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La mirada de John Wayne

Em «Simetrias — os 5 actos nos filmes de John Ford», Paulino Viota elogia os textos de Javier Marías sobre o realizador americano. Como estou sempre na disposição de me desviar do caminho traçado, fui procurá-los. O que Marías escreveu sobre o olhar de John Wayne depois de beijar Maureen O’Hara no cemitério é formidável ( El reino de la posibilidad , El País Semanal, 16 de março de 2014) . Eles estão encharcados pela chuva e colados um ao outro e apaixonados, sim. Mas há uma certa gravidade nos olhos de Wayne — como se tivesse encontrado e perdido não se sabe o quê nesse preciso instante —, qualquer coisa que é quase uma tristeza ( uma tristeza doce , diria Walser). Através desse olhar, percebemos como são complicadas as relações entre homens e mulheres. Como nos filmes Passion , de Godard. Ou em Onde Jaz o teu Sorriso? , quando Danièle (que é uma verdadeira mulher de Ford, como todas queremos ser) diz: Sicilia! ... se nos apaixonámos e nos apeteceu fazer o filme foi po...

A Barcelona

Retrospectiva i cartablanca a Paulino Viota:   Las ferias,  José Luis,   Tiempo de busca, Fin de un invierno,  Duración, Contactos,  Con uñas y dientes,  Cuerpo a cuerpo,  (P. Viota) Der Bräutigam, die Komödiantin und der Zuhälter  (Danièlle Huillet i Jean-Marie Straub) Staroie i novoe (S. Eisenstein) Hatari! (Howard Hawks) The Sun Shines Bright (John Ford) Roma (F. Fellini) Bande à part (Jean-Luc Godard)

Quarteto de cordas (no meio do Atlântico)

Escrevi um texto para os Encontros de Cinema do Fundão em que me aproximo dos filmes de Huillet, Straub, Godard e Costa através da música. Os textos que escrevo não são términos, ficam sempre a meio do caminho para outra coisa; e agora que ando a ler o livro de Jacques Rancière sobre (os quartos de) Pedro Costa, principalmente nas conversas com Cyril Neyrat, percebi que mais do que leviandade ou teimosia, o meu gesto tinha um desígnio escondido.  Na verdade, fiz o que fiz também para evitar um olhar demasiado preso às imagens e significados. Pedro Costa é bom, é mesmo muito bom, a construir imagens simultaneamente perturbadoras e belas e eu queria libertar um pouco os seus filmes de tanta interpretação estética. Porque nós somos assim: mal vemos uma imagem, parecemos polícias ou psicanalistas, levantamos um inquérito e queremos saber o que é que ela significa. As garrafas verdes cheias de pó junto à janela passam a ser una natureza morta (ou um plano-almofada?) que é preciso diss...

Sagen Sie’s den Steinen

Apetece brincar à cama de gato e pegar nas linhas éticas/estéticas com que o Luis Miguel Oliveira juntou Trás-os-Montes , No Quarto de Vanda e Sicília! e, seguindo a minha pancada por pedras, mudar a forma para: Trás-os-Montes , The Searchers , Antígona . — Rui! Rui! Que pedra é esta?  — É a pedra do raio! Quando há trovoada muito forte, cai o raio, entra pelo chão adentro…então fica lá uma pedra muito pesada e muito escura!

Uma história de sentido ainda oculto

Uma das coisas bestiais dos mortos é que aparecem de imprevisto. O meu fim-de-semana foi inteiramente assombrado/iluminado por Cesariny. No sábado, Pedro Costa explicou que o título do filme sobre Danièle Huillet e Jean-Marie Straub começou com a longa cena do sorriso quântico de Silvestro, passou moto-contínuo para o segundo plano de Von heute auf morgen , e daí para o grafito no muro: Wo liegt euer Lächeln begraben ?! Mas a tradução literal para português tinha um ritmo pesado, então o Pedro pediu a alguém para pedir ao Cesariny um golpe de asa . E o jovem mágico das mãos de ouro decidiu muito depressa ( como se fosse de moto ) cortar uma palavra: Onde jaz o teu sorriso escondido ? Só isso. Outra vez a tal redução que intensifica, a elipse que ilumina, o suspiro que se transforma num romance. No domingo, na A3 a caminho de Famalicão, vi um cartaz verde com o nome de Cesariny. Tinha mais palavras escritas mas só li Cesariny, ali sobranceiro à auto-estrada, no meio das árvore...

Coisas escondidas

Uma vez que se tratou de uma encomenda, Onde jaz o teu sorriso?  não devia ser o filme mais indicado para descobrir Pedro Costa. É certo que ele definiu que a melhor forma — a única, aliás — de filmar Danièle Huillet e Jean-Marie Straub era a trabalhar; encontrou uma porta, uma janela e os sítios justos para pôr a câmara; e manteve-se extremamente atento e discreto. Enfim, fez a tal redução que, no fundo, é uma concentração.  Mesmo assim, é assombroso que um filme deste tipo, com constrangimentos e que esteve tão perto de não ser realizado, consiga apanhar tão profundamente não só as características mais inteiras e humanas de Huillet e Straub, mas também o lado mais escondido de Pedro Costa.  «Se houver uma longa paciência, estará carregada do seu contrário, (...) estará carregada de ternura e violência», diz Straub.

Er ist das Einfache / Das schwer zu machen ist

A conferência de Bernard Eisenschitz foi interessante e inspiradora. A ideia de fazer um apanhado de pequenas histórias ( anedotas , no sentido das de Kleist) sobre os filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub é óptima porque consegue projectar na obra que os dois construíram (filmes simples, difíceis de fazer) um segundo vento que dá prazer e faz sorrir — e tudo que contraria a idolatria no amor é revigorante.  A própria conferência deu origem a duas anedotas. Os problemas na passagem de excertos de som e imagens (parecia que estávamos numa colectividade sem equipamentos) foi, obviamente, a piscadela de olho habitual a Tati (já tinha apanhado o barulhinho das sapatilhas do fotógrafo sobre o chão de mármore do átrio). A outra é de ordem textual: na sua intervenção, Bernard Eisenschitz utilizou várias vezes a palavra comunista e até citou o elogio de Brecht (tantas vezes usado por Straub) que explica que o comunismo é a coisa mais simples que há e a mais difícil de executar ( E...

Os olhos não querem estar sempre fechados

Um dos obstáculos ao trabalho de Huillet e Straub é o próprio cinema, isto é, a forma como ele se optimizou para ser uma actividade extremamente lucrativa que começa e acaba em classificações: a produção define o tipo de história (policial, comédia romântica, musical, etc. etc.), arranjam-se verbas enormes de financiamento, formam-se equipas (talvez fosse mais certo dizer esquadrões?), o filme entra no ciclo rápido de execução e, no fim da linha de montagem, os críticos classificam-no com estrelas. Trata-se de toda uma constelação fictícia, tão alheada do que se passa em redor que é raro encontrarmos nesses produtos audiovisuais a mais pequena centelha de vida — se cheiram a alguma coisa é a dinheiro. Mas é esse cinema que as pessoas reconhecem e esperam encontrar nas salas e na televisão, nos computadores e nos telemóveis. É uma corrente de imagens com uma força incrível que varre tudo e que já passou para as séries e para a publicidade e para a comunicação unipessoal das redes so...

Um filme de Danièle Huillet

Na apresentação de L’itinéraire de Jean-Bricard (2008) na Cinemateca Francesa, Jean-Marie Straub afirmou, para surpresa e confusão de todos, que se tratava de um filme hitchcockiano. Ele gostava dessas frases bombásticas e, creio, num sítio cheio de cinéfilos, deve-lhe ter dado ainda mais gozo deixá-los de boca aberta. No entanto, tudo o que ele diz é verdadeiro, mesmo que se encontre sob o efeito de fogo de artifício. Depois de recusar os raciocínios mais evidentes (e falsos), acabei por perceber que talvez Straub se referisse ao método. O filme já tinha sido discutido e estava todo planeado. No fundo  L’itinéraire de Jean-Bricard já existia, só faltava filmar . É nesse sentido que é hitchcockiano. É nesse sentido que é um filme (essencialmente) de Danièle Huillet. 

Mulheres, homens e árvores

Por um improvável alinhamento das leis da física, cruzámo-nos no fim-de-semana com Chantal Akerman, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. No sábado, vimos D'est e, no domingo, Europa 2005, 27 Octobre , Le Genou d’Artémide e Itinéraire de Jean Bricard . As semelhanças entre D'est (1993), de Akerman, e Itinéraire de Jean Bricard (2007), de Straub/Huillet, são muito surpreendentes. Em ambos os filmes, há longos travellings laterais sobre elementos ordenados em filas. Filas de pessoas à espera de um comboio, de um autocarro ou de vez para comprar pão, em vários locais do Leste da Europa, em Akerman. Filas de árvores , nas margens do rio Loire, em Straub/Huillet. As pessoas lembram árvores de um bosque, as árvores lembram pessoas paradas no Inverno.  Em ambos os filmes, há um mundo em extinção. Em D'est , o fim do bloco soviético. Em Itinéraire …, o fim da paisagem natural da Île de Coton, ameaçada por um desastre ecológico.  Nos dois, o som dominante em grande parte das seq...

Uma certa alegria enterrada

Uma das piores coisas que podem fazer aos filmes de Huillet e Straub é cortar-lhes o diálogo, apresentá-los como obras cinematográficas desgarradas ou, pior ainda, como  objectos artísticos . Esse isolamento não é mais do que um caminho de redução, esquecimento e morte. Pela minha parte, faço tudo o que posso para os aproximar do ar livre, dos outros, dos meus pequenos gestos diários (ajudam-me tanto a ver a ouvir e a descobrir no fundo de tudo uma certa  alegria   enterrada ). No sábado levei Karl Rossmann ao Nimas para falar de O sangue .  Amanhã, levo o método de Trop tôt, trop tard para encostar a D’est,  de Chantal Akerman .

Verde, vermelho, laranjas

Não é nenhum mecanismo expositivo , é uma consequência natural mas inesperada. Como estimulamos muito os receptores à cor verde lá dentro, quando saímos da exposição dedicada a Huillet e Straub as paredes brancas junto à porta ganham a cor complementar vermelha. Vou considerar isto uma resposta cromática dos mortos. *** Mesmo ao lado da Casa de Cinema Manoel de Oliveira há um quintal onde crescem laranjas — restos de uma zona que foi rural antes de ter sido apropriada pelos ricos. Sobre o muro, uma rede verde corta a vista; no topo da rede, três câmaras de segurança. As laranjas estão vedadas e, no entanto, são elas que nos aproximam de Sicília!
Desta vez, Antígona  pareceu-me claramente um western como os de John Ford. Bom, entusiasmei-me, devia dizer que o filme faz parte dessa família, um ramo menos cavalgante, sem dúvida. Consigo arranjar quatro provas: Creonte e Antígona têm o ímpeto físico dos actores de Ford; o teatro do Segesta, na Sicília, faz lembrar um daqueles tribunais onde o realizador americano mostra a ruindade dos poderosos e a solidão dos justos; é o filme com mais pedras que já vi; e, como diz Straub, «John Ford ainda é o mais brechtiano dos cineastas, porque mostra coisas que fazem com que as pessoas pensem raios me partam, isto é verdade ou não ?»

A revolução do tigre

Talvez Cézanne seja o filme mais elucidativo de Huillet e Straub. Elucidativo no sentido concreto de trazer luz às obsessões e métodos de trabalho do pintor, mas também ao modo como os cineastas vêem a realidade e se afadigam para a registar em película, na sua integridade e não em aparências vãs. Se olharmos com atenção (como não fizeram os tipos do Museu d'Orsay), conseguimos perceber o imenso labor envolvido neste filme. Na escolha dos excertos das conversas com Joaquim Gasquet é visível mais do que concordância, uma afinidade participativa, digamos assim. Huillet e Straub são solidários praticantes com todas aquelas afirmações intensas sobre a atracção pela matéria e o desprezo por distracções de estilo ou interpretação. A austeridade de Cézanne é a austeridade de Huillet e Straub. (Não se enganem, porém, se o caminho é de pedras, o resultado é, pelo contrário, sumptuoso. Ricos e plenos, assim são os quadros de Cézanne e os filmes de Huillet e Straub. Como se diz das uvas q...

Sindicato dos mortos

As coisas que ficam de fora das homenagens oficiais são sempre as mais interessantes. Por exemplo, gostava, mas gostava mesmo muito, de ouvir alguém a falar das condições de trabalho da Danièle Huillet e do Jean-Marie Straub: as dificuldades para conseguirem as câmaras e as objectivas necessárias, o dinheiro para a película e para o laboratório, as legendas feitas aos poucos mas bem feitas, os meses a preparar a leitura e a respiração, os orçamentos reduzidos mas geridos com extremo cuidado para poderem pagar o devido à equipa, ... — essas questões materiais e proletárias que foram tão marcantes nas suas vidas e nos seus filmes não entram nas salas dos museus. E também as portas que lhes fecharam na cara; talvez agora essas pessoas que, sem dúvida, ocupam lugares importantes em instituições de prestígio internacional, citem os seus nomes com um arzinho etéreo tentando sacar um pouco de prestígio alheio? O Musée d’Orsay não encomendou e depois recusou Cézanne ? Também é preciso contar...
Cézanne: Pinto as naturezas mortas para o meu cocheiro que as não quer. Pinto-as para que as crianças ao colo dos avós olhem para elas enquanto comem a sopa e balbuciam. Não as pinto para o orgulho do imperador da Alemanha nem para a vaidade dos comerciantes de petróleo de Chicago.

Sardoniscas

Tirei uma semana de férias para tratar de assuntos importantes. Primeiro assunto importante: ler. De manhã, tento avançar umas páginas no segundo volume do diário de Gombrowicz , mas não me sai da cabeça a imagem das sardoniscas a atravessarem dois planos de A Morte de Empédocles , que vimos no domingo em Serralves. Na folha de sala, Jonathan Rosenbaum refere a «presença de um lagarto que atravessa o espaço na cena em que Empédocles liberta os escravos». Mas estou certo de que há pelo menos mais uma sardonisca num outro plano. Um mero acaso? Claro que não. O filme está vivo do primeiro ao último fotograma. Acabou-se. Ponto final. Posso voltar ao Gombrowicz.

— Alors, un petit supplement?

A exposição dedicada ao trabalho de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub parece uma actividade cultural de centro comercial. Puseram umas folhas verdes nos projectores de luz e todo o espaço ficou verde como uma alface. Não é assim que a terra deve brilhar — isto deixa ficar mal até o louco do Hölderlin. Há uns ecrãs espalhados pelas paredes verdes onde se podem ver excertos de alguns filmes da retrospectiva (nem sempre com legendas em português que, diga-se, não são grande coisa). E mais nada, nenhuma ligação aos escritores que eles leram e aos textos que filmaram. Nenhuma ligação aos cineastas e filmes que os marcaram e com os quais se relacionam. Nenhuma ligação às pessoas que filmavam com eles.  Nem encontros, nem diálogos, só aquela cor verde que alastra. Esta exposição podia chamar-se — Alors, un petit supplement ?
Tenho óptimas discussões no fim dos almoços de fim-de-semana, quer dizer parecem óptimas como os sonhos coxos parecem óptimos enquanto estamos a dormir. Ontem, talvez por causa do arroz de cogumelos e do alvarinho (do Pingo Doce, pois sou mais operária do que presidente da câmara), acabei por confessar que me entristece ver um dos meus filmes preferidos de Huillet e Straub apresentado às três pancadas e que mais valia não convidar ninguém, dizer apenas: «Este filme é belíssimo e palpitante, vejam-no com atenção, mas sem preocupações analíticas, como se não soubessem o que é o cinema. E depois, se precisarem (vão precisar, claro, todos nós precisamos), vejam-no outra vez e leiam o Pavese e olhem à vossa volta e procurem os deuses as vinhas as fontes e os homens. O nosso agradecimento a Huillet e Straub não tem fim. Boa sessão.» Em italiano, soava melhor.

Destruir os clichés

Straub: Penso que devemos fazer filmes sem nenhuma significação, pois de contrário só se faz porcarias (...). É preciso que um filme destrua a cada minuto, a cada segundo, aquilo que dizia no minuto precedente, porque estamos a sufocar sob os clichés e é preciso ajudar as pessoas a destruí-los. Neste sentido, o último plano [de Othon ] não significa nada, é o que espero.  Nota: A resposta de Straub foi retirada de uma montagem de entrevistas organizada por Antonio Rodrigues para o catálogo da Cinemateca de 1998. A versão espanhola pode ser lida aqui .  Esta questão do significado dos planos, ainda para mais dos últimos planos, é recorrente e é, também ela, sem sentido. O que interessa não é o que significa (se for importante, não significa nada), mas de que modo essas imagens nos afectam, que sensações e pensamentos provocam, para onde nos desviam. É a tal «saturação de signos magníficos banhados na luz da sua ausência de explicação» de que falava Manoel de Oliveira e que Goda...