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A mostrar mensagens de março, 2017

Luxo

A ideia de que a morte deve ser o principal tema de reflexão e o objecto principal da atenção dos vivos nasceu com o luxo - com a abundância de reservas. Daí a estranha pergunta: perante coisas inúteis, em que pensar? Paul Valéry, Fragmentos narrativos. Tradução de Leonor Nazaré. Este livro é uma edição Dois Dias, casa editora que será apresentada na Sede, no próximo sábado, 25 de Março, pelas 17h00.

Mas um homem não é um cão.

«Seria possível a teoria dos reflexos condicionados de Pavlov levar as pessoas a obedecer à doutrina do Cristianismo?», pensou o Cardeal [Pölätüo] para consigo. Colocou uma folha de papel na sua macchina da scrivere e dactilografou com dois dedos: Para evocar reflexos são necessários estímulos. Os estímulos podem ser positivos ou negativos; exemplos: alimentos ou dor. Estes estímulos encontram-se nas mãos do poder secular, Temporal. Pensou mais um instante, após o que escreveu: Mas um homem não é um cão. Para um homem, os estímulos materiais são desnecessários. Para um homem, basta dizer que ficará confortável, ou que irá sofrer. E estes estímulos, positivos e negativos, estão acessíveis às mãos da Igreja. A campainha da máquina de escrever fez-se ouvir no final da linha. Pölätüo rodou o carreto. De repente, os seus dedos começaram a saltar sobre as teclas como se tivessem vontade própria. Mas esses estímulos já se encontram nas mãos da Igreja. São o PARAÍSO e o INFERNO! (...) E

A arte pode ser feita por programas de computador? Ou ela requer alguma dimensão específica e irredutivelmente humana?

Tendemos a pensar que a arte é o reduto último de afirmação da irredutibilidade de nossa espécie; portanto, uma justificação inexpugnável de sua singularidade, senão de sua superioridade.  (...) A filosofia da composição , de Edgar Allan Poe, revelou o quanto de pensamento crítico e consciente está em jogo durante o processo de criação (menos misterioso e inspirado do que se queria, portanto); nos poemas destituídos de eu lírico de Mallarmé, a própria linguagem parece ser o sujeito que escreve; nas Iluminações de Rimbaud já não se descreve nenhuma realidade factual ou externa, mas puras paisagens mentais; os artigos de Proust contra Sainte-Beuve, o crítico biográfico, observam que o eu civil do artista não se confunde com o eu da obra; os formalistas russos, já no início do século XX, inauguraram uma concepção radicalmente material da linguagem; há ainda a boutade precisa de Gide (“Com bons sentimentos se faz má literatura”); daí ao estruturalismo e, logo, à anunciada morte do autor
Raul Brandão.

Tens passado a vida a esperá-la

Que outra coisa fizeste na vida senão esperar a morte? É a tua maior preocupação. Debalde a arredamos: a vida não é senão uma constante absorção na morte. Então para que nasci? Para ver isto e nunca mais ver isto? Para adivinhar um sonho maior e nunca mais sonhar? Para pressentir o mistério e não desvendar o mistério? Levo dias, levo noites a habituar-me a esta ideia e não posso. Raul Brandão, Húmus . No domingo, 12 de Março, ªSede assinala os 150 anos do nascimento de Raul Brandão.

O Lado B de Húmus

Pergunto-me se Húmus pode ser lido como uma espécie de Lado A de Pedro Páramo . E Pedro Páramo o Lado B de Húmus . Onde há humidade no primeiro, há extrema secura no segundo. Onde há frio em Húmus , há calor tórrido em Pedro Páramo . Onde há negrume em Brandão, há uma luz torturante em Rulfo. De resto, a angústia é a mesma. Os fantasmas são os mesmos. O sentimento de perda é semelhante. Tudo está morto, incluindo tudo o que está vivo. (Fotografia de Juan Rulfo) No domingo, 12 de Março, ªSede assinala os 150 anos do nascimento de Raul Brandão.

Na Suécia medieval, não se jogava a bisca

Para enganar a morte e o tempo, as personagens de Húmus (ou será melhor chamar-lhes espectros, sombras?) jogam um eterno jogo de cartas: “Não há anos, há séculos que dura esta bisca de três - e os gestos são cada vez mais lentos. Desde que o mundo é mundo que as velhas se curvam sobre a mesma mesa do jogo. O jogo banal é a bisca - o jogo é o da morte...” A diferença entre Brandão e Bergman é o tipo de jogo. No Sétimo Selo , o cavaleiro e a morte jogam xadrez. O resultado, no entanto, é o mesmo: ganha a morte. No domingo, 12 de Março, ªSede assinala os 150 anos do nascimento de Raul Brandão.

Se eu gritar

No capítulo “Deus” de Húmus , lê-se: “Preciso de um Deus que me atenda, que me escute, que saiba que sofro e que me veja sofrer. (…) Debaldo grito – não há quem me ouça. (…) Deus, tu és monstruoso!” Em 1923, Rainer Maria Rilke publica as Elegias de Duíno . Eis os primeiros versos da primeira elegia: Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua natureza mais potente. Pois o belo apenas é o começo do terrível, que só a custo podemos suportar, e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha destruir-nos. Todo o Anjo é terrível. (Tradução de Maria Teresa Dias Furtado.) No domingo, 12 de Março, ªSede assinala os 150 anos do nascimento de Raul Brandão.

Tempo e granito

A “vila” que serve de cenário a Húmus , de Raul Brandão, pode ser qualquer vila ou cidade. É uma pura abstracção: “A vila é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro”. Mas desde a primeira linha que não consigo deixar de pensar no Porto, cidade onde o escritor nasceu e que ele conhecia bem. (Esta mania de os leitores precisarem de pontos de referência para não perderem o pé. Um leitor de Guimarães dirá que se trata de Guimarães e ninguém poderá negá-lo.) A vila de Húmus é feita de granito, um “granito salitroso”, erguendo-se sobranceira ao mar (o mar é uma ficção minha). Granito que impõe ao texto um tom duro, cinzento e escuro. “Estátuas de granito a que o tempo corroera as feições.” A pedra do Porto que é feita de quartzo, feldspato, mica e tempo. Camadas de tempo que se acumulam umas sobre as outras, num longo e lento trabalho que se repete infindavelmente: “Passou um minuto ou um século?” E a humidade que se apodera de todas as coisas, vivas e mortas: “A humidade entranhou-se n

Raul Brandão, 150 anos

Para ti, nada é sagrado

LÉON - Ó Mamã, evitemos os dramas à Ibsen, com toda aquela tragédia tramada acerca das profissões das personagens e das deficiências de cada uma. Prefiro as tragédias de sopa fria à Strindberg. A MÃE - Para ti, nada é sagrado. Tratas o Ibsen e o Strindberg tão mal como me tratas a mim. Stanislas Witkiewicz, A Mãe . Tradução de Luiz Francisco Rebello.