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A mostrar mensagens com a etiqueta palavras

Bisogna trovare le parole giuste: le parole sono importanti!

Leio no jornal que Ana Gomes foi ilibada pelo Tribunal da Relação do Porto no caso em que chamou «escroque» ao empresário Mário Ferreira. Os excertos que o jornal cita do acórdão , redigido pelo juiz João Pedro Pereira Cardoso, são um tesouro da linguagem: No significado mais ecléctico do vocábulo ‘escroque’, acrescentar o sinónimo ‘desonesto’ ou ‘vigarista’ a um ‘criminoso fiscal’ não passa de uma redundância pejorativa intensificada. Não existe criminoso fiscal que não seja desonesto, pelo que a utilização interligada dos vocábulos não passa de uma crítica mais severa ou exagerada. [Ana Gomes considera que Mário Ferreira], na sua actividade empresarial, exibe um padrão de comportamento trapaceiro, de mentiras e embustes quanto ao cumprimento das suas obrigações fiscais — um comportamento, em suma, de escroque, vigarista ou desonesto.

«Não tenho palavras»

Desde o dia 7 de Outubro, há um estribilho vindo de longe que atravessou trevas e sofrimentos para desaguar mais uma vez no discurso de muitos colunistas regulares ou esporádicos da imprensa: “Não tenho palavras”. Seríamos levados a pensar que se trata da confissão derradeira de um naufrágio linguístico do pensamento, ou do desespero que antecede o sucumbir, como acontece na ópera de Schönberg Moses und Aron, quando Moisés pronuncia a sua última réplica, que fez correr rios de tinta: “O Wort, du Wort, das mir fehlt!” (“Oh palavra, tu palavra, que me faltas”). Mas não, até agora não vi ninguém sucumbir depois de gritar publicamente o seu desespero linguístico; pelo contrário, essa afirmação antecede ou culmina quase sempre uma animada tagarelice. António Guerreiro, jornal  Público , 20 de Outubro de 2023.

Othon, de Huillet-Straub

O que há de mais sólido no mundo são as palavras. Creio que também é isso que Othon prova. As palavras são feitas de um material próprio, cujo segredo os próprios físicos ignoram. Os carros continuarão a circular em Roma até serem substituídos por outra coisa qualquer. Os regimes cairão em silêncio ou com estrondo, e outros surgirão em seu lugar. O tempo continuará a produzir ruínas. Mas aqueles personagens permanecerão ali, onde sempre estiveram, a dizer aquelas palavras, até não restar mais nada.

O Cervejal

Foi para aí nos anos oitenta: um tipo que trabalhava para a companhia de teatro TEAR, uma espécie de contínuo, referia-se à peça de Tchékov como «O Cervejal». Não era um trocadilho, pensava mesmo que era assim que o texto se chamava. Sem querer, e por pura afinidade ( tendência dos corpos para se unirem ), tinha inventado uma palavra. Se estivesse para aí virado (quer dizer, se fosse o Valério de «Leôncio e Lena » ) até podia criar um conceito. E que conceito!

Liberal Radical Autêntico

Já são conhecidos os resultados das eleições presidenciais no Paraguai. O candidato derrotado, Efraín Alegre, é o líder do Partido Liberal Radical Autêntico. Leio isto no jornal e ocorre-me de imediato a imagem de Nanni Moretti, de roupão e touca, em Palombella Rossa , a gritar como um louco: «Le parole sono importanti! Le parole sono importanti!»

Palavras familiares

Estou a traduzir um texto da Chantal Akerman em que ela usa palavras da mãe. Ela é boa a usar as palavras da mãe, consegue agarrar a voz e os medos e a escuridão e o amor que essas palavras encerram. Para fazer o meu trabalho de intermediária, tive de convocar as palavras da minha mãe e da minha avó e, mais uma vez, dei-me conta do enorme património que me deixaram: palavras muito simples, imperfeitas, quase esbotenadas, mas com uma potência desarmante.  Quando usamos as palavras dos mortos acontece uma coisa curiosa, é como se nos encontrássemos a meio do caminho, eles um pouco vivos e nós um pouco mortos.

Ensaio de natal

Muñoz Machado ha querido destacar las modificaciones introducidas por iniciativa del escritor y académico Javier Marías, fallecido el 11 de septiembre: hagioscopio, que es la abertura o pequeña ventana hecha en la pared de una iglesia, desde donde se puede ver el altar; otra es una adición al término traslaticio como relativo a la traducción, y una nueva acepción, sobrevenido, como adjetivo que significa impostado, artificial. As três palavras juntas podem ser o início de uma história. Ou de um ensaio. 

Cimeira dos passos perdidos

Para além das palavras (banir os trabalhadores, saturar a resiliência, afrouxar a disrupção, etc. etc.), as agências de comunicação também deram cabo das camisas brancas. Vesti-me como Asako e afinal parece que vou para uma cimeira.

4 Aventuras de Reinette e Mirabelle

Sem a avalanche habitual de palavras, os filmes de Rohmer seriam outra coisa. E, no entanto, em Reinette e Mirabelle busca-se o silêncio. Um silêncio que só é possível «escutar» longe das cidades e durante um breve minuto, na hora azul, quando os animais nocturnos adormecem e os diurnos acordam. Mesmo assim, há um motor que se ouve ao longe. Ou quando Reinette quer provar, num jogo com Mirabelle, que é capaz de passar um dia inteiro sem dizer uma palavra. Reinette ou Rohmer em modo auto-irónico?

O homem mais feliz do mundo

Ouço na rádio a notícia de que está em Portugal, para dar uma conferência, um tipo que é «considerado o homem mais feliz do mundo». Não me engano. O jornalista repetiu diversas vezes que o conferencista — não consegui reter o nome — é «considerado o homem mais feliz do mundo».  A concorrência feroz entre gurus, xamãs, feiticeiros, padres, é tão antiga como a humanidade. Mas antes era preciso provar a autoridade espiritual com milagres ou feitiços. Agora, basta afirmar que um tipo é «considerado» o homem mais feliz do mundo. E o pior é que as palavras não ganharam mais peso no domínio da fé. Pelo contrário. As palavras transformaram-se em cuspo.

Branco e preto

Estava a subir as escadas rolantes do metro do Campo 24 de Agosto, talvez demasiado cansada para pensar, quando percebi que “sim” corresponde ao branco da neve de Walser e “não” corresponde ao negro da Branca de Neve de João César Monteiro. Traduções exactas cada uma delas. A mesma origem, caminhos diametralmente opostos e, no entanto, são — continuam a ser — as duas a mesma coisa.  Também no mundo das cores e das palavras vigora o princípio da incerteza.

Sensorium

A aula sobre Hamlet é um amontoado de ideias brilhantes. Bradley deixa-se levar por uma corrente que não sabemos nunca se é um delírio intelectual ou um sentimento ou tudo ao mesmo tempo (Iris Murdoch é suficientemente generosa para nos permitir a ambiguidade como um deleite). Mas uma coisa percebemos sem sombra de dúvida: as palavras são um dispositivo sensorial poderoso; entram no nosso corpo como uma espada.

O privilégio de compreender a vulgaridade de Shakespeare

Há várias referências a Hamlet e Shakespeare n’ O Príncipe Negro , as que me interessam mais são estas quatro:  Na página 141 (edição da Relógio d’Água), Julian e Bradley encontram-se por acaso na rua e acabam por falar outra vez sobre Hamlet. Digamos que é um divertimento provocador ao ar livre; uma ocasião propícia aos simbolismos (antecede a oferta das botas roxas a Julian); aquilo que mais tarde, no relatório policial, transforma-se num momento crucial para a acção, ou seja, a desgraça. A aula, propriamente dita, começa na página 170 e já dispõe de cadeiras, mesa e livros. Aqui Bradley supera-se (só não sei se é na própria altura em que tudo acontece ou depois quando descreve a situação):  «Porque Shakespeare conseguiu, através da pura meditação sobre o tema da sua própria identidade, criar uma nova linguagem, uma retórica especial da consciência…» (…) «O ser de Hamlet é feito de palavras, tal como o de Shakespeare.»  « Palavras, palavras, palavras .»  «Há alguma obra da história d

A palavra retoma consciência

Ao utilizarmos as palavras correntes esquecemo-nos de que são fragmentos de histórias remotas e eternas, e que construímos - como os antigos - a nossa casa com estilhaços das estátuas dos deuses. Os nossos conceitos e termos mais concretos são derivações muito remotas dos mitos e das histórias antigas. Não há um único átomo nas nossas ideias que não provenha daí, que não seja uma mitologia transformada, estropiada ou alterada. (...) A poesia reconhece o sentido perdido, restitui as palavras ao seu lugar, enlaça-as de acordo com certos significados. Manejada por um poeta, a palavra retoma consciência, digamos assim, do seu sentido primevo, desabrocha espontaneamente segundo as suas próprias leis, recupera a sua integridade. Bruno Schulz, A mitificação da realidade . Tradução de Patrícia Guerreiro Nunes.

Quem mexe os cordelinhos?

Fui rever Days of Being Wild , de Wong Kar-Wai. Desta vez, o que me impressionou foi o som. Os personagens, já se sabe, pouco falam. Mas entre as palavras, o que existe não é o silêncio, mas o ruído. Os amantes expressam-se, quase sempre, através do barulho ensurdecedor dos gestos. O barulho desesperado das mãos, dos braços, das pernas, dos pés, dos olhos, dos lábios. O filme é uma sucessão de corpos aos gritos. Corpos presos por arames invisíveis que os arrastam fatalmente para longe uns dos outros.

Deixa a tristeza sair

Não há em português uma expressão com a força de avoir le cafard  e não se percebe porquê — tristeza não nos falta. Podemos traduzir por estar triste, tristonho, destroçado, sorumbático, macambúzio, ou até mesmo “em baixo” — mas falta qualquer coisa. Um substantivo vulgar (como a barata francesa) ou um adjectivo musical (como o azul inglês), uma palavra sem grande reputação mas que sozinha consiga mostrar o buraco em que caímos e que estimule a matéria semântica (ganhar musgo).  Qual? Talvez “na fossa”? Tem uma força sensorial formidável, é certo, e Cioran até era capaz de gostar da imagem, mas não encaixa nos seus aforismos (lamentável desencontro geográfico). Fica para a próxima.