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Mensagens

A mostrar mensagens de dezembro, 2023
Nunca sei o que vou encontrar na biblioteca. Hoje trouxe um livro de Antonio Di Benedetto para não me esquecer dos argentinos e Os Últimos Dias da Humanidade para não me esquecer do que nos espera. 2024 promete ser mais um ano cheio de destroços.

Car je est un autre

( No te apoyes, / si estás solo, contra la balaustrada, / dice el poeta chino) A primeira cena de Fechar os Olhos passa-se nos arredores de Paris no Outono de 1947 (Víctor Erice tinha 7 anos, Franco asfixiava Espanha). Monsieur Lévy é um judeu sefardita abastado e solitário que vive com Lin Yu numa casa grande rodeada de árvores a que deu o nome de Triste-le-Roy ( La casa no es tan grande, pensó. La agrandan la penumbra, la simetría, los espejos, los muchos años, mi desconocimiento, la soledad ). Está para morrer e chama Monsieur Franch para o encarregar de uma missão difícil: descobrir e trazer até ele a sua única filha Judith que a mãe levou para Xangai há muitos anos e se chama agora Qiao Shu. ( ¿Pero qué es un nombre? ) Não quer morrer sem ver nos olhos da filha um sentimento puro onde se possa reencontrar. Tudo o que tem, a sua própria vida nada vale sem essa consagração. Quase parece o princípio de uma história de aventuras exóticas, sim, mas a forma como é filmada diz-nos

Uma canção para Erice

Não consigo escrever nada de jeito sobre Fechar os Olhos : apetece-me dizer tantas coisas e em sentidos tão diversos que as palavras nem se aguentam. Ah, se soubesse, escrevia uma canção para Erice. Um fado.

Os salvadores

É verdadeiramente comovente a preocupação da extrema-direita e dos ultraliberais pela «situação a que chegaram os nossos serviços públicos». A propósito destes benignos e sensíveis defensores do estado social, ocorre-me uma passagem de Um Sonho , de August Strindberg, na qual a tripulação de um navio em perigo «grita horrorizada ao ver o seu salvador» e «atira-se ao mar, com medo dele».
 

Soma de derrotas = vitória

21 de Dezembro  A única solução: continuar como se nada fosse; aconteça o que acontecer, um dia havemos de ganhar a causa. Perante quem? Não importa. O certo é que, se permanecermos nós mesmos, se tivermos a coragem de defender a nossa causa até ao fim, a soma de derrotas que teremos experimentado equivalerá a uma vitória. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Depredação

Em Os Favoritos da Lua , de Otar Iosseliani, há um quadro que é roubado várias vezes ao longo do filme. Sempre que um novo ladrão palma o retrato, a tela é cortada à pressa da moldura, perdendo mais um bocado da imagem. No final, o quadro está reduzido a metade. Quem não tenha conhecido o original, vê apenas a parte que resta, tomando-a pela imagem toda. Uma ideia engenhosa para ilustrar a depredação causada pelo tempo e pelos homens. Sobretudo pelos homens. Por exemplo, a depredação do estado social. Dos direitos laborais. Da democracia. Isto é mais uma achega a propósito do que a Cristina escreveu aqui .

Traduzir

No emprego anterior chamaram-me comunista . Esta semana foi sindicalista , acusaram-me ainda de não respeitar as hierarquias e ter a mania de defender os mais fracos . Reagi como um modelo sonâmbulo de Bresson, mas por dentro toda eu era contentamento; estou a conseguir traduzir, não só as palavras, mas também os gestos e as ideias dos livros que leio e dos filmes que vejo. Uma tradução de acção, action translation .

As minhas datas-chave

Sou mais velho do que Baudelaire quando dizia que tinha mil anos, por isso:  1842. A floresta alemã é interdita aos pobres (madeira morta, cogumelos, castanhas, etc.); converte-se num local de exploração industrial. O jovem Karl Marx insurge-se; o que lhe custa o emprego de jornalista na Gazeta da Renânia.  Inverno de 1942. Estou a patinar no Moselle coberto por uma espessa placa de gelo. ESTALINEGRADO! «Finalmente o princípio do fim», diz o meu pai.  1945. Alguns dias antes do fim da guerra, só para impressionar Estaline, os B17 americanos bombardeiam duas vezes uma das mais belas cidades alemãs, Dresden, destruindo-a e causando mais vítimas (civis) do que as bombas (atómicas) lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki para nos libertar do «perigo amarelo».  Até 1948. A ESPERANÇA! Leis da concorrência. Nacionalizações, expropriações (a família Renault, por exemplo). O PLANO (económico) francês é mais audacioso do que o de Walter Ulbricht na República Democrática Alemã alguma vez será. Le
Otar Iosseliani, Aprili , 1961.

Círculos

Uma amiga diz-me que as imagens que a televisão mostra de Gaza lhe lembram Alemanha, Ano Zero . Andamos às voltas e regressamos sempre ao ponto de partida. Como o gato de que Meyrink fala no Golem : «Tinha uma ferida no cérebro e andava em círculos, titubeando.»

Da próxima vez

Estava muito predisposta ao filme japonês do Wim Wenders e algumas críticas eram tão arrebatadoras (tirando o Eurico de Barros que escreve como se fosse a irmã de Hirayama) que me meti no carro para enfrentar o trânsito natalício. Fiquei um bocado desanimada porque Dias Perfeitos  pareceu-me apenas um filme simpático que nos mostra as deslumbrantes casas de banho públicas de Tóquio (a maior parte delas irritariam o sombrio Tanizaki) e um tipo que vive como se fosse um gato. Kōji Yakusho é um belíssimo actor que fala pouco ou em voz baixa e o filme aguenta-se graças a ele e às paisagens, mas falta qualquer coisa. Também fiquei admirada porque todos os textos que li referiam a felicidade dos pequenos gestos do dia a dia à semelhança da canção do Lou Reed, mas o filme tem uma carga simétrica de tristeza. Ninguém a vê? Uma das pistas talvez seja o que a livreira (ela conhece todos os livros que vende? caramba, que mulher notável!) diz sobre Patrícia Highsmith, sobre a diferença entre ansie

Selfie XV (coentros e rabanetes)

Os últimos tempos têm sido muito proveitosos para o meu curriculum de vão de escada .  Depois de ter sido trocada por uma musicóloga mais encartada para um distinto evento cultural, consegui introduzir a palavra «rabanete» nas conversas eruditas da Antena 2. (Claro que estas façanhas só foram possíveis graças à intervenção de altos patronos.) Por este andar ainda acabo por atingir o meu grande objectivo: entrar num filme de Rivette! Um musical é que era, já tenho o avental posto...

A morte dos avarentos

Um avarento jazia mui mal enfermo pera morte. Este homem havia muitas riquezas e nunca se aproveitava delas nem tanto a Deus, nem quanto ao mundo, nem pera seu corpo. E jazendo assim chegado à morte, sua mulher entendendo que não havia em ele vida, chamou uma sua servente e disse-lhe: — Vai tostemente e compra três varas de burel pera envolvermos meu marido em que o soterrem. E disse-lhe a servente: — Senhora, vos havedes uma grande teia de pano de linho, dade-lhe quatro ou cinco varas ou aquilo que lhe avondar em que o soterrem. E a senhora disse-lhe queixosamente: — Vai faze o que te mando, ca bem lhe avondaram três varas de burel, segunda eu sei a sua condição e a sua vontade. E estando em isto falando a dona e a servente, ouviu isto aquele homem avarento, e esforçou-se quanto pôde pera falar e disse: — Não comprade mais que três varas de burel, e fazede-me o saco curto. (...) Citado por Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português , Vol. 2.

Rigidez e graça

Visita de um professor japonês, Tadoo Arita, e da sua mulher. Decididamente, este povo tem classe. Nem o menor traço de vulgaridade! Têm «estilo» como os franceses devem ter tido noutro século e como os ingleses ainda têm um pouco. Rigidez e graça — paradoxalmente combinadas. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (março de 1967).

Costuras

Ontem li «Costuras», de Olga Tokarczuk (tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz, edição da Cavalo de Ferro), entre o Campo 24 de Agosto e Matosinhos Sul, de manhã bem cedo. A viagem de metro é mais longa do que o conto (dez páginas e oito linhas), passei o resto do percurso a olhar pela janela para tentar alhear-me da história e enfrentar um dia de trabalho banal. Continuava, porém, a ver as costuras das meias, a cor acastanhada da tinta das esferográficas, a forma dos selos. Aqueles objectos tomaram a vez dos pensamentos, alastravam pela cabeça criando uma tremenda inquietação material. Conseguia, não compreender (nunca ninguém consegue), mas pressentir o desassossego de B.  No regresso, ao fim da tarde, voltei a ler o conto e tirei as dúvidas: é dos tais, dos que nos encostam à parede, dos que não nos largam mais.  A tradução inglesa (de Jennifer Croft) pode ser lida aqui .

Os assalariados vão ao cinema

Ontem depois da sessão de Kommunisten , fui levar o Rui a casa. Quando estávamos a chegar a Antero de Quental, comentámos que antes do cinema tínhamos arrumado a casa e feito sopa: o jantar já estava guiado. E aí percebi claramente que Jean-Marie Straub fez o filme para nós, pobres assalariados — para podermos lavar os olhos no pouco tempo que nos sobra.

흰개미

A Térmita é a livraria mais cinematográfica que conheço. Não é só uma questão de livros, aquele sítio mantém intacto o passar do tempo — basta olhar para os tectos, para as paredes, para os caixilhos das portas a descascar. Entra-se por um corredor escuro e lá dentro o espaço tem uma forma estreita e alongada que lhe dá uma atmosfera de coisa proibida (uma espécie de Budapeste para intelectuais solitários, diz a caixa de luz e o holofote vermelho sobre a porta ou as manchas de humidade). E por causa das ligações ao Candelabro, há uma pequena cozinha bem visível onde às vezes se trabalha e uma garrafeira escondida.  Tudo pode acontecer ali; principalmente um filme de Hong Sang-Soo.

Selfie XIV

Os protocolos oficiais aborrecem-me, mas gosto de criar pequenos protocolos pessoais que passam despercebidos. Por isso e apesar de não estar frio, vou levar o meu cachecol vermelho para a sessão de Kommunisten . É um gesto mais ou menos entre o cepticismo de Godard e John Wayne num filme do Ford. Cada um segue os modelos que pode.

Admiradores desconhecidos

Nunca devemos responder a cartas de desconhecidos. Quando as recebia, agora compreendo, era porque falavam de mim na «imprensa». Como já não publico e depois de uma certa «conspiração de silêncio» (!), mais ninguém repara na minha existência. Facto com que me congratulo. Mas que lição! E pensar que, como toda a gente, acreditei nos «admiradores»! (Outubro de 1962)  Acho que não recebi uma única carta de um desconhecido que fosse normal. De um desconhecido, entenda-se, que me tenha escrito entusiasmado, a quem dei alguma coisa e que confessou sentir afinidades comigo. Destroços, perdidos, infelizes, doentes, dilacerados, incapazes de inocência, corroídos, atingidos por todos os tipos de enfermidades secretas, falharam em todos os exames cá em baixo, arrastando atrás de si o seu jovem ou o seu velhíssimo desconcerto. Nunca me pediram nada, porque sabiam que nada lhes podia oferecer. Só queriam dizer que me tinham compreendido... (Novembro 1968) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Memória

Há vários meses que a falta de memória está na ordem do dia. Membros do governo não têm memória dos factos. O Presidente da República também não se lembra das mensagens. Não são os únicos. O país inteiro parece ter-se esquecido da noite escura onde está mergulhado grande parte do seu passado. E, se olharmos em volta, também o mundo parece ter perdido a «fita do tempo».

O que resta de um pensador

De tudo o que Schopenhauer escreveu e pensou, apenas as explosões de humor permanecem vivas. Sempre que fala do seu sistema, e sabe Deus como insiste nisso, é chato, cai numa ladainha; assim que se esquece que é filósofo e que tem de permanecer fiel às suas teorias, é vivaço até mais não. O que resta de um pensador é o seu temperamento, quer dizer, o que o faz esquecer-se de si mesmo ; é pelas contradições, pelos caprichos, pelas reacções imprevisíveis e incompatíveis com as linhas fundamentais da sua filosofia, que diverte, desconcerta, interessa. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1967).

No grau ínfimo da intenção literária

Talvez um dia mais tarde sintamos que aquela parte da nossa literatura, que surgiu no grau ínfimo da intenção literária, seja a mais intensa: todos esses relatos, cartas, diários, que se geraram nas grandes batidas, nos cercos, nos açougues do nosso mundo. Ernst Jünger, O Passo da Floresta . Tradução de Maria Filomena Molder.

Influenciadores do século XX

O meu «tipo»: pensamento obsessivo — estilo acrobático. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1965) 

Culpados

Esta semana, voltámos a ver Ladrões de Bicicletas. A insuportável via crucis do homem e do filho. A terrível cena final, de novo. O miúdo, em lágrimas, testemunha da impiedosa humilhação do pai. O pai derrotado e humilhado diante do filho. Mas, desta vez, a ausência de ricos, patrões, exploradores, revelou-se-me ainda mais óbvia e perturbante. Tudo se passa entre os pobres e miseráveis. O indigente que rouba o desvalido. O desvalido que trama o desgraçado. O operário que tenta passar à frente na fila do eléctrico. O velho da sopa dos pobres que mente ao homem desesperado e este que arrasta o velho para a rua. As trapaças no mercado de bicicletas em segunda mão. Etcétera, etcétera. O que fazer quando os culpados estão fora de campo? É mais simples culpar o vizinho da frente, o passageiro do lado, o tipo da caixa do supermercado. Também nisto o filme é tremendamente actual.
Não sou nem pensador, nem homem de acção (!), nem, nem, nem, nem tudo o que quiserem — sou um elegíaco do fim do mundo. Cioran descarregava nos  cadernos tudo o que lhe ia na alma. Não exactamente como filósofo. Aliás, Cioran não é um verdadeiro filósofo ou, melhor dizendo, não é um filósofo a sério : não respeita nem a disciplina nem os protocolos, está na filosofia a meio gás, sempre a cair noutros temas e também no chão.  Sou um filósofo-uivador. As minhas ideias, se é que as há, uivam; não explicam nada, explodem.   É apenas um homem solitário cheio de dúvidas, sofrimento e energia. Um homem que se atira às palavras como um guerreiro à procura de uma fórmula. Um pobre diabo. Um homem em constante movimento. Um homem encantador.

Prenda

Na Avenida da República, em Gaia, nos intervalos das decorações de Natal, há cartazes de um dos partidos da extrema-direita. A uma prenda com um laço luminoso, segue-se um cartaz da extrema-direita. A outra prenda luminosa, outro cartaz. E por aí adiante.

Meteorologia e poesia

Hoje não chove, diz a meteorologia. Lavo e ponho a secar o que faz mais falta: meias e cuecas. Agora, resta esperar que o vento faça o seu trabalho. «O vento é poesia imediata », escreveu Cioran. Às duas e meia da tarde, começa a chover. Um imenso aguaceiro. Ainda que próximas, não se deve confundir meteorologia com poesia.

Convite para sábado, 9 de Dezembro.

A livraria Térmita fica no Largo de Mompilher, n.º 5, no Porto (porta ao lado do Candelabro). Os Mompilher Rendez-Vous têm o grafismo dos Lina&Nando .

Existe esperança? Sim, existe. Mas não para nós.

Gaza, 29 de Novembro de 2023. AP Photo/ Mohammed Hajjar⁠. (Via DER TERRORIST)