipação crónica e das constantes crises hemorroidárias, que quase o impedem de escrever. Vassili Grossman, por seu lado, dedica várias páginas, em Bem Hajam! , aos terríveis desarranjos intestinais que experimentou em diferentes ocasiões sociais, na Arménia, e que o conduziram ao limiar do desespero. Durante um desses episódios, chega a considerar a hipótese, logo afastada, de estourar os miolos para escapar à vergonhosa catástrofe: «Se tivesse comigo um revólver… Mas não, por certo que não me daria um tiro na cabeça. Teria sofrido uma vergonha pungente, inédita, tornar-me-ia uma lenda obscena, um herói do folclore grosseiro, mas não me mataria a tiro.» A natureza está sempre a pregar partidas muitíssimo misteriosas à literatura. Que estranhas e secretas ligações há entre a escrita e os intestinos? Pudesse a literatura livrar-se das desordens e angústias do corpo, e o que restaria dela?